[Crónicas do vírus, CCLXI]
Por sobre as sombras
as palavras distraídas
num choro emudecido.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Hoje é dia de Baco.
Assim vai o imperador
já sem o anzol
que o destronou do mar
e antes que venha uma trovoada
despejar confetti
e um pedaço de Carnaval.
Dia de Baco
deus único na galeria dos ilustres
ou mnemónica para o vinho dadaísta
em molduras estilhaçadas
o ouro a transbordar
das bocas refasteladas
do arco fecundo da vida diletante.
Hoje
é dia de Baco
e vou à cave fazer perguntas
com a lanterna oxidada entre dentes
antes que outros demónios
ganhem a aposta.
Hoje é dia de boca.
(A seguir ao dia de boda
é o dia da boca.)
A boca
da fala itinerante
que apura o palácio não mundano
e destrona o silêncio
que escraviza.
Dia da boca
que fala pelos sentidos
com as sílabas cuidadas
em palavras avulsamente
confecionadas.
Hoje é dia de boca:
da boca-sexo
que se cola ao desejo do mundo
a língua que entroniza o corpo
a boca-sexo que abriga o sexo quente
e sabe contar com a outra boca-sexo
para um coroar olimpicamente
extático.
Hoje
é dia de boca
e não é da boca
que faz morrer o peixe:
é da boca-úbere
onde se congemina
o verbo não esporádico
em juras não segregadas
no sexo emoldurado
num bilhete-postal intemporal.
Hoje é dia de boda.
Dia de boda
é quando quisermos
no festim perene
em que se ambienta
o nosso pulsar uníssono.
Pois somos nós,
no xadrez da vontade,
que dizemos ao dia
que é credor de boda.
O dia obedece.
Hoje
a boda tem dia
como teve ontem
e será o caso de amanhã.
Hoje é dia de boda
e nós temos a homenagem
que o mundo empenha.
Hoje é dia de bala
(devo somar
ponto de interrogação).
Dia de bala
em palco onde se movem
vultos exacerbados
que levitam na exacerbação
contra a exacerbação que detestam.
E outro critério não lhe praz
se não
terçar com as mesmas armas,
como se fosse de boa linhagem
a sua exacerbação
contra a exacerbação que detestam.
Dia de bala
ao sentir a pulsão
de submeter
os exacerbados de todas as extrações
à experiência que os motiva.
Ou então,
melhor seria deixá-los
exacerbados contra exacerbados
numa peleja autofágica
sacrificando-se mutuamente
num pútrido teatro
onde o sangue derramado
tingido viria com o odor fétido
dos visionários que não enjeitariam
desenhar o futuro pelo pêndulo do passado.
Hoje é dia de bala.
Mas não sou eu que as trago
no coldre em mim vazio.
[Crónicas do vírus, CCLVI]
Pela maré-baixa,
um homem na faina dos mexilhões.
A fragilidade dos mexilhões
é como a fragilidade dos Homens
na maré-alta do vírus.
Hoje é dia de bola
(Hoje é domingo).
Não fico preso
aos versos de Césariny
(parola e Madame Blanche)
porque hoje é 2020
(não quer dizer
que a parola seja de antanho
e a Madame Blanche
esteja em vias de extinção).
Se hoje é dia de bola
incandescem as fúrias nativas
e o arrazoado vai descer
pela rua onde campeia o chinelo.
É dia de bola
e ao deitar
nem todos serão patriarcas
do contentamento:
uns com o azedo sabor da derrota
outros com o insosso travo do empate
outros ainda
porque nunca aprenderam
o namoro com a vitória.
Hoje
a bola teve o seu dia
em véspera de os mortais regressarem
aos mastins dias da modorra.
Hoje é dia de bula.
A mortificação suspensa
ditada pelo azimute lúcido
das vulgatas e outros portos
no poejo militante
açambarcado pela primavera.
Dia de bula
nos corredores sentidos
onde peões se agigantam
e o verbo sai à rua,
democrático
e indigente.
Hoje há belo
– ou hoje é belo,
uma das duas
ou as duas,
se possível for.
Do belo em matriz
parafuso da estética
– e não venham dizer
em despeito
que desinteressa a estética
e que têm apuro
as temperanças escondidas
no ladário das almas.
