29.5.20

Desvirtudes

Às vezes
apetece
            apneia
uma absolutaMENTE
verdade
            daquelas
                        com brinde.
Ou um filme
            apoteótico
                        contra
a MURAlha
            do fingimento
                                   alçado.
Ou então
            um sorvete
                        de melão
apimentado
            na tela fosca
                        da luxúria.
Na dúvida
            aposto
                        na carne.

#1597

[Crónicas do vírus, CLXIII]

É o tempo
das vozes embaciadas
atrás das máscaras.

#1596

[Crónicas do vírus, CLXII]

O precipício
foi precipitado
ou a prevenção
foi premiada?

28.5.20

Equação

Dou do pedestal
o ângulo aberto
verbo ocasional
em maresia tornada
visível.

Escolho o dia
na penhora da boca
dado à mão tua
castelo de sonhos
dourados.

Matriculo o nome
nas arcadas do rio
à mercê dos acasos
em estrofes sabiamente
costuradas.

Revejo o porvir
pela escotilha do desejo
na bússola do teu corpo
em marés insubmissas
irrazoáveis.

Dou da fala
a sílaba cantada
coloquial poema
no espartano papel
reservado.

Sou do rosto aveludado
a matriz do jogo sem preço
proverbial artesão
de ânforas para o vinho
ametista.

Escuto o rumorejo
o avesso da palavra ínsua
e destrono os pesadelos
à custa da medula
ímpar.

Dou de mim a lava
os braços sem cansaço
a loucura agrilhoada
em centos de páginas
esmaecidas.

Dou de ti este amplexo
o cabaz fecundo
um relógio sem rosto
aroma de sementeira
incansável.

#1595

[Crónicas do vírus, CLXI]

Em vez da desconfiança
a escada para a liberdade.

#1594

[Crónicas do vírus, CLX]

A distopia
não atestou
o apocalipse.

27.5.20

#1593

[Crónicas do vírus, CLIX]

O barómetro da (ainda) inatividade:
uma quarta-feira de praia
como se fosse domingo.

Epístola

Não.
Não tenho.
Não tenho a certeza.
Não tenho a certeza do meu.
Não tenho a certeza do meu percurso.
Do meu percurso sem certeza.
Percurso sem certeza.
Sem certeza.
Do meu.

#1592

[Crónicas do vírus, CLVIII]

Reféns de um presente suspenso
lambemos as arestas do passado.

26.5.20

Cavalares

Este é um cavalo de batalha
a representação gregária do ditado fundido
maré que dá cobertura
às imensas possibilidades
no terreiro onde se terçam as emboscadas.

Este é um cavalo de Troia
coisa específica dos peritos informáticos
agente conspirativo que se insinua
nos interstícios da fala acomodada.

Este é um puro sangue lusitano
para gáudio das namoradeiras
que se emprestam à volúpia.

(Que não seja evocado
o cavalo branco
por decência democrática.)

Este é o aroma a cavalo
modismo ecológico do banho ausente
que a água escasseia
e os odores naturais da epiderme
são tributo à natureza.

Este é o cavalo a que não se olha o dente
prodigalidade asceta
no teatro intemporal das oferendas
(e mandam os cânones da boa educação
que uma oferenda não se enjeite).

#1591

[Crónicas do vírus, CLVII]

Ao fim 
destes anos todos
uma aula em calções de banho.

#1590

[Crónicas do vírus, CLVI]

Agora
que a balsa é comum
as fronteiras
medem a loucura dos homens.

25.5.20

#1589

[Crónicas do vírus, CLV]

Quanto(a)s fadas do lar
se perderam
por excesso de uso? 

Sumário

A espada hasteada
súmula da viril fala
amontoada na gramática restante,
poderosamente destrutiva
amputando as maiêuticas propriedades
do verbo escorreito.
A História parece imprestável.
Não fruem, as suas lições.
Postule-se alternativo entendimento
para dos próceres se admitir
que são a antítese perfeito da sensatez.
Na paragem do metro
ouço um senhor vetusto a vociferar,
sozinho.
Acabou de estilizar a ideia
dos próceres serem pré-admitidos
depois de aprovarem 
a exigentes exames de História.

#1588

[Crónicas do vírus, CLIV]

Está provado:
a cidade não foi feita
para passar em câmara lenta. 

24.5.20

#1587

[Crónicas do vírus, CLIII]

É hora
de testar
os testes.

