31.3.20

#1459

[Crónicas do vírus, XXV]

A nobilitação das casas:
um concurso de bibliotecas caseiras. 

Despátria

Talvez por cicerone
as bandeiras esbracejadas
a favor do hino da morte
no forno onde fartas se imaginam
as minas decibéis
e os esqueletos que se aprestam.

Talvez para cicerone
se houve lugar
no lugar dos esqueletos
e da ossatura frágil
em meneios viris
sobrar uma réstia de pundonor pátrio.

Talvez em cicerone
no marear dos corpos servis
com as rimas esventradas
e as entranhas contaminadas
e do vagar ansiolítico
colhermos o encolher de ombros.

Talvez sem cicerone
o miradouro da vontade
lugares sem mapas por apeadeiro
e um olhar-sobremesa
que cultiva o hedonismo sem fronteiras
renegando o anátema do apátrida.

#1458

[Crónicas do vírus, XXIV]

Do ecrã 
para o mundo,
as casas abertas. 

#1457

[Crónicas do vírus, XXIII]

A habilitação das casas:
extintas as diferenças
entre casa e trabalho. 

#1456

[Crónicas do vírus, XXII]

Vemo-nos
pela vigília
de um ecrã.

30.3.20

Manifesto contra os sábios

Deste longitudinal pesar
desce a cortina arcaica
sobre os sábios,
os que assim se deixam nomear
pesos-leves de uma oligarquia sem trono
ou aristocratas sem toga alfaiatada.

Levanta-se o punho cerrado 
contro o rosto inválido,
sem preço o pueril convencimento
as escadas que levam aos mestres
mas logo, 
também eles sábios
e logo
também os mestres 
serventuários da bagatela.

Houvesse ao menos um teatro
polvilhado por humildade
e os sábios se esvaziassem por dentro
até que do âmago da nudez
exibissem a ciência do falível.

Um sábio 
que assim se deixa nomear
é uma argolada no mistério dos universos
uma equação sem fermento
a manga arbitrária do conhecimento 
– do conhecimento
de que é báscula
e ao mesmo tempo 
escrutínio.
Fusível de uma oclocracia
é o que é um sábio configurado.

#1455

[Crónicas do vírus, XXI]

É proibido
o passeio dos tristes
(e as casas, radiantes,
sobrepovoadas).

#1454

É proibido
laurear a pevide.

29.3.20

Ferry boat

As pálpebras
alpendre limão
o vento que aprisiona
as lágrimas de gelo.

A claraboia 
por onde a alma 
ganha o seu caiado
aconchego-mastro
tirania estilhaçada a acracia.

Diante da nuca
isolamento de um tempo vetusto
e as fontes férteis 
encontram-se no cruzamento da manhã,
à espera do ferry boat.

#1453

[Crónicas do vírus, XIX]

Os rostos fingidos
ou as máscaras
como arremedos de rostos.

#1452

Caio cai
e à interjeição
adiciona o nome.

28.3.20

Perfeição

“Ai, o meu marido era perfeito, falava perfeito e pensava perfeito, e eu era a razão para a sua inspiração, estou certa de que ainda o inspiro na morte.” 
Valter Hugo Mãe, A Desumanização, Porto, Porto Editora, 2013, p. 162.

Se a boca 
não sepulta o amor
e a perfeição do homem
é a matriz da amada
na amada tem morada 
a meta-perfeição.
(Ou o homem é o pretexto
para a humildade da amada.)

#1451

[Crónicas do vírus, XVIII]

O tempo estendido
atira-o para fora
do seu próprio tempo.

#1450

[Crónicas do vírus, XVII]

Nunca 
uma tão grande marcha-atrás 
nas liberdades.

27.3.20

Cortina de fumo

Bandeiras sem rosto
sem hino
os rostos eles mesmos
indiferentes
sulcam os mares sem paradeiro
e nas catenárias do século
assinam opúsculos sem raiva
e improfícuas sementeiras
na crina do dia.

Às vezes
as sombras falam:
conjugam verbos imprevistos
antes que a noite as deponha
com a espada crua.

Aos argonautas empossados
não interessam
as mesquinhas constelações dos medíocres
em fila de espera no périplo da estultícia.

Então:
costuram-se as orações neófitas
sob protesto dos apalavrados da inércia
e em nuvens sucessivas,
entre a vidraça baça
e a promessa de redenção,
ajuramenta-se o palco novo
as gentes novas
e o basáltico redesenho das formas.

As cores não foram extintas
as bandeiras é que se untaram
com a prestigiante moldura do porvir
este odor a tempos novos
todavia sem cabimento nas formas.

#1449

[Crónicas do vírus, XVI]

Purificação,
nunca como dantes
(sempre doravante). 

