9.2.20

#1382

Atiro os dados
e salto o azar vencido.

Charrua destravada

Afasto o medo nesta rebelião
e em vez de falar da abundância
(da mordaz, cínica abundância)
atiro o mosto arrancado do chão.
Sinto a chuva a dançar nos poros.
Sinto as palavras a emudecerem
e contra as hipóteses apalavradas
resgato-as para serem poemas
em forma de grito.
Pode ser o mote
para as vagas que esperam à porta
e eu
juiz supremo
sou domador das coisas indomáveis
desenhador dos sentidos sem nome
poeta 
até das palavras mudas.

8.2.20

Árvore matricial

Sou o veredicto de mim mesmo
frase solta
medalha combalida
espada amestrada
o sal colhido dos mares
trovador sem causa
miradouro escolhido
vulcão promitente
caudal em transfiguração
meação avinagrada
transmontano genético
conceito inacabado
um olhar incisivo
experiência inconclusiva.

#1381

O pedestal com ferrugem,
puído,
mas pedestal.

7.2.20

#1380

A cura
Loucura.
Que dura.
Ternura.

Levedura

Um fortuito acertar
a roda viva do acaso
e as lentes embaciadas 
que exigem aura
um visível beijo nos azulejos arcaicos
e um verso puído,
singelo. 
A maré não se encontra na mão. 
Os líquenes extinguiram-se
deixando o lago só com água. 

Se ao menos soubesse da boca rasa
dos lábios que mordem o isco
e serpenteiam nos corredores do desejo. 

Se
ao menos
habitasse os sonhos meus
e não fosse
forasteiro deles;
se meus fossem os azimutes da vontade
o manual de intenções
o campo arroteado onde fermentam
as horas que são minhas:
seria anfitrião de mim mesmo
vedando a casa ao feiticeiro que substitui 
a ideia que tenho de mim. 

Teria de me ver do exterior de mim. 
Teria
de interrogar todas as frases
as palavras, 
uma a uma,
para excluir as que são madraças
e as infetadas pela mentira contumaz. 
Às vezes
não sei sentir o palco que vem a meus pés
não sei
dos inverosímeis chamamentos
das luras que se acham entre os arbustos
o que significam
no mosaico indigente onde sobram mendigos. 

Não ouso 
estatura maior do que a que tenho;
não sou capaz de saber 
que estatura é essa
não confio nos espelhos
não confio 
na lucidez que transporto. 

Combino com o amanhã
o exílio das consumições. 
Assim como assim
pior podia ser o estatuto da inquietação. 
Pior podia ser 
o véu a cair sobre o olhar
na dobra do calendário apressado
como se nadasse no Mar Morto,
como se mortas fossem decretadas
as angústias militantes.

#1379

A caravela perdeu âncora
e não tem cais por paradeiro.

6.2.20

Lento, baixo e fraco (ou a antinomia de citius, altius, fortius)

Desarmado
o infinito
restou pequeno.
Uma insignificância
do tamanho do mundo. 
Houve carestia de brio
nos pederastas de superlativos
à míngua de léguas
o estalão das proezas
distintivas. 
Houve ainda
quem aplacasse as dores
e sussurrasse
em surdina, apenas,
que as armas que interessa terçar
não conhecem
superlativos e infinitas coisas. 
Foi em vão. 
Havia sempre uma competição
um troféu por levantar
a vaidade de casta
as medições concorrentes
e toda a estultícia como adorno. 
A estes desaconselhados
jamais 
será dado entender
que raras são às vezes
em que chegar mais longe
ou mais depressa
ou ser maior num palco qualquer
ou ufanar outra qualquer façanha
é prova de vida. 

#1378

Como estar no lugar do outro
se esse é um lugar
pessoal e intransmissível?

5.2.20

Batismo

À boca do cão
molhada
o dorso sem medo
o estuário destronado.

Treze versos sem rima
o mar inteiro
a escotilha sem parapeito
a erupção em vez do sono.

Os dedos amordaçados
a carestia dos marinheiros
em novelos sem contagem
despenhando os cabelos desarrumados.

À volta do mundo
os capitães enrugados
capitalizam a sabedoria
e o navio segue seguro.

