11.6.20

Praça do Chile

Não sabia

que África podia ser

em Lisboa.

Às onze da noite

o calor estático

engana 

o equinócio das horas.

Não sabia

que as palavras

podiam escorrer,

suadas.

#1619

[Crónicas do vírus, CXC]

 

Os prazos de validade

deixaram de contar.

10.6.20

#1618

[Crónicas do vírus, CLXXXIX]

Já em desconto do tempo:
o milagre 
denunciado como ilusão estatística
(ou embuste não negligenciável).

O juro sem taxa

No esconderijo
onde somos cúmplices
ganhamos vagar ao tempo.
Os socalcos que se não gastam
no rumorejo da tarde seca
infundem a semântica avulsa
e sabemos
que no segregar dos verbos incensos
temos as mãos sufragadas.
Somos
já o sabemos
o que os amantes sabem ser.

#1617

[Crónicas do vírus, CLXXXVIII]

Os daninhos deões
disfarçados
de divindades deontológicas.

9.6.20

Os bons olhos

Ao que dizes
são bons 
os olhos que me veem.
Parto do pressuposto
da validade dos olhos

(até porque aspiro
a que seja de idêntica linhagem
o que os teus bons olhos veem).

Repito:
parto do pressuposto
da validade dos olhos:
afligia-me
ter no meu círculo
gente de má rês.

Porém, 
permite-me
um porém:
sem querer esconjurar
a reflexividade feérica 
que tens dos teus olhos
não sei

(também não sabes
a menos que te lo certifiquem
oculistas credenciados)

se não há miopia 
em teu pesar das circunstâncias.

Antes de prova em contrário
travo como bons os olhos teus;
mas, 
até prova em contrário,
podes garantir
que não são teus olhos
uma corruptela do que soíam ser?
É que te vejo 
ornamentado de lentes
quando dantes te sabia
isento do maximizador de dioptrias.

Não te apoquentes:
não é por se servirem de lentes
que os olhos 

(teus 
ou de outrem)

deixam de ser bons.
Era só eu 
a erradicar a monotonia
e a provocar um sobressalto 
na tua autoestima.

#1616

[Crónicas do vírus, CLXXXVII]

Mastermind da estética:
princípio geral da máscara
e os dentistas tinham falido.

#1615

[Crónicas do vírus, CLXXXVI]

Agora que acabou 
o milagre e o exemplo
fazemos de conta,
mestres da cosmética.

8.6.20

O prémio dos surdos

Dizias:
eu trago no avesso de mim
um tesouro da Mesopotâmia
o ouro esquecido em mortalhas
e num copo de uma bebida branca
arrefeço a intempérie.

E eu
não sabia o que dizer;
amadurecia o silêncio
(talvez o silêncio descobrisse
a palavra certa 
– mas, e por que era precisa 
a palavra certa?)
Convocatórias de demónios
eram em barda
vultos vaidosos povoando os deuses
miragens cultivadas em sementes de laboratório
um pisa papeis calcando um dedo distraído
e o deboche em surdina
denunciando os querubins sem açaime.
Não dizia nada
e contudo
as ideias atropelavam-se à boca de cena
caiando o silêncio 
com o fermento das palavras retesadas.

Dizias
nunca soube entender 
as margens arrematadas
os longínquos nevoeiros sem maresia
as estátuas disformes à porta da galeria
a gente despenhada no cofre da audácia
as fronhas das almofadas fora do lugar
como prova do sono.

Desarmado 
continuava desarmado
(ou não intuía
o significado das tuas palavras).
A tela era o epitome da claridade
e aos oximoros dizíamos 
nada
dizimados pelo contrabando das almas
atingidos pela trovoada da insensatez.

#1614

[Crónicas do vírus, CLXXXV]

Tudo está pior
do que parece 
– a análise nunca teve 
fendas tão fundas.

#1613

[Crónicas do vírus, CLXXXIV]

Tudo está melhor
do que parece 
– a análise nunca teve 
fendas tão fundas.

7.6.20

Imenso

Que fronteira?
Que trincheira?
Desabrigo o estertor
sob a sombra da árvore
cavado o eclipse 
na penumbra meã. 
De um lado
a trincheira
do outro a fronteira:
se uma escotilha se esconde 
e a luz diurna 
fica refém de uma flor.

#1612

[Crónicas do vírus, CLXXXIII]

A desigualdade 
continua a ser
o cárcere das vaias.

6.6.20

#1611

[Crónicas do vírus, CLXXXII]

Ao menos
ficamos todos a saber
um pouco
de (ilusão) estatística.

Envelope

Completo o uivo primaz
a serra tirada ao vento
só pela jura do promontório
e as danças rasuradas 
com o mar de amparo
são o caudal onde me costuro.
Talvez conjure os desábitos
matricial fundamento da respiração
e de dois em dois dias
saiba o significado de véspera
o possível amortecer da alma sem dores
e as notívagas candeias sejam mais
do que prometem.
Completo
o uivo diletante
a gema de ovo que se deslaça da carne
o verbo fértil que se abraça ao osso
à espera de um juiz diuturno
a ponte hasteada 
na voz povoada pelo ágil confesso
desrazão válida para a perdição inteira.