26.3.20

Istanbul

As noites
um cárcere de canícula
sem tortura nas imediações
sem os poros poderem sossegar
do suor que banha o corpo inteiro.
Dos zimbórios
o canto misterioso
importuna o ceticismo infrequentável
são ondas sonoras
que coagem o serpear do Bósforo.
Os rostos marcados dos velhos
narram estórias escondidas
e os gatos que mandam nas ruas
inventariam os lugares decentes;
são o melhor guia dos turistas.
Ao jardim 
assomam as senhoras da alta sociedade
cuidando do chá frio
que aplaca o agosto em seu pináculo.
Dizem-me
que a tudo se sobrepõe
uma coreografia de odores
e nem é preciso hibernar no bazar egípcio
para colher esta maresia.
Na mesquita azul
as mulheres escondem o cabelo
e ficamos a saber 
que o cabelo é a montra dos pecados.
O Bósforo não está longe
e apetece tirar um naco da Ásia
e logo a seguir 
devolvê-lo à Europa.
Istanbul
é a cidade que nunca mais acaba.

#1448

[Crónicas do vírus, XV]

A rua
enfim
morada da solidão.

#1447

[Crónicas do vírus, XIV]

A rua
e silêncio
por companhia.

25.3.20

Guitarras e oráculos

Eram as guitarras corrosivas
um afago na nuca
enquanto perdia o repto
e os anciãos desfaziam-se em esgares
contra os oráculos do passado.
As guitarras
ainda corrosivas
desmentiam os oráculos,
dos que tiram as fronteiras do futuro
a régua e esquadro
e daqueloutros que ajuramentam
o passado perdido
nos passos rombos da memória.
Os anciãos
riam-se com as desdentaduras à mostra
impecavelmente rejuvenescidos
apessoados
como se fossem eles
os fiéis partidários da meninice revivida.
Eles sabiam
de fonte segura
da precedência 
da desmelodia das guitarras corrosivas
em vez dos aperaltados soberanos
de oráculos vários.
A lição derradeira dos anciãos
(cuidadosamente empunhando guitarras
à espera da desmelodia corrosiva)
é que não havia séquito
dos desemoinhados que se encanivatam
com o menor dos desagravos.
Era a única lembrança 
que herdaram 
do futuro dos outros.

#1446

[Crónicas do vírus, XIII]

Nunca tantos
odiaram tanto
a matemática.

#1445

O medo
é a fala do tempo.

24.3.20

#1444

[Crónicas do vírus, XII]

Uma guerra para travar.
Para travar.
Música para os (meus) ouvidos.

#1443

[Crónicas do vírus, XI]

Já se ouve,
em lamento:
este ano
metemo-lo 
num grande parêntesis.

Reino

De um punhado de areia
a janela ampla sobre a varanda
e à maré fui roubar a ternura das mãos
levedura do peito cheio onde repousas.
Dei-te a chave
o rosto frio à espera da boca
os lábios que eram sôfregos mastins do desejo.
O meu corpo
a página interminável em que te demoravas.

Dizias:

“não precisamos 
de conjugar o verbo no passado.”

E eu concordava,
concordava
que haveríamos de inventar um tempo verbal
na semântica que fosse rima nossa
e à janela voltaríamos
só para pesar as ondas do mar
e contarmos os gramas de sal 
de que era feita a maré
e à lua tardia 
encomendarmos a gramática sem critério
o estuário onde andaríamos de mão dada
ocupando o leito todo
sem espaço para o demais.

A varanda
vertida sobre a janela ampla
cobra o preço da areia a rodos 

– e já empregamos o verbo no presente –

e sabemos
com a inteireza do sangue convincente
que de nós procedem as orquídeas avençadas
o poema salvífico
o nutriente incalculável
o salvo-conduto do instinto sem freio
maresia em sonhos petrificados.
Pressentindo a aurora
o altar da consagração dos amantes.

#1442

[Crónicas do vírus, X]

As milícias do punho forte 
e da moral à prova de tudo
precedendo
o bastão da polícia de choque.

23.3.20

#1441

[Crónicas do vírus, IX]

O medo
emprestou-se ao medo
em sucessivos novelos
de medo.

Equações dispersas

A meação
de um pé-de-meia
não chega a uma quarta parte
de uma poupança.

A menção
a uma monção
não chega a dois quintos
de uma tempestade.

A mostra
de um corpo à mostra
não perfaz sequer um oitavo
de uma nudez.

A maldição
da má dicção
não representa três sétimas partes
de uma perturbação da fala.

A madurez
de um má rês
não sinaliza se não cinco sextos
de um mau feitio.

#1440

[Crónicas do vírus, VIII]

Os dados deitados ao porvir
por medo do presente.

#1439

[Crónicas do vírus, VII]

Amanhã
enquanto houver outro amanhã
para sair do sequestro do hoje malsão.