7.8.20

#1690

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Por sobre as sombras

as palavras distraídas

num choro emudecido.

6.8.20

Dia de Baco

Hoje é dia de Baco.

Assim vai o imperador

já sem o anzol

que o destronou do mar

e antes que venha uma trovoada

despejar confetti 

e um pedaço de Carnaval.

Dia de Baco

deus único na galeria dos ilustres

ou mnemónica para o vinho dadaísta

em molduras estilhaçadas

o ouro a transbordar

das bocas refasteladas

do arco fecundo da vida diletante.

Hoje 

é dia de Baco

e vou à cave fazer perguntas

com a lanterna oxidada entre dentes

antes que outros demónios

ganhem a aposta. 

#1689

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

Nunca como agora

se impetrou

para que o tempo 

andasse para a frente.

5.8.20

Dia de boca

Hoje é dia de boca.

(A seguir ao dia de boda

é o dia da boca.)

A boca

da fala itinerante

que apura o palácio não mundano

e destrona o silêncio

que escraviza.

Dia da boca

que fala pelos sentidos

com as sílabas cuidadas

em palavras avulsamente 

confecionadas.

Hoje é dia de boca:

da boca-sexo

que se cola ao desejo do mundo

a língua que entroniza o corpo

a boca-sexo que abriga o sexo quente

e sabe contar com a outra boca-sexo

para um coroar olimpicamente 

extático.

Hoje

é dia de boca

e não é da boca

que faz morrer o peixe:

é da boca-úbere

onde se congemina 

o verbo não esporádico

em juras não segregadas

no sexo emoldurado

num bilhete-postal intemporal.

#1688

[Crónicas do vírus, CCLIX]

 

Entre apocalipse

e a sua mera promessa

a navegação por estima.

4.8.20

Dia de boda

Hoje é dia de boda.

Dia de boda

é quando quisermos

no festim perene

em que se ambienta

o nosso pulsar uníssono.

Pois somos nós,

no xadrez da vontade,

que dizemos ao dia

que é credor de boda.

O dia obedece.

Hoje

a boda tem dia

como teve ontem

e será o caso de amanhã.

Hoje é dia de boda

e nós temos a homenagem

que o mundo empenha.

#1687

[Crónicas do vírus, CCLVIII]

 

Não damos

saltos no tempo

por avareza do medo.

#1686

[Crónicas do vírus, CCLVII]

 

Pelo andar do mosto

este não é ano

para colheita de grande cepa.

3.8.20

Dia de bala

Hoje é dia de bala

(devo somar 

ponto de interrogação).

Dia de bala

em palco onde se movem

vultos exacerbados

que levitam na exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

E outro critério não lhe praz

se não

terçar com as mesmas armas,

como se fosse de boa linhagem

a sua exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

Dia de bala

ao sentir a pulsão

de submeter

os exacerbados de todas as extrações

à experiência que os motiva.

Ou então,

melhor seria deixá-los

exacerbados contra exacerbados

numa peleja autofágica

sacrificando-se mutuamente

num pútrido teatro

onde o sangue derramado

tingido viria com o odor fétido

dos visionários que não enjeitariam

desenhar o futuro pelo pêndulo do passado.

Hoje é dia de bala.

Mas não sou eu que as trago

no coldre em mim vazio.

 

#1685

[Crónicas do vírus, CCLVI]

 

Pela maré-baixa,

um homem na faina dos mexilhões.

A fragilidade dos mexilhões

é como a fragilidade dos Homens

na maré-alta do vírus.

2.8.20

#1684

[Crónicas do vírus, CCLV]

 

Há intermitências

em que tudo parece

como dantes.

Dia de bola

Hoje é dia de bola

(Hoje é domingo).

Não fico preso 

aos versos de Césariny

(parola e Madame Blanche)

porque hoje é 2020

(não quer dizer

que a parola seja de antanho

e a Madame Blanche 

esteja em vias de extinção).

Se hoje é dia de bola

incandescem as fúrias nativas

e o arrazoado vai descer

pela rua onde campeia o chinelo. 

É dia de bola

e ao deitar

nem todos serão patriarcas

do contentamento:

uns com o azedo sabor da derrota

outros com o insosso travo do empate

outros ainda

porque nunca aprenderam 

o namoro com a vitória. 

Hoje 

a bola teve o seu dia

em véspera de os mortais regressarem

aos mastins dias da modorra.

1.8.20

Dia de bula

Hoje é dia de bula. 

A mortificação suspensa

ditada pelo azimute lúcido

das vulgatas e outros portos

no poejo militante 

açambarcado pela primavera. 

Dia de bula

nos corredores sentidos

onde peões se agigantam

e o verbo sai à rua,

democrático 

e indigente. 

#1683

[Crónicas do vírus, CCLIV]

 

Extinguiu-se

a bruxuleante luz

de agosto.

31.7.20

Dia de belo

Hoje há belo 

– ou hoje é belo,

uma das duas

ou as duas,

se possível for.

 

Do belo em matriz

parafuso da estética 

– e não venham dizer

em despeito

que desinteressa a estética

e que têm apuro

as temperanças escondidas

no ladário das almas.

 

Hoje é belo

porque há belo

e o belo

de belo o ser

Irradia-se, benévolo,

e torna belos

os seus em redor.

 

Hoje é dia de belo

e a linhagem estética

não fará grande mal

a almas entreabertas.