#1610

[Crónicas do vírus, CLXXXI]

Quando estavam em casa
as pessoas só ouviam
house music.

5.6.20

#1609

[Crónicas do vírus, CLXXX]

No império das máscaras
(perenes?)
lay-off para o curador
das expressões faciais.

O mar das miragens

Levanta-se o vento na gárgula derruída.

As lamentações correm contra o sol
e viúvas sem perdição
convocam os deuses
lembram-se de tempos salientes
da coabitação num casulo imberbe
do tempo que foram perdendo
que não é do posterior ao enviuvar.

Levanta-se o vento que cicia verbos vãos.

Há nos chapéus de cerimónia
a negação da cerimónia
por visível demissão da estética.
Se ao menos se conservasse a memória
e dela desemudecessem os falantes emparedados
não era preciso estafar os dias em viperina língua
adormecer a perguntar se era por fim.

Um piano insubmisso justapõe-se no céu decadente.

Só se ouve o silêncio parado na sua marcha 
por episódicas sílabas dos pássaros passeantes.
Nada disto interessa à viuvez.
Sabem as respostas todas
a condoída mágoa servida nas abas da injustiça.
Se ao menos o vento recuasse
se fosse de soprar de trás para a frente
podia o tempo gasto ser resgatado
e os consortes levados em braços pela morte
estariam impecavelmente esperando
sedentos de palavras e de sexo
à sua sorte amada.

Disto trata o retardamento da morte das viúvas.

Mas o vento não passa da gárgula derruída
isolando as paredes encardidas com fungos literais
sem notário das esperanças das enviuvadas.

#1608

[Crónicas do vírus, CLXXIX]

Não é o carnaval
nem os caretos de Podence;
são as máscaras
perenes?

#1607

[Crónicas do vírus, CLXXVIII]

E agora
que o desmedo se entronizou,
a um passo da extravagância
(outra vez).

4.6.20

Dó menor

O vocábulo pristino
capricho insanável
do deboche sibilino
no cárcere improvável
em catálogo uterino.

O vaguear vendável
desembaraça o caprino
e do olhar formidável
o verso intestino
em página involúvel.

Sem teto sistino
porfia-se o realizável
desafiando o cabotino
em seu mapa penhorável
contra o bafo suíno.

#1606

[Crónicas do vírus, CLXXVII]

Quem define a mentira
se a mentira se esconde
atrás de uma máscara?

#1605

[Crónicas do vírus, CLXXVI]

Um festival
de cancelamentos.

3.6.20

A mão com emenda

“Emendei a mão”,
disse
entregando-se à súplica,
o fermento do arrependimento.

Não se via emenda 
que fosse de ver:
a mão continuava como era
e sem cicatriz tatuada
não podia certificar a súplica.

Insistia:
“emendei a mão, acredita”.
Continuava a esquadrinhar a mão
em demanda de cicatrizes demonstrativas
sinais exteriores de uma emenda à mão.
Não foi por défice de atenção
ou por fragilizada inspeção:
a mão não tem emenda
(disse,
sendo logo treslidas 
as minhas palavras).

Talvez fosse a mão errada
e a outra 
– a que mostrada me não foi – 
a penhora da emenda.

Já não fui a tempo.
Mal a mão sem emenda foi cartografada
o seu detentor virou costas,
ultrajado,
deixando-me preso 
ao silêncio não inocente.
O silêncio que não se cura
com tatuagem.

#1604

[Crónicas do vírus, CLXXV]

Nada 
foi adiado.
Já tudo
estava adiado.

2.6.20

#1603

[Crónicas do vírus, CLXXIV]

A saliva da maledicência
nunca perdeu
êmbolo.

Distância

Não é muita a comoção
nem a rendição arregaça mangas
que do opúsculo achado no alfarrabista
devolvo a mim as palavras em olvido
pétalas sarcásticas que chovem na aridez
e denunciam os apetrechados mastins
da gongórica oração.

Não é muita a ilusão
nem a profusão de manhãs sem alecrim
que no teatro do olhar resgatado a um anão
transcendo os poemas em levitação
frutos oníricos que maduram na planície
e convocam os adestrados sacristãos
da protuberância irrisória.

Não é muita a mistificação
nem a calcificação arremata certezas
que na plateia destronada por teimosos
ideio os socalcos que desenham as almas
navios alinhados no horizonte mareado
e patrulhas dos faróis vigilantes
da folclórica persuasão.

#1602

A reaprendizagem
dos rituais.

1.6.20

A gravata do tempo

É quando apetece
dar uma gravata 
ao tempo
estrangulando-o civicamente
para que não seja embaraço 
– as vezes
em que à boca sobe
a sede do intemporal.

Também há tempos
em que apetece aliviar a jugular
libertando o tempo
da gravata que é seu ornato.

Quem disse
que o tempo
é uma medida objetiva?

#1601

[Crónicas do vírus, CLXXII]

Já não constam
do porvir
as miragens sem sede.