#1586

[Crónicas do vírus, CLII]

(Ou a Pandora
instruções para não abrir a caixa
deviam ter sido dadas.)

#1585

[Crónicas do vírus, CLI]

A Pandora
nunca deviam ter dado
uma caixa.

23.5.20

#1584

[Crónicas do vírus, CL]

O sobressalto
que locupleta pesadelos
mora sempre na casa do lado. 

Os tolos e os bolos

Do império das ilusões,
onde medram os iconoclastas do fingimento,
irradia o úbere que parece não ter fim. 
Não sabem os apóstatas 
que ludibriam a grelha das leituras,
que sem o trivial mandamento dos ardis,
sem a contínua miragem
que desfila na vertigem do descontentamento,
não derrotam o umbral da irrelevância. 
Dantes
enganavam-se tolos com bolos:
quase todos 
tinham uma cortina baça 
a travar o entendimento,
e suseranos demoravam-se 
na inércia dos demais. 
Hoje 
só mudou a espessura da cortina:
o teatro das ilusões acostuma-se,
vem à cena dentro de outra cena
mais geral,
numa intempérie 
disfarçada de interminável estio,
e suserano é quem, 
da empreitada de convencer os comuns
que um direito geral 
a uma constelação de direitos existe,
se saldar com distinção. 
Agora
é dever instruir os tolos que não são tolos
(um dever com serventia de um direito geral).
Fica mais fácil
enganá-los com bolos baldios.

#1583

[Crónicas do vírus, CXLIX]

Vultos asininos
ensaiam a anestesia
dos gatos assanhados.

22.5.20

Le flâneur du temps

Contra a servidão:
o fogo puído
contrato do gosto sem peias
domínio da vontade. 
Um chá sem horas
daqueles sem borras
que pelo caminho alisei o diadema
e sem saber
loquaz me fiz 
juiz sem confins.

#1582

[Crónicas do vírus, CXLVIII]

Amortalhar o tédio,
a cidadela por miragem.

21.5.20

Dezanove mil e sessenta e sete

Se ao menos 
a superstição habitasse em mim
e pudesse ficar refém 
da linguagem simbólica
da numerologia
das cifras que se intuem de signos,
diria,
ao calcular

dezanove mil e sessenta e sete dias

de vida corrente,
que seria elegia possivelmente a destempo
ou usurária contabilidade sem préstimo.

Não sou

(almofadado pela superstição
cultor de simbologias
propenso à linguagem dos números
ou a outras insondáveis pelejas
que emergem do misterioso nevoeiro
escondido no cais).

A lição de Goethe
é o norte preciso:
não são 
os dezanove mil e sessenta e sete dias
a custódia desta alma;
é o último 
dos dezanove mil e sessenta e sete dias
o que tenho entre os dedos
e que não deixo contaminado pelo esquecimento.

Se em mim houvesse quarto habitável
para as descodificações do inenarrável
se de mim desse o flanco
a esoterismos tomados pelas piores conspirações
subiria ao estirador
e, em solene momento,
desenharia a interrogação:

que fração
dos dezanove mil e sessenta e sete dias
falta
para a finitude?

Mas esse quarto 
não pertence
à arquitetura de mim.

#1581

[Crónicas do vírus, CXLVII]

Dizer
“caiu a máscara”
ganhará um novo sentido.

#1580

[Crónicas do vírus, CXLVI]

A conspiração 
do tempo.
A conspiração 
do vento.

20.5.20

#1579

[Crónicas do vírus, CXLV]

Deleitoso
é tão fronteiro
de delituoso.

Prémio da montanha (e outros diletantismos)

Sísifo só se esqueceu
da rosácea aberta no peito 
– e da memória seletiva.
O que dele se diz
não é da ordem da mitologia:
hoje 
ele há tantos Sísifos
material ambulante de um certo realismo
e, contudo,
nunca o conforto foi tanto.

Os pirómanos
sempre ansiosos por um fósforo atear
bolçam convulsões interiores
lançam âncora
nos filósofos do descompromisso
os eternos arautos da eterna insatisfação.

Pressuposto:
a insatisfação
é heurística.

A Sísifo
só faltava
uma candeia de informação
(para não cair 
no logro de si mesmo).

#1578

[Crónicas do vírus, CXLIV]

Para uma guerra
não é preciso
armas
e inimigos com rosto.

#1577

[Crónicas do vírus, CXLIII]

Os pés trémulos temos
neste vasto, desconhecido chão
que, hesitantes, pisamos.