 

Mas se do belo houver

quem apenas se consinta em sonhos

não deixa de belo o ser

pois que sonhos há

que são a nata arrancada ao belo.

 

Hoje é dia de belo

e não quero 

que o olvido tome conta

de um dia assim

de tão belo ungido.

#1682

[Crónicas do vírus, CCLIII]

 

Um político de máscara

deixou de ser

uma metáfora.

#1681

[Crónicas do vírus, CCLII]

 

Os rostos

não chegam

a ser metade.

30.7.20

#1680

[Crónicas do vírus, CCLI]

 

E veio-se a descobrir

que a marcha-atrás

tivera o selo dos jovens.

Dia de bolo

Hoje é dia de bolo.

Já não importa o demais:

a matreirice dos sábios

a religiosidade imperativa

da pandilha

os trabalhos de casa

os lentes inconsequentes

o moinho das farsas

a tagarelice de uns senhores

apessoados e em pose solene

os catraios que roubam sonhos

os ufanos que bolçam pesporrência

os dias sem fim e sem finalidade

as noites com pavio curto

a pescada cozida ao jantar.

Porque hoje

é dia de bolo.

#1679

[Crónicas do vírus, CCL]

 

Um novo palco

para ser dito

que o fim 

nem sempre é um fim.

29.7.20

Meticulosamente

Não se arruíne

o conto gregário

nem se desperdicem

os mantos penígeros

que os verbos diáfanos

não perdem inventário

no canto gongórico.

(E depois

provável será

que os patos vaticinem

protesto.)

#1678

[Crónicas do vírus, CCXLIX]

 

Pisamos

um chão minado.

28.7.20

#1677

[Crónicas do vírus, CCLXVIII]

 

Ouvir

“Lust for life” de Iggy Pop

ganha um novo sentido.

Não dar ouvidos

Dar ouvidos

sempre causou espécie

não por ser contra

liberalidades gratuitas

mas por não saber

a quem eram doados os ouvidos

e o que podiam ouvir

com a intermediação do donatário.

 

Também era razão de perplexidade

descobrir como determinar a transação

se ela peticionava 

o arrancar à origem dos ouvidos dados

e se haveria anestesia de permeio

ou a dor seria a paradoxal paga.

 

(Prenhe da irremediável ingenuidade

não me era dado saber

que dar ouvidos

em sentido corrente,

como expressão idiomática,

é pior do que a sua literalidade.) 

 

Termos em que se aconselha

a não dar ouvidos

ou a cara 

ou o corpo

(ao manifesto);

não vá tamanha generosidade

ser de nós próprios

algoz.

 

Uma vez doados os ouvidos 

(ou qualquer parte restante do corpo)

não há remédio

pois colados ao abismo deixado

não é possibilidade a admitir

e os ouvidos

(e partes outras do corpo)

têm préstimo

quando ao corpo pertencem.

#1676

[Crónicas do vírus, CCLXVII]

 

A (nova) guerra invisível:

a exprobração entre nações

tecendo listas de exclusão

que soam a peste.

27.7.20

O nada desarmadilhado

Ao nada

tiro a rolha

e um aluvião

bolça, fértil

sobre 

as costas dos aziagos.

 

As facas afiadas

serpenteiam

sem algozes serem

sobre o diuturno nada

retalhando-o

mal se mostra

no lagar da distração.

 

E do nada

um açude façanhudo

hasteia-se

a provocação diletante

e ao nada retesado

disparam as fendas

na iminente largada

da abundante fecundidade.

 

Diziam

ao nada

não ser de temer

nem que se fantasma 

se pusesse:

se do nada se sabe

ser o seu avesso

matéria bastante

para de um golpe certeiro

estilhaçar o nada.

#1675

[Crónicas do vírus, CCLXVI]

 

Num biombo

como um blindado

contra os outros.

26.7.20

Assinatura

O calendário

resgata dos anais

o vigésimo nono ano 

de licenciatura.

Não sei por que guardo

efemérides.

Dir-se-ia:

é o sublinhado de uma coincidência

selada com o sortilégio

do calendário.

 

(E quem pode fugir

do calendário?)

 

Ainda sou refém

da memória.

Devia ter aprendido

que a memória

é um tinteiro gasto

a vocação para o longe

nas imagens que se evaporam

na diálise das páginas arrancadas

ao calendário.

Vinte e nove anos

e de quê,

se cursei páginas soltas

e não medrou esteio 

como cimento do tempo inteiro?

A memória

enquista-se no mosteiro

onde se arquivam os misteres

da improficuidade.

Um estéril inventário

esmaecido na caneta gasta

que em dedicatória árida 

vai desmatando a decadência.

Literacia

Cabiam

num biombo da memória

os nomes tatuados

a esquecimento.

Não os sabia fantasmas

e nem supunha dizer

exorcismo

na apanha fidedigna

da espuma à mercê dos dedos.

Pelo caminho

entreteci o tempo

com o avesso da singularidade 

 

– mas não é assim 

que todos somos, 

vulgares,

na banal intumescência 

do original?

 

Dos nomes

guardo as sílabas vagarosas

com que se dizem

a sua gramática repetível.

E pouco mais.

O reverso do biombo

é um deserto sem pontos cardeais.

Eu aposto

que nem o Norte 

se tem por paradeiro.

#1674

[Crónicas do vírus, CCLXV]

 

A interrupção excruciante

da espada que báscula

no termo incerto.