13.7.20

Vem aí o futuro

Vem aí o futuro

e tu estás à espera

que se faça pretérito?

 

Desarrumas os vitrais

onde se emolduram 

as léguas do tempo

no inviável sarcasmo do teu oposto

a que deitas mão 

quando mais o denegas. 

Não sabes 

da bitola em que se liquida

o corpo presente

o indomável motejo que diriges ao arcaico. 

 

E repetes:

vem aí o futuro

e tu sabes 

que é já no ontem parafraseado.

Pois o futuro

quando o agarras

enquistou-se no passado.

#1657

[Crónicas do vírus, CCXXVIII]

 

A semântica

em rota de colisão

com a matemática.

12.7.20

#1656

[Crónicas do vírus, CCXXVII]

 

Os louvores

foram a comenda

do excesso de confiança.

11.7.20

#1655

[Crónicas do vírus, CCXXVI]

 

Não há rostos

só 

semi-rostos.

10.7.20

Desoperário

Amolecem os mercadores 

antes que sobejem as invetivas

ou o marasmo sem chave de segurança.

Os nós atam-se na fortaleza

e somos nós que os desembaciamos

com a ajuda de uma matinal neblina,

o sucedâneo da massa consistente,

que tem mais poderes do que uma batina.

Não é lavra ser engenheiro

nem os planos exigem matemática forense:

projeta-se o entardecer 

no relvado de que é sobranceira a varanda

e a pauta fornece a música 

sem critério.

Oxalá não seja tarde

e que as engrenagens

não sucumbam à ferrugem

para ser marinheiro em praça forte

e do livro empunhado

legar 

em voz exata

um poema nada homérico.

#1654

[Crónicas do vírus, CCXXV]

 

O termostato da esquizofrenia

nunca esteve tão fervente:

nada está bem

mas tudo parece que sim.

9.7.20

Pescoço sem colarinho

O manifesto em marcha-atrás

a alcachofra acabada de gratinar

(depois de recusado o acesso

ao armazém dos escuteiros)

batinas exigindo beija-mão

em locupletadas avenidas

onde se reverberam 

os anões disfarçados de pimpões

e os curas que abençoam 

ábacos de bom comportamento.

Recria-se um adeus:

diligentes,

os atores ensaiam lágrimas

e amplificam as estrofes

de-vi-da-men-te si-la-ba-das.

Ah, 

se na toca dos meãos

houvesse fermento de padeiro

e à massa crítica fosse vertido

deste lugar dir-se-ia 

um esplendor de eruditos

um arrojo de tecnologia avançada.

Mas a marcha-atrás

depois de engrenada

é difícil de derrotar.

#1653

[Crónicas do vírus, CCXXIV]

 

Quem disse

que a normalidade era miragem

se voltámos a ser

os patinhos feios da Europa?

8.7.20

#1652

[Crónicas do vírus, CCXXIII]

 

É como nas corridas de bicicleta:

no início, o fôlego todo

e depois 

ultrapassado por quase todos.

Quatro mãos (ou apenas duas?)

A obra 

foi escrita

a quatro mãos. 

Só se for 

na era dos computadores

se não

eram quatro os autores

a menos

que dois fossem os escreventes

e ambidestros fossem. 

De outro modo

fica provado

 

(expressão idiomática:

à saciedade,

como diria 

a nata da burguesia portuense)

 

que os tempos 

são a transfiguração 

dos usos.

#1651

[Crónicas do vírus, CCXXII]

 

Agora

somos todos

atores

(definitivamente).

7.7.20

Não contem aos descamisados que são descamisados

Estes ovos 

não se fazem

sem omeletes. 

Podia ser um breviário do surrealismo

com quadros de vison

em baixela de fundo,

um canapé fumado com dedo mindinho,

ou um fundo sem pé

estiolando a toponímia para dar fundo

 

(ao critério do leitor:

sobre o atlas local

nos arrabaldes da capital cidade,

ou sobre lúbrica matéria).

 

Revendo a matéria dada:

estes ovos não se fazem

sem Hamlet. 

O conspícuo saleiro 

vertendo azotados cristais

na prebenda da culinária de fusão 

– ou então,

as braçadas de um engenheiro arrependido

só para ter como rival

a excelência entre as excelências

e na piscina sem muros

encontrar seu covil. 

 

Não admira

que os olhos lancem fisgas

sobre a portela onde se agigantam as elites:

a suave, disfarçada decadência

vertida em maneirismos burgueses

é pergaminho de uns quantos,

um punhado apenas:

besuntam-se de uma franquia regional

que destempera um ódio falaz,

um ódio que é fingimento de inveja.

Eles 

são os ovos

a quem falta omelete

e conhecimento de Hamlet.

#1650

[Crónicas do vírus, CCXXI]

 

Apesar das resistências,

seremos metáforas

do que fomos.

6.7.20

Mestiço

Os campos contestam

o estado derruído dos dias constantes

em sua galharda harmonia

como se terçassem uma independência viril

contra o remoço dos apavorados meãos

que de seu nome tinham artesãos. 

Se ao menos 

o entardecer não se diluísse

na centrifugação dos verbos hábeis

e os melhores cuidassem do inventário do dia

haveria um travesseiro idílico por passagem

o troco certo contra a incúria

e ao pedestal viriam os magos sem disfarce

a porosa alquimia em remédio falante. 

Bicicletas roubadas falariam pelos despojados

uma gramática sem padrão

numa compilação de casas avençadas. 

O líquido recorrente

(incógnito)

atravessa uma meada dos campos

sem os destruir. 

Não havia modo de importunar 

o válido dizer em sua fala muda. 