Amanhã não será trono
nem norte haverá de falar
tingido pelo nevoeiro opaco 
a maresia como única bússola.

Amanhã serei o húmus de mim
sem esperar miragens
sem esperar relâmpagos rasgados
apenas um módico de mim à mão levado.

A previsão escondida
o baço oráculo
irrisório
e a bênção gargalhada no vazio.

Tomador das angústias sem paradeiro
passo-as pelo coador meticuloso
e sei que sobra
o vazio que é integridade.

Não alcançam os dedos os aviões foragidos
na vetusta lembrança do futuro
contra as opressões do tempo ausente
contra os apoderados da viagem sem rumo.

Escondo-me dos dias tementes
como o cão foge dos mastins em forma de homem
e sei de fonte segura
o esconderijo não tem mapa.

Deixo à água a boca apalavrada
deixo-a embebida pelo meu corpo
sem contar que haja proveito 
no contrabando vencível dos fracos.

Aos escombros devolvo as vítimas
e as mãos suadas são seu escaninho
as mãos oxalá lavadas das ruínas
anelando as preces inacabadas.

Sou legado em forma imaterial
as cinzas minhas sem inventário
nem lugar determinado
elas que tomam o lugar do acaso. 

#1377

Dendroclasta,
porque ao contrário das árvores
não morre de pé. 

4.2.20

Lucidez

Sinto os despojos a atravessar a lua
no olhar devolvido ao húmus gracioso
entre as paredes húmidas
e o jardim
onde se juntam as lágrimas sem paradeiro.
De vez em quando
os matriciais amparos das almas
decretam-se órfãos
cansadamente órfãos
como se mais nada lhes importasse
e parece que fica tudo deserto
um silêncio imorredoiro
até as palavras se extinguirem por desuso.
Diga-se
é contrafação este exercício
uma qualquer conspiração adestrada
por vultos profícuos no esbatimento das cores
por agentes instruídos para produzirem ruínas.
Enquanto houver lucidez
e as conspirações forem denunciadas como tal
não vem grande dano à existência.
Enquanto houver lucidez.

#1376

[Benign capitalism]

I owe
therefore
I own. 

#1375

Um rasgo 
na combustão
a atalaia 
da voz insubmissa.

3.2.20

#1374

Até fazia um poema pornográfico
mas temo que o poema 
tingido de vermelho fique
(de tanto corar).

Batalha

Não é contestação que se esgrima
o “não” a rebentar seco na boca
a antecipação do logro. 
O latido premente
arremedo de vítima em comiseração
levita de um além
situado
nos contrafortes do horizonte
naquele exato ponto 
em que a vista desmaia 
no precipício escondido atrás do horizonte
(se o olhar alcançasse a demanda).
Depois:
prantos
um atapetado ladário
a boca horizontal de tanto lamento
um hibisco descarnado
decadente
como decadentes são
os pedintes de misericórdia.

#1373

Um vago vagar
enquanto não vaga
a vaga venal.

2.2.20

Emboscada

À tarde
na emboscada
o siso entrou em greve
e das lajes sobrou uma vírgula
uma modesta vírgula
a fazer a diferença.
Ninguém estava perdido
e parecia que a contagem era crescente
todas as pessoas tomadoras de seus reveses
em valsas iletradas no palco da noite
em paredes estendidas na margem.
A emboscada era sofrível
e não havia reféns nem resgates
apenas uns estarolas em momento lúdico
empenhados à sua própria boémia.

#1372

Coxos e mitómanos
(o selo da civilização).

1.2.20

Advertência

Sala de espera:
o contorcionismo diletante
à espera
talvez
da redenção.

Antes de haver um apartado
(escondido da visibilidade)
devolve-se o penhor com juros
e livra-se a consciência 
de outros
malefícios.

Não é o pudor que conta.
A média dos melhores
é do foro da assimetria
e se à sala de espera retornar
ficam as psicadélicas avestruzes
insistentemente
recusando a cabeça 
subterrânea.

Termos em que não custa a espera
na sala de espera.
O apartado
refúgio do fingimento
funde nos corsários as almas 
despenhadas.

#1371

Um pequeno narciso medra no vaso 
onde fátuos fogos se extinguem.

