21.7.20

#1667

[Crónicas do vírus, CCXXXVIII]

 

Quando acaba

esta primavera eterna?

20.7.20

Retribuição

Qual é o diâmetro

da nossa fragilidade?

É o medo 

que embalsamamos

no mecenato da loucura. 

 

Qual é o cianeto

do nosso abismo?

É o telúrico ritual 

que bebe nos costumes

em incontroversos verbos. 

 

Qual é o bónus

da nossa grandeza?

É o testemunho desembaciado

as sílabas terçadas em murmúrio

o colossal empenho em dias soturnos

o marasmo que derrotamos

em vigílias que não disfarçamos

antes que 

a fragilidade

o medo

a loucura

o abismo

e a moral

sejam nosso ergástulo.

#1666

[Crónicas do vírus, CCXXXVII]

 

A doença mais letal

é a sede de resgatar

um normal.

18.7.20

Busílis (ou: parecenças)

O busílis da questão

não se confunde

com fusilis

nem com fuzis

e muito menos

com fusíveis.

São os fungíveis,

aparentados,

os logros de cepa torta.

Fugidios,

os sentidos adulteram-se

numa lava que parece igual

e o não é:

o basalto em que devêm

cuida de exibir as diferenças.

E esse

é o busílis 

de todas as questões.

#1665

[Crónicas do vírus, CCXXXVI]

 

Fricção científica:

assim prossegue

a desarmonia dos cientistas.

17.7.20

A venda à venda

À venda

a venda que sentencia as trevas.

 

A venda

assim orquestrada

venda-se

pela menor das licitações.

 

À venda que veda

o maior dos perjúrios

o bem oximoro

mercancia sem bolsa de transações.

 

À venda 

que à venda está

que traga pecúlio zero.

 

E ao menos

depois da venda

a venda desembaraçada

e o ubere pronto para o manancial.

#1664

[Crónicas do vírus, CCXXXV]

 

O teatro

do excesso de confiança:

brincar com o fogo

sem ser época de incêndios.

16.7.20

A taça, ó glória

Disto

um piano

e as botas armadas

antes

que os fusíveis

se encomendem às trevas

e rasteiro

seja o adeus

em convocatória senil

e em rocha

se endureçam as lágrimas

que furtivas seriam

se estivesse de chuva. 

 

Daquilo

ou as peças de xadrez

todas entontecidas pelo viés

no amanhã

que se fragiliza no compasso

rastreado

no denodo das seitas

ergástulos

que dizem etecetera

depois das modas jogadas

em simétricas páginas sem linho.

 

Dito isto

afoguem-se as palavras excessivas

em malvasias fora de prazo

escanhoe-se a militância

a favor do tempero

misturem-se os opostos

a coreografia dos diferentes

armadura

contra a tribal pertença

em baias estreitas de impura rejeição

antes

que o centeio podre seja mantimento

e do restolho

rastejem os párias sem absoluta causa

os nefandos, imberbes

(mesmo que senis)

mastins da pose castrense

antes

que lhes caiam os dentes

e se afoguem no tanto salivar

em que se destilam

tão ufanos

tão insanos. 

#1663

[Crónicas do vírus, CCXXXIV]

 

O pensamento

prodigalizou-se.

15.7.20

As teias das elites

Entranha-se

este visco pútrido,

a banha sem cobra,

que desfila na fala dos insignes

como se deles fossemos devedores

e seu sangue fosse de ouro

e as nossas veias 

esgoto de seus dejetos.

A lapela não enjeitada

fornece vistoso miradouro às comendas

que os galões ou são ostentados

ou sobram para o residual conhecimento

e estes estéreis pais de todos nós

definham se lhes for omisso

o reconhecimento.

É como se vivessem para fora de si

(e fora de suas comarcas)

e eles a varanda 

a que os demais devem repetidas genuflexões

pois na sua carência ficaríamos devedores 

de um atraso de civilização.

Ufanos e jactantes

ensaboam-se em prosápia colossal

que de sumo verte um nada,

sentados na volumosa pedra estatutária

de onde dizem dimanar seu escol.

