[Crónicas do vírus, CCXXXVIII]
Quando acaba
esta primavera eterna?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Qual é o diâmetro
da nossa fragilidade?
É o medo
que embalsamamos
no mecenato da loucura.
Qual é o cianeto
do nosso abismo?
É o telúrico ritual
que bebe nos costumes
em incontroversos verbos.
Qual é o bónus
da nossa grandeza?
É o testemunho desembaciado
as sílabas terçadas em murmúrio
o colossal empenho em dias soturnos
o marasmo que derrotamos
em vigílias que não disfarçamos
antes que
a fragilidade
o medo
a loucura
o abismo
e a moral
sejam nosso ergástulo.
O busílis da questão
não se confunde
com fusilis
nem com fuzis
e muito menos
com fusíveis.
São os fungíveis,
aparentados,
os logros de cepa torta.
Fugidios,
os sentidos adulteram-se
numa lava que parece igual
e o não é:
o basalto em que devêm
cuida de exibir as diferenças.
E esse
é o busílis
de todas as questões.
À venda
a venda que sentencia as trevas.
A venda
assim orquestrada
venda-se
pela menor das licitações.
À venda que veda
o maior dos perjúrios
o bem oximoro
mercancia sem bolsa de transações.
À venda
que à venda está
que traga pecúlio zero.
E ao menos
depois da venda
a venda desembaraçada
e o ubere pronto para o manancial.
[Crónicas do vírus, CCXXXV]
O teatro
do excesso de confiança:
brincar com o fogo
sem ser época de incêndios.
Disto
um piano
e as botas armadas
antes
que os fusíveis
se encomendem às trevas
e rasteiro
seja o adeus
em convocatória senil
e em rocha
se endureçam as lágrimas
que furtivas seriam
se estivesse de chuva.
Daquilo
ou as peças de xadrez
todas entontecidas pelo viés
no amanhã
que se fragiliza no compasso
rastreado
no denodo das seitas
ergástulos
que dizem etecetera
depois das modas jogadas
em simétricas páginas sem linho.
Dito isto
afoguem-se as palavras excessivas
em malvasias fora de prazo
escanhoe-se a militância
a favor do tempero
misturem-se os opostos
a coreografia dos diferentes
armadura
contra a tribal pertença
em baias estreitas de impura rejeição
antes
que o centeio podre seja mantimento
e do restolho
rastejem os párias sem absoluta causa
os nefandos, imberbes
(mesmo que senis)
mastins da pose castrense
antes
que lhes caiam os dentes
e se afoguem no tanto salivar
em que se destilam
tão ufanos
tão insanos.
Entranha-se
este visco pútrido,
a banha sem cobra,
que desfila na fala dos insignes
como se deles fossemos devedores
e seu sangue fosse de ouro
e as nossas veias
esgoto de seus dejetos.
A lapela não enjeitada
fornece vistoso miradouro às comendas
que os galões ou são ostentados
ou sobram para o residual conhecimento
e estes estéreis pais de todos nós
definham se lhes for omisso
o reconhecimento.
É como se vivessem para fora de si
(e fora de suas comarcas)
e eles a varanda
a que os demais devem repetidas genuflexões
pois na sua carência ficaríamos devedores
de um atraso de civilização.
Ufanos e jactantes
ensaboam-se em prosápia colossal
que de sumo verte um nada,
sentados na volumosa pedra estatutária
de onde dizem dimanar seu escol.
Os tolos restantes,
cerces de pontos cardeais,
ou apenas vulgarmente distraídos,
idolatram as relíquias
e contribuem
(sem saber, talvez)
para o legítimo retrocesso.
[Crónicas do vírus, CCXXXII]
Ó povo paradoxal,
ontem heróis banhados em milagres
amanhã peticionando contra a sem-razão.
[Crónicas do vírus, CCXXXI]
Como pode lugar tão ínclito
ter como missão
a autocomiseração pela trela?
Qual é o feminino de mulherengo?
(Não conta como hipótese
mulherenga
sem desajuizar que também as há.)
Acordei com esta dúvida existencial.
(Também não entram no rol
desqualificativos
que rasuram a honra
de uma amazona carnal.)
Dei comigo
preso à obstipação vocabular.
(A menos que seja minha incúria
e o idioma conheça daquela
palavra passaporte no feminino.)
Arrisquei uma ideia:
homenrenga.
(Pois são tangentes os direitos
e ninguém acuse de libertinagem
as homenrengas da praça
se é de aplauso a convivência
com os mulherengos com linhagem
sem nunca serem enredados
no labéu da promiscuidade.)
Vem aí o futuro
e tu estás à espera
que se faça pretérito?
Desarrumas os vitrais
onde se emolduram
as léguas do tempo
no inviável sarcasmo do teu oposto
a que deitas mão
quando mais o denegas.
Não sabes
da bitola em que se liquida
o corpo presente
o indomável motejo que diriges ao arcaico.