Hoje é belo
porque há belo
e o belo
de belo o ser
Irradia-se, benévolo,
e torna belos
os seus em redor.
Hoje é dia de belo
e a linhagem estética
não fará grande mal
a almas entreabertas.
Mas se do belo houver
quem apenas se consinta em sonhos
não deixa de belo o ser
pois que sonhos há
que são a nata arrancada ao belo.
Hoje é dia de belo
e não quero
que o olvido tome conta
de um dia assim
de tão belo ungido.
Hoje é dia de bolo.
Já não importa o demais:
a matreirice dos sábios
a religiosidade imperativa
da pandilha
os trabalhos de casa
os lentes inconsequentes
o moinho das farsas
a tagarelice de uns senhores
apessoados e em pose solene
os catraios que roubam sonhos
os ufanos que bolçam pesporrência
os dias sem fim e sem finalidade
as noites com pavio curto
a pescada cozida ao jantar.
Porque hoje
é dia de bolo.
Não se arruíne
o conto gregário
nem se desperdicem
os mantos penígeros
que os verbos diáfanos
não perdem inventário
no canto gongórico.
(E depois
provável será
que os patos vaticinem
protesto.)
Dar ouvidos
sempre causou espécie
não por ser contra
liberalidades gratuitas
mas por não saber
a quem eram doados os ouvidos
e o que podiam ouvir
com a intermediação do donatário.
Também era razão de perplexidade
descobrir como determinar a transação
se ela peticionava
o arrancar à origem dos ouvidos dados
e se haveria anestesia de permeio
ou a dor seria a paradoxal paga.
(Prenhe da irremediável ingenuidade
não me era dado saber
que dar ouvidos
em sentido corrente,
como expressão idiomática,
é pior do que a sua literalidade.)
Termos em que se aconselha
a não dar ouvidos
ou a cara
ou o corpo
(ao manifesto);
não vá tamanha generosidade
ser de nós próprios
algoz.
Uma vez doados os ouvidos
(ou qualquer parte restante do corpo)
não há remédio
pois colados ao abismo deixado
não é possibilidade a admitir
e os ouvidos
(e partes outras do corpo)
têm préstimo
quando ao corpo pertencem.
[Crónicas do vírus, CCLXVII]
A (nova) guerra invisível:
a exprobração entre nações
tecendo listas de exclusão
que soam a peste.
Ao nada
tiro a rolha
e um aluvião
bolça, fértil
sobre
as costas dos aziagos.
As facas afiadas
serpenteiam
sem algozes serem
sobre o diuturno nada
retalhando-o
mal se mostra
no lagar da distração.
E do nada
um açude façanhudo
hasteia-se
a provocação diletante
e ao nada retesado
disparam as fendas
na iminente largada
da abundante fecundidade.
Diziam
ao nada
não ser de temer
nem que se fantasma
se pusesse:
se do nada se sabe
ser o seu avesso
matéria bastante
para de um golpe certeiro
estilhaçar o nada.
O calendário
resgata dos anais
o vigésimo nono ano
de licenciatura.
Não sei por que guardo
efemérides.
Dir-se-ia:
é o sublinhado de uma coincidência
selada com o sortilégio
do calendário.
(E quem pode fugir
do calendário?)
Ainda sou refém
da memória.
Devia ter aprendido
que a memória
é um tinteiro gasto
a vocação para o longe
nas imagens que se evaporam
na diálise das páginas arrancadas
ao calendário.
Vinte e nove anos
e de quê,
se cursei páginas soltas
e não medrou esteio
como cimento do tempo inteiro?
A memória
enquista-se no mosteiro
onde se arquivam os misteres
da improficuidade.
Um estéril inventário
esmaecido na caneta gasta
que em dedicatória árida
vai desmatando a decadência.
Cabiam
num biombo da memória
os nomes tatuados
a esquecimento.
Não os sabia fantasmas
e nem supunha dizer
exorcismo
na apanha fidedigna
da espuma à mercê dos dedos.
Pelo caminho
entreteci o tempo
com o avesso da singularidade
– mas não é assim
que todos somos,
vulgares,
na banal intumescência
do original?
Dos nomes
guardo as sílabas vagarosas
com que se dizem
a sua gramática repetível.
E pouco mais.
O reverso do biombo
é um deserto sem pontos cardeais.
Eu aposto
que nem o Norte
se tem por paradeiro.