Os tolos restantes,

cerces de pontos cardeais,

ou apenas vulgarmente distraídos,

idolatram as relíquias

e contribuem

(sem saber, talvez)

para o legítimo retrocesso.

#1662

[Crónicas do vírus, CCXXXIII]

 

O vírus

tornou-se

a moldura do Portugal.

#1661

[Crónicas do vírus, CCXXXII]

 

Ó povo paradoxal,

ontem heróis banhados em milagres

amanhã peticionando contra a sem-razão. 

#1660

[Crónicas do vírus, CCXXXI]

 

Como pode lugar tão ínclito

ter como missão

a autocomiseração pela trela?

#1659

[Crónicas do vírus, CCXXX]

 

A pandemia cruel

que nos devolveu

ao quarto dos fundos.

14.7.20

Divagações semânticas com um pouco de ácido lúbrico à mistura

Qual é o feminino de mulherengo?

 

(Não conta como hipótese

mulherenga

sem desajuizar que também as há.)

 

Acordei com esta dúvida existencial.

(Também não entram no rol

desqualificativos

que rasuram a honra

de uma amazona carnal.)

 

Dei comigo

preso à obstipação vocabular.

 

            (A menos que seja minha incúria

            e o idioma conheça daquela

            palavra passaporte no feminino.)

 

Arrisquei uma ideia:

homenrenga.

 

            (Pois são tangentes os direitos

            e ninguém acuse de libertinagem

            as homenrengas da praça

            se é de aplauso a convivência

            com os mulherengos com linhagem

            sem nunca serem enredados

            no labéu da promiscuidade.)

#1658

[Crónicas do vírus, CCXXIX]

 

Não desistiram

de viver.

Essa foi

a grande vitória.

13.7.20

Vem aí o futuro

Vem aí o futuro

e tu estás à espera

que se faça pretérito?

 

Desarrumas os vitrais

onde se emolduram 

as léguas do tempo

no inviável sarcasmo do teu oposto

a que deitas mão 

quando mais o denegas. 

Não sabes 

da bitola em que se liquida

o corpo presente

o indomável motejo que diriges ao arcaico. 

 

E repetes:

vem aí o futuro

e tu sabes 

que é já no ontem parafraseado.

Pois o futuro

quando o agarras

enquistou-se no passado.

#1657

[Crónicas do vírus, CCXXVIII]

 

A semântica

em rota de colisão

com a matemática.

12.7.20

#1656

[Crónicas do vírus, CCXXVII]

 

Os louvores

foram a comenda

do excesso de confiança.

11.7.20

#1655

[Crónicas do vírus, CCXXVI]

 

Não há rostos

só 

semi-rostos.

10.7.20

Desoperário

Amolecem os mercadores 

antes que sobejem as invetivas

ou o marasmo sem chave de segurança.

Os nós atam-se na fortaleza

e somos nós que os desembaciamos

com a ajuda de uma matinal neblina,

o sucedâneo da massa consistente,

que tem mais poderes do que uma batina.

Não é lavra ser engenheiro

nem os planos exigem matemática forense:

projeta-se o entardecer 

no relvado de que é sobranceira a varanda

e a pauta fornece a música 

sem critério.

Oxalá não seja tarde

e que as engrenagens

não sucumbam à ferrugem

para ser marinheiro em praça forte

e do livro empunhado

legar 

em voz exata

um poema nada homérico.

#1654

[Crónicas do vírus, CCXXV]

 

O termostato da esquizofrenia

nunca esteve tão fervente:

nada está bem

mas tudo parece que sim.

9.7.20

Pescoço sem colarinho

O manifesto em marcha-atrás

a alcachofra acabada de gratinar

(depois de recusado o acesso

ao armazém dos escuteiros)

batinas exigindo beija-mão

em locupletadas avenidas

onde se reverberam 

os anões disfarçados de pimpões

e os curas que abençoam 

ábacos de bom comportamento.

Recria-se um adeus:

diligentes,

os atores ensaiam lágrimas

e amplificam as estrofes

de-vi-da-men-te si-la-ba-das.