31.1.20

Tutela

Qual é a sabedoria dos sábios
a imagem diligentemente nítida
o verbo colocado
a consumação da perfeição afinal possível?
As sombras escondem o palco lívido
as cortinas arroxeadas
que deixam, 
sob a espátula da contraluz,
silhuetas em fundo
os corpos despropositadamente deselegantes
apanhados à má-fé
enquanto se preparam para as luzes?
O que deixamos em legado
se não as impressões imateriais sem paradeiro
a sementeira árida
um diadema de nada
a escultural pose dos abastados vencedores
de jogo sem adversário
um jogo de sombras
em que somos a estatura diminuída
do espelho refratado?
Que se anuncia
no cimento do passado
que se conjuga com verbos intransitivos?
Deixamos em memória futura
a mnemónica artilhada pelas mãos
o sumo do dia vertido na areia
a infecunda faca esgrimindo a fúria sem rosto
o goto da incerteza
as paredes por onde se desenharam os corpos
o património sem inventário?

#1370

Entre a sede e o tumulto
a cólera em forma de voz.

#1369

A marquesa
estendida na marquesa
à espera da lascívia clandestina. 

30.1.20

Machado de paz

Digo-o
com todo o fervor
a centelha ávida a estalar
na boca:
confisco um pedaço do horizonte
preciso 
de um pouco de espaço para arregaçar os olhos 
e do redor trazer os instantes sortilégio
o muito que se pede 
ao promontório onde se tutelam as vontades.

Se em roda se verter o precipício
diremos 
sem temor
que não sobram 
as angústias em sede própria
dissolvidas no caldear da noite
em pose de luar luminoso
em pose
até que o retrato caiba na moldura.

Tomo em mim a frescura da manhã
e deito os dados ao relampejar das vozes
ainda timoratas
ainda apressadas
dos matinais passageiros
os tumulares esqueletos contrariados,
que mais parecem corpos mutilados.

Não admito
se não 
o vago pesar das ondas
em que se deitam os pássaros 
para de meu vagar 
saber tirar a rasante do desmedo.

Divago,
talvez.

Desmonto 
as agitadas vozes atribuladas
renego-as às sombras lenticulares
aos lugares
onde medram os apóstatas dos pleitos.

Não 
em mim não coabitam os gládios
e sei do santuário
onde se somam as pazes.

#1368

Trago à história
um aroma de História
contra a bolçada aragem 
de mitomania e disfarce.

29.1.20

Paciente (ao quadrado)

Um paciente paciente
conta as sílabas à medida dos segundos
E secunda a prosápia póstuma
dos iracundos a destempo.
desaperta os nós cegos por dentro
do sangue
em camadas fundas, inertes,
enquanto esboça a legenda sob a janela
no formulário amarrotado,
sem autorização para o agastar.
Paciente
o paciente interroga
a paciência
pois não consta
que pacientes impacientes
sejam de outra linhagem.

#1367

Do miradouro decano
os prantos perdidos
da viuvez sem paradeiro.

28.1.20

#1366

Andava à procura 
de revistas cor-de-rosa.
Andava à procura 
de cagões.

O homem que gostava de fazer prefácios

O homem que gostava de fazer prefácios
fez mais um prefácio
na contabilidade prístina
de quem se faz solene visita
às palavras lacradas por outros. 

O homem que gostava de fazer prefácios
gosta de uma cerveja antes do jantar
enquanto amacia o pelo do bulldog 
e mastiga as cascas azedas
que o mundo obnóxio não se cansa de bolçar. 

E mesmo assim
o homem que gostava de fazer prefácios
tem sempre um prefácio 
à espera de sementeira pela prolífica mão
e ufana-se
nos interstícios da alma
pela façanha contínua.

Ainda hoje,
tantos prefácios depois
que até 
o homem que gostava de escrever prefácios
perdeu a conta ao inventário,
ninguém pergunta pela obra restante
do homem que gostava de escrever prefácios. 
Tamanho pergaminho
é predicado de um escol
de um punhado de prescientes
estabelecidas autoridades intelectuais,
com obra firmada. 

Mas 
do homem que gostava de escrever prefácios
ninguém conhece a não ser
as páginas 
onde o homem escreveu prefácios.