9.8.20

Fora de jogo

De todas as rochas

o soro vertido

num mar sem marés. 

 

Tinjo as lágrimas

com o doce odor 

da madrugada;

uma borboleta anuncia-se

no rogo do estanho de uma estrela.

 

De todas as rochas

cubro a boca com silêncio;

o resto 

é a maresia 

que rima com outono.

8.8.20

#1691

[Crónicas do vírus, CCLXII]

Quantas 

encomendas de passado

foram destinadas

ao futuro?

A destempo

Dizia

“quando fui para o primeiro ano”

como se o tempo 

fosse um lugar.

7.8.20

Dia de beca

Hoje é dia de beca. 

O cortejo dos notáveis

(também dão 

pelo epíteto de escol),

pátria de eruditos

a beca 

a prova do privilégio. 

Dia de beca:

o cortejo faz-se 

vagaroso

no pé ante pé sincopado

para dar tempo à casta

de notarem como são reverenciados

pelos pajens situados

nos arrabaldes. 

Da beca se diz

ser avantajada indumentária

para dar largas 

ao eu XXL

ou 

ao eu que não cabe 

em tanta prosápia.

Uns titulares da beca

provam o privilégio

pelo gongórico falar

– o gongórico falar,

distintivo dos titulares da beca.

Outros 

nem sabem dizer

(se à medula da honestidade forem)

como estadeiam a beca 

– assim se vulgarizando a beca 

na azeda melancolia 

dos gongóricos.

Hoje

é dia de beca

e o estabelecimento fechou 

para balanço.

#1690

[Crónicas do vírus, CCLXI]

 

Por sobre as sombras

as palavras distraídas

num choro emudecido.

6.8.20

Dia de Baco

Hoje é dia de Baco.

Assim vai o imperador

já sem o anzol

que o destronou do mar

e antes que venha uma trovoada

despejar confetti 

e um pedaço de Carnaval.

Dia de Baco

deus único na galeria dos ilustres

ou mnemónica para o vinho dadaísta

em molduras estilhaçadas

o ouro a transbordar

das bocas refasteladas

do arco fecundo da vida diletante.

Hoje 

é dia de Baco

e vou à cave fazer perguntas

com a lanterna oxidada entre dentes

antes que outros demónios

ganhem a aposta. 

#1689

[Crónicas do vírus, CCLX]

 

Nunca como agora

se impetrou

para que o tempo 

andasse para a frente.

5.8.20

Dia de boca

Hoje é dia de boca.

(A seguir ao dia de boda

é o dia da boca.)

A boca

da fala itinerante

que apura o palácio não mundano

e destrona o silêncio

que escraviza.

Dia da boca

que fala pelos sentidos

com as sílabas cuidadas

em palavras avulsamente 

confecionadas.

Hoje é dia de boca:

da boca-sexo

que se cola ao desejo do mundo

a língua que entroniza o corpo

a boca-sexo que abriga o sexo quente

e sabe contar com a outra boca-sexo

para um coroar olimpicamente 

extático.

Hoje

é dia de boca

e não é da boca

que faz morrer o peixe:

é da boca-úbere

onde se congemina 

o verbo não esporádico

em juras não segregadas

no sexo emoldurado

num bilhete-postal intemporal.

#1688

[Crónicas do vírus, CCLIX]

 

Entre apocalipse

e a sua mera promessa

a navegação por estima.

4.8.20

Dia de boda

Hoje é dia de boda.

Dia de boda

é quando quisermos

no festim perene

em que se ambienta

o nosso pulsar uníssono.

Pois somos nós,

no xadrez da vontade,

que dizemos ao dia

que é credor de boda.

O dia obedece.

Hoje

a boda tem dia

como teve ontem

e será o caso de amanhã.

Hoje é dia de boda

e nós temos a homenagem

que o mundo empenha.

#1687

[Crónicas do vírus, CCLVIII]

 

Não damos

saltos no tempo

por avareza do medo.

#1686

[Crónicas do vírus, CCLVII]

 

Pelo andar do mosto

este não é ano

para colheita de grande cepa.

3.8.20

Dia de bala

Hoje é dia de bala

(devo somar 

ponto de interrogação).

Dia de bala

em palco onde se movem

vultos exacerbados

que levitam na exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

E outro critério não lhe praz

se não

terçar com as mesmas armas,

como se fosse de boa linhagem

a sua exacerbação

contra a exacerbação que detestam.

Dia de bala

ao sentir a pulsão

de submeter

os exacerbados de todas as extrações

à experiência que os motiva.

Ou então,

melhor seria deixá-los

exacerbados contra exacerbados

numa peleja autofágica

sacrificando-se mutuamente

num pútrido teatro

onde o sangue derramado

tingido viria com o odor fétido

dos visionários que não enjeitariam

desenhar o futuro pelo pêndulo do passado.

Hoje é dia de bala.

Mas não sou eu que as trago

no coldre em mim vazio.

 

#1685

[Crónicas do vírus, CCLVI]

 

Pela maré-baixa,

um homem na faina dos mexilhões.

A fragilidade dos mexilhões

é como a fragilidade dos Homens

na maré-alta do vírus.

2.8.20

#1684

[Crónicas do vírus, CCLV]

 

Há intermitências

em que tudo parece

como dantes.