Ah, 

se na toca dos meãos

houvesse fermento de padeiro

e à massa crítica fosse vertido

deste lugar dir-se-ia 

um esplendor de eruditos

um arrojo de tecnologia avançada.

Mas a marcha-atrás

depois de engrenada

é difícil de derrotar.

#1653

[Crónicas do vírus, CCXXIV]

 

Quem disse

que a normalidade era miragem

se voltámos a ser

os patinhos feios da Europa?

8.7.20

#1652

[Crónicas do vírus, CCXXIII]

 

É como nas corridas de bicicleta:

no início, o fôlego todo

e depois 

ultrapassado por quase todos.

Quatro mãos (ou apenas duas?)

A obra 

foi escrita

a quatro mãos. 

Só se for 

na era dos computadores

se não

eram quatro os autores

a menos

que dois fossem os escreventes

e ambidestros fossem. 

De outro modo

fica provado

 

(expressão idiomática:

à saciedade,

como diria 

a nata da burguesia portuense)

 

que os tempos 

são a transfiguração 

dos usos.

#1651

[Crónicas do vírus, CCXXII]

 

Agora

somos todos

atores

(definitivamente).

7.7.20

Não contem aos descamisados que são descamisados

Estes ovos 

não se fazem

sem omeletes. 

Podia ser um breviário do surrealismo

com quadros de vison

em baixela de fundo,

um canapé fumado com dedo mindinho,

ou um fundo sem pé

estiolando a toponímia para dar fundo

 

(ao critério do leitor:

sobre o atlas local

nos arrabaldes da capital cidade,

ou sobre lúbrica matéria).

 

Revendo a matéria dada:

estes ovos não se fazem

sem Hamlet. 

O conspícuo saleiro 

vertendo azotados cristais

na prebenda da culinária de fusão 

– ou então,

as braçadas de um engenheiro arrependido

só para ter como rival

a excelência entre as excelências

e na piscina sem muros

encontrar seu covil. 

 

Não admira

que os olhos lancem fisgas

sobre a portela onde se agigantam as elites:

a suave, disfarçada decadência

vertida em maneirismos burgueses

é pergaminho de uns quantos,

um punhado apenas:

besuntam-se de uma franquia regional

que destempera um ódio falaz,

um ódio que é fingimento de inveja.

Eles 

são os ovos

a quem falta omelete

e conhecimento de Hamlet.

#1650

[Crónicas do vírus, CCXXI]

 

Apesar das resistências,

seremos metáforas

do que fomos.

6.7.20

Mestiço

Os campos contestam

o estado derruído dos dias constantes

em sua galharda harmonia

como se terçassem uma independência viril

contra o remoço dos apavorados meãos

que de seu nome tinham artesãos. 

Se ao menos 

o entardecer não se diluísse

na centrifugação dos verbos hábeis

e os melhores cuidassem do inventário do dia

haveria um travesseiro idílico por passagem

o troco certo contra a incúria

e ao pedestal viriam os magos sem disfarce

a porosa alquimia em remédio falante. 

Bicicletas roubadas falariam pelos despojados

uma gramática sem padrão

numa compilação de casas avençadas. 

O líquido recorrente

(incógnito)

atravessa uma meada dos campos

sem os destruir. 

Não havia modo de importunar 

o válido dizer em sua fala muda. 

Os dados ultrapassavam o tabuleiro

e alguém protestava

contra o viés das regras

como se fôssemos todos ingénuos

e soubéssemos 

que os códigos

são um diletantismo de um punhado 

só por si

sem serem à prova de dissidências. 

Não adornava a feição desconfiada

a meio do periscópio emergente,

o incansável feitor das obras sem gasto;

ele sabia 

como era povoar o silêncio

com palavras desarmadilhadas

o vício imaterial escondido 

em rostos impassíveis.

E mesmo assim

desemparedava as janelas promitentes

à espera de um luar modesto,

à espera

de um frémito apalavrado

no mosto da manhã

sobrepondo-se ao farto ciciar

dos pássaros 

que selam a alvorada.