3.5.20

#1541

[Crónicas do vírus, CVII]

Vinte e sete graus.
E o governo não proibiu
vinte-e-sete-graus?

2.5.20

#1540

[Crónicas do vírus, CVI]

Maus vão os tempos
para vícios e dissoluções
e bons estão
para estetas da moralidade.

Profusão


This Mortal Coil, “Carolyn’s Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=p8eHP9NjeVM

Que nome te dou?
            Maresia,
para saberes que a boca
não é fingimento
e do sal hasteado
se funde a matéria do desejo.

Que nome te dou?
            Clepsidra,
para a mim chegar
o pulsar do teu sangue
e dele tomar medida 
sem ser a destempo.

Que nome me dás?
            Luar,
por saberes que a luz diáfana
cumpre o lugar
na pele que deixo à mostra.

Que nome me dás?
            Farol,
para em ti pousar
o vento da minha boca
e no teatro em que de mão juntas vamos
não ser nunca tarde 
o amanhã que constar.

#1539

[Crónicas do vírus, CV]

Afetos em maré baixa,
a caminho de sermos
nórdicos?

1.5.20

Desamanhecer

O lado certo
é incógnito
o abissal desembrulho
sem cordas por saber. 
As mangas da noite
é que têm razão:
(o desejo de) hibernação
um refúgio nas ombreiras do vento
o rapto do precipício
em novelos de bruma visível
convidam 
ao pesar dos alinhavos 
o forte com farol de atalaia
aos mastins que levam à boca
o pedaço da carne negligente. 
O lado errado
também é incógnito
uma manta sem idem
no rosto seráfico dos promitentes anjos
não fossem as asas cambas
em sua denúncia. 
Destinei ao improvável
a casta dos melhores (desejos)
a indumentária que me apessoa 
no contingente desenho
do leito em pródigo caudal.

#1538

[Crónicas do vírus, CIV]

As revoluções
ficaram 
adiadas.

#1537

[Crónicas do vírus, CIII]

Dos viciados na “normalidade”,
os curtos de espírito:
Ah! o “regresso à normalidade”.

30.4.20

O fingimento de infortúnio

Poupa na artilharia.
Sei-o bem:
as calças puídas
a desbocada árvore-mãe
o tresler de palavras outras
a argamassa mal cimentada
os condimentos fora de prazo
o adestrado manual de maus modos
o estribilho pueril
a macambúzia manhã sem hora
o desdizer insubmisso
um lado e o seu avesso, sem critério
a malsã confiança
as juras que se não juram
o dia com cor de noite
o fingimento em tinta de água
e um nome a tinta-da-china
perdido no dilúvio anunciado.
Eu sei.
E o que mais vier 
ao arcaboiço das lembranças.
Pior não haverá inventário por notar.
Poupa na artilharia.
Dela precisarás
para os que de ti tiverem repto. 
Pois de mim
desvalido e sem fortuna
sacrificado aos piores alvores
destinado aos intransigentes desdeuses 
que uma indulgência sobre mim atue
meã que seja
ou o bolor do esquecimento.

#1536

[Crónicas do vírus, CII]

Quarenta e cinco dias
e as mãos
sem notícias de notas.

#1535

[Crónicas do vírus, CI]

Aos sacerdotes de outros catecismos:
ó maldito relógio apressado
que retomas o lucro maldito?

#1534

[Crónicas do vírus, C]

Às pitonisas do ambiente:
apressar o relógio
obnubila uma agenda inteira?

#1533

[Crónicas do vírus, XCIX]

Dar muita corda ao relógio
e depois marcha-atrás,
outra vez?

29.4.20

#1532

[Crónicas do vírus, XCVIII]

Amanhã
ninguém sabe
se ontem é possível.

Visibilidade

Este é o pranto no coabitar do espanto
o mordaz vento que se vê capataz
da estilística sem medo da balística
no tirocínio para da bravura obter patrocínio.

Este é o desenho do sonho que empenho
a porta franqueada no que não importa
pela manhã azul sem espera do amanhã
nos dedos galgos que arriscam os medos.

Este é o filamento da fala sem paramento
a portadora do verbo cerzido na incubadora
nos perenes olhos cruzados com os líquenes
perto do lago onde me falas de acerto.