E repetes:
vem aí o futuro
e tu sabes
que é já no ontem parafraseado.
Pois o futuro
quando o agarras
enquistou-se no passado.
Amolecem os mercadores
antes que sobejem as invetivas
ou o marasmo sem chave de segurança.
Os nós atam-se na fortaleza
e somos nós que os desembaciamos
com a ajuda de uma matinal neblina,
o sucedâneo da massa consistente,
que tem mais poderes do que uma batina.
Não é lavra ser engenheiro
nem os planos exigem matemática forense:
projeta-se o entardecer
no relvado de que é sobranceira a varanda
e a pauta fornece a música
sem critério.
Oxalá não seja tarde
e que as engrenagens
não sucumbam à ferrugem
para ser marinheiro em praça forte
e do livro empunhado
legar
em voz exata
um poema nada homérico.
[Crónicas do vírus, CCXXV]
O termostato da esquizofrenia
nunca esteve tão fervente:
nada está bem
mas tudo parece que sim.
O manifesto em marcha-atrás
a alcachofra acabada de gratinar
(depois de recusado o acesso
ao armazém dos escuteiros)
batinas exigindo beija-mão
em locupletadas avenidas
onde se reverberam
os anões disfarçados de pimpões
e os curas que abençoam
ábacos de bom comportamento.
Recria-se um adeus:
diligentes,
os atores ensaiam lágrimas
e amplificam as estrofes
de-vi-da-men-te si-la-ba-das.
Ah,
se na toca dos meãos
houvesse fermento de padeiro
e à massa crítica fosse vertido
deste lugar dir-se-ia
um esplendor de eruditos
um arrojo de tecnologia avançada.
Mas a marcha-atrás
depois de engrenada
é difícil de derrotar.
[Crónicas do vírus, CCXXIV]
Quem disse
que a normalidade era miragem
se voltámos a ser
os patinhos feios da Europa?
[Crónicas do vírus, CCXXIII]
É como nas corridas de bicicleta:
no início, o fôlego todo
e depois
ultrapassado por quase todos.
A obra
foi escrita
a quatro mãos.
Só se for
na era dos computadores
se não
eram quatro os autores
a menos
que dois fossem os escreventes
e ambidestros fossem.
De outro modo
fica provado
(expressão idiomática:
à saciedade,
como diria
a nata da burguesia portuense)
que os tempos
são a transfiguração
dos usos.
Estes ovos
não se fazem
sem omeletes.
Podia ser um breviário do surrealismo
com quadros de vison
em baixela de fundo,
um canapé fumado com dedo mindinho,
ou um fundo sem pé
estiolando a toponímia para dar fundo
(ao critério do leitor:
sobre o atlas local
nos arrabaldes da capital cidade,
ou sobre lúbrica matéria).
Revendo a matéria dada:
estes ovos não se fazem
sem Hamlet.
O conspícuo saleiro
vertendo azotados cristais
na prebenda da culinária de fusão
– ou então,
as braçadas de um engenheiro arrependido
só para ter como rival
a excelência entre as excelências
e na piscina sem muros
encontrar seu covil.
Não admira
que os olhos lancem fisgas
sobre a portela onde se agigantam as elites:
a suave, disfarçada decadência
vertida em maneirismos burgueses
é pergaminho de uns quantos,
um punhado apenas:
besuntam-se de uma franquia regional
que destempera um ódio falaz,
um ódio que é fingimento de inveja.
Eles
são os ovos
a quem falta omelete
e conhecimento de Hamlet.
Os campos contestam
o estado derruído dos dias constantes
em sua galharda harmonia
como se terçassem uma independência viril
contra o remoço dos apavorados meãos
que de seu nome tinham artesãos.
Se ao menos
o entardecer não se diluísse
na centrifugação dos verbos hábeis
e os melhores cuidassem do inventário do dia
haveria um travesseiro idílico por passagem
o troco certo contra a incúria
e ao pedestal viriam os magos sem disfarce
a porosa alquimia em remédio falante.
Bicicletas roubadas falariam pelos despojados
uma gramática sem padrão
numa compilação de casas avençadas.
O líquido recorrente
(incógnito)
atravessa uma meada dos campos
sem os destruir.
Não havia modo de importunar
o válido dizer em sua fala muda.
Os dados ultrapassavam o tabuleiro
e alguém protestava
contra o viés das regras
como se fôssemos todos ingénuos
e soubéssemos
que os códigos
são um diletantismo de um punhado
só por si
sem serem à prova de dissidências.
Não adornava a feição desconfiada
a meio do periscópio emergente,
o incansável feitor das obras sem gasto;
ele sabia
como era povoar o silêncio
com palavras desarmadilhadas
o vício imaterial escondido
em rostos impassíveis.
E mesmo assim
desemparedava as janelas promitentes
à espera de um luar modesto,
à espera
de um frémito apalavrado
no mosto da manhã
sobrepondo-se ao farto ciciar
dos pássaros
que selam a alvorada.