Os dados ultrapassavam o tabuleiro

e alguém protestava

contra o viés das regras

como se fôssemos todos ingénuos

e soubéssemos 

que os códigos

são um diletantismo de um punhado 

só por si

sem serem à prova de dissidências. 

Não adornava a feição desconfiada

a meio do periscópio emergente,

o incansável feitor das obras sem gasto;

ele sabia 

como era povoar o silêncio

com palavras desarmadilhadas

o vício imaterial escondido 

em rostos impassíveis.

E mesmo assim

desemparedava as janelas promitentes

à espera de um luar modesto,

à espera

de um frémito apalavrado

no mosto da manhã

sobrepondo-se ao farto ciciar

dos pássaros 

que selam a alvorada. 

#1649

[Crónicas do vírus, CCXX]

 

Ao Tratado de Windsor

o vírus votou a indiferença.

4.7.20

A casa abandonada

Não é assombração

a casa proeminente

alçada sobre um vão,

sobranceira ao vale. 

Podia, 

ao abandono,

ressoar um palco de fantasmas,

lendas que fruem 

no céu-da-boca das fantasias. 

A casa 

está apenas emparedada

de ausente paradeiro. 

Exibe a glória de antanho

como os impérios idos,

averbados para memória futura.

3.7.20

Casting (erro)

O colossal carrossel

desmente a demarcação

por muito 

que uns putativos eruditos

escrevam 

desmarcação. 

É no parapeito da palavra

que sucumbem

ireneus com manias de intelectuais.

#1648

[Crónicas do vírus, CCXIX]

 

E se o pior

ainda nos mantiver

de atalaia?

2.7.20

#1647

[Crónicas do vírus, CCXVIII]

 

Ficou por confirmar

que somos

seres aprendentes?

30.6.20

#1646

[Crónicas do vírus, CCXVII]

 

Já não é

crime aos costumes

o rosto por escanhoar.

#1645

[Crónicas do vírus, CCXVI]

 

Prematuro

passou a rimar com

precipitação.

27.6.20

#1644

[Crónicas do vírus, CCXV]

 

Virada 

a embriaguez de autoestima

o anátema do patinho feio.

26.6.20

#1643

[Crónicas do vírus, CCXIV]

 

Começou

a corrida contra

os números

(pois não falam

o que deviam falar).

Dorna

Revólveres frios

fogem do fogo castrense

antes que castrados sejam

homéricos parceiros

a carne para canhão judiciosa.

 

Que estátuas merecem amanhã?

 

Não se diga 

que o ontem foi pródigo

em cascatas de medo

onde a chuva se cristaliza;

não se diga

que as juras tiveram eco

salicórnia a condizer

só para enganar maleitas habituadas;

não se diga

antes do adormecer

que sultões sem espada 

perdoaram boémios

e a vastidão do mar se enamorou

do ocre pintado sob a égide do ocaso.

 

Que estátuas perecem 

no punhal dos justiceiros sem nome?

 

Escutem-se os livros da História

antes que seja narrada uma história

que se agiganta num palco sem veios.

#1642

[Crónicas do vírus, CCXIII]

 

O milagre

reduzido 

às fantasias

de sua excelência.

25.6.20

Leme

Dentro do espelho

não há raízes

apenas 

o olhar límpido

desmatado de falas sombrias.

Nado por dentro do mar

colho o sal no sangue álgido

e nem assim 

sou elemento inato;

dantes 

o mar era juramento

e um gato enrolado no sono

mestramente súbdito do areal

onde bisturis metódicos se afunilam

sabe-se lá se à procura de tesouros

ou do ouro escondido nas próprias mãos.

Tiro o estibordo com a lente baça

e as asas desembaraçam-se do vento

em boa hora,

em boa hora.

Não fossem os heróis todos mortos

e a voz perdia o gongórico véu

para se somar à pastoril montanha

que desaparece na litania do horizonte.

Mas não sou viável cruzador

neste mar temperamental

não sou marinheiro 

por medo tido por penhor 

das náuseas matinais.

É em terra

que sinto o cofre

e da tua boca bebo o manancial

a língua que se enrola na minha

e os versos que sobem à crueza da pele

em remoinhos desalinhados.

Espero pela razia dos miseráveis

e não os tenho por materiais convenções:

os miseráveis

que se convocam na jactância

no solipsismo desarranjado

na vítrea fonte onde a água se empareda.

Até posso ser errante

que da minha transumância sou garante

em nome de um nome só

o nome que adoço na boca

quando 

a boca tua na minha tem fusão.

Para depois

antes de todas as vésperas

antes

que as janelas sejam desfronteiras

e todo o vento carregado de adjetivos

esbarre nas nossas couraças

seja eu promontório.

O alto:

para que a maré

pare a tempestade.

#1641

[Crónicas do vírus, CCXII]

 

Nunca

a dúvida metódica

garantiu tantos juros.

24.6.20

#1640

[Crónicas do vírus, CCXI]

 

Há os velhos do restelo

(vem aí a segunda vaga)

e os novos do restelo

(está tudo de feição).

Reino mau

Reino mau

história sem meio

terra de um rio também mau

e de profetas esquecidos no céu da boca.

 

Reino mau

que das boas coisas

andam os ilhéus exaustos

como se por exauridos estarem

se reformassem os vidros da catedral.

 

E reino mau

que meãos são os reis e as rainhas

em sua decadente pose

por cada deca dente rasurado por sucedâneos.

 

É mau 

o reino 

por ser sucedâneo de coisa nenhuma.

 

Não deem vivas 

à república

(antes que seja tempo).

#1639

[Crónicas do vírus, CCX]

 

Pernetas,

ostentamos o acinte

quando os números nos ultrajam.