#1531

[Crónicas do vírus, XCVII]

Economia
rima com
pandemia.

#1530

[Crónicas do vírus, XCVI]

O medo
que nos deixa à mercê 
da surda repressão.

28.4.20

Pirata

Que não te sobre o eu
pirata das comendas
que não entre o distrate da alma
no sarcófago luminoso das vielas
onde a podridão
se encesta em levas de fungos
e os miríficos destinos
alvares
apessoam o suor em badana.

Que não te sobrem 
os vendáveis ressoares da alma
que fora de época
é mercancia sem bolsa onde mercar.

Sobrarás tu
pirata descaminhado
e a garrafa atirada ao sal do mar
teu testemunho,
 insubmisso.

#1529

[Crónicas do vírus, XCV]

O fermento
da saudade.

#1528

[Crónicas do vírus, XCIV]

A economia
estacionou
na garagem.

27.4.20

Avenida dos escombros à espera de desagravo

Não eram os punhais frios
que punham o sono em sobressalto.

Não eram os mudos medos
que saciavam as cicatrizes anuladas.

Não era o basalto aquecido
que furtava as lágrimas em inventário.

Não eram as angústias diletantes
que desembainhavam o corpo inteiro.

Não eram as injúrias à memória
que dispunham do tempo futuro.

Não eram os carris tartamudeados 
que inauguravam o despeito jurado.

Não eram as sibilinas noites furtadas
que devolviam o sono anestesiado.

Não eram as balas párias
que amedrontavam a feição ousada.

Não era a contumaz ofensa ao verbo
que descosia a gramática sem métrica.

Não eram os solteiros penhores da manhã
que açambarcavam a água fresca da fonte.

#1527

[Crónicas do vírus, XCIII]

Só sabemos que o mar 
é um mapa do seu tamanho 
e o penhor sublime 
do desconhecido.

#1526

[Crónicas do vírus, XCII]

Agora
que dizer "não sei"
é a melhor sabedoria
tantos ostentam certezas
ou talvez 
o estertor da sobranceria.

26.4.20

Salitre

Não é mito
saber a alma enrugada
o fio leve do entardecer
sobreposto ao rosto enevoado
e da sílaba arrancada ao dente de leão
fundir as quimeras
em palavras juradas.

#1525

[Crónicas do vírus, XCI]

A desconstituição
alistou-se
pela porta do cavalo.

#1524

[Crónicas do vírus, XC]

A metamorfose
já não pertence
apenas
ao dicionário.

25.4.20

Dilúvio

As bandeiras sem chão
chegam ao sabre dos estetas:
não se diga adeus
que em seu dia
não cabe uma véspera. 

As páginas elogiadas
bruxuleiam na temperada manhã:
não se jure o ontem
que em sua heráldica
não respiram palavras façanhas. 

As árvores primaveris
traduzem sílabas sem freios:
não se levantem os versos altivos
que em sua métrica
não combinam as estrelares origens.

#1523

[Crónicas do vírus, LXXXIX]

Ainda foram a tempo
de impedir
o desaniversário.

24.4.20

#1522

[Crónicas do vírus, LXXXVIII]

O calor humano,
em liquidação.

O perpétuo ciciar

Eram olhares estranhos 
as avenidas vazias 
à espera de dia 
tornando-se as suas próprias esperas
entre a paragem do tempo
e a mordaça dos mastins.
Juntei as pedras avulsas 
mas não esperei
que as pedras falassem:
as paredes estavam vazias 
sem quadros 
mudas 
e a pele guardava o silêncio.
O vento irrompeu do nada 
pôs a vegetação a falar
a única fala  
que roubou o silêncio.
Era um tímido esgar 
o furtivo espelho esquecido,
uma banalidade.

Dizias:
não há problema 
a maldição distraíra-se 
e por fim
os ingénuos comeram à mesa.

Dizias:
bem me parecia 
que os males perpétuos
eram uma entorse ladina
uma conspiração contra si mesma.

Ao vagar das horas 
impérios com armaduras 
desfaziam-se em puídas estrofes
que nem de si diziam
loas que se vissem. 

#1521

[Crónicas do vírus, LXXXVII]

Ao menos,
em casa
ninguém se perde.