Dia de bola

Hoje é dia de bola

(Hoje é domingo).

Não fico preso 

aos versos de Césariny

(parola e Madame Blanche)

porque hoje é 2020

(não quer dizer

que a parola seja de antanho

e a Madame Blanche 

esteja em vias de extinção).

Se hoje é dia de bola

incandescem as fúrias nativas

e o arrazoado vai descer

pela rua onde campeia o chinelo. 

É dia de bola

e ao deitar

nem todos serão patriarcas

do contentamento:

uns com o azedo sabor da derrota

outros com o insosso travo do empate

outros ainda

porque nunca aprenderam 

o namoro com a vitória. 

Hoje 

a bola teve o seu dia

em véspera de os mortais regressarem

aos mastins dias da modorra.

1.8.20

Dia de bula

Hoje é dia de bula. 

A mortificação suspensa

ditada pelo azimute lúcido

das vulgatas e outros portos

no poejo militante 

açambarcado pela primavera. 

Dia de bula

nos corredores sentidos

onde peões se agigantam

e o verbo sai à rua,

democrático 

e indigente. 

#1683

[Crónicas do vírus, CCLIV]

 

Extinguiu-se

a bruxuleante luz

de agosto.

31.7.20

Dia de belo

Hoje há belo 

– ou hoje é belo,

uma das duas

ou as duas,

se possível for.

 

Do belo em matriz

parafuso da estética 

– e não venham dizer

em despeito

que desinteressa a estética

e que têm apuro

as temperanças escondidas

no ladário das almas.

 

Hoje é belo

porque há belo

e o belo

de belo o ser

Irradia-se, benévolo,

e torna belos

os seus em redor.

 

Hoje é dia de belo

e a linhagem estética

não fará grande mal

a almas entreabertas.

 

Mas se do belo houver

quem apenas se consinta em sonhos

não deixa de belo o ser

pois que sonhos há

que são a nata arrancada ao belo.

 

Hoje é dia de belo

e não quero 

que o olvido tome conta

de um dia assim

de tão belo ungido.

#1682

[Crónicas do vírus, CCLIII]

 

Um político de máscara

deixou de ser

uma metáfora.

#1681

[Crónicas do vírus, CCLII]

 

Os rostos

não chegam

a ser metade.

30.7.20

#1680

[Crónicas do vírus, CCLI]

 

E veio-se a descobrir

que a marcha-atrás

tivera o selo dos jovens.

Dia de bolo

Hoje é dia de bolo.

Já não importa o demais:

a matreirice dos sábios

a religiosidade imperativa

da pandilha

os trabalhos de casa

os lentes inconsequentes

o moinho das farsas

a tagarelice de uns senhores

apessoados e em pose solene

os catraios que roubam sonhos

os ufanos que bolçam pesporrência

os dias sem fim e sem finalidade

as noites com pavio curto

a pescada cozida ao jantar.

Porque hoje

é dia de bolo.

#1679

[Crónicas do vírus, CCL]

 

Um novo palco

para ser dito

que o fim 

nem sempre é um fim.

29.7.20

Meticulosamente

Não se arruíne

o conto gregário

nem se desperdicem

os mantos penígeros

que os verbos diáfanos

não perdem inventário

no canto gongórico.

(E depois

provável será

que os patos vaticinem

protesto.)

#1678

[Crónicas do vírus, CCXLIX]

 

Pisamos

um chão minado.

28.7.20

#1677

[Crónicas do vírus, CCLXVIII]

 

Ouvir

“Lust for life” de Iggy Pop

ganha um novo sentido.

Não dar ouvidos

Dar ouvidos

sempre causou espécie

não por ser contra

liberalidades gratuitas

mas por não saber

a quem eram doados os ouvidos

e o que podiam ouvir

com a intermediação do donatário.

 

Também era razão de perplexidade

descobrir como determinar a transação

se ela peticionava 

o arrancar à origem dos ouvidos dados

e se haveria anestesia de permeio

ou a dor seria a paradoxal paga.

 

(Prenhe da irremediável ingenuidade

não me era dado saber

que dar ouvidos

em sentido corrente,

como expressão idiomática,

é pior do que a sua literalidade.) 

 

Termos em que se aconselha

a não dar ouvidos

ou a cara 

ou o corpo

(ao manifesto);

não vá tamanha generosidade

ser de nós próprios

algoz.

 

Uma vez doados os ouvidos 

(ou qualquer parte restante do corpo)

não há remédio

pois colados ao abismo deixado

não é possibilidade a admitir

e os ouvidos

(e partes outras do corpo)

têm préstimo

quando ao corpo pertencem.

#1676

[Crónicas do vírus, CCLXVII]

 

A (nova) guerra invisível:

a exprobração entre nações

tecendo listas de exclusão

que soam a peste.

27.7.20

O nada desarmadilhado

Ao nada

tiro a rolha

e um aluvião

bolça, fértil

sobre 

as costas dos aziagos.

 

As facas afiadas

serpenteiam

sem algozes serem

sobre o diuturno nada

retalhando-o

mal se mostra

no lagar da distração.

 

E do nada

um açude façanhudo

hasteia-se

a provocação diletante

e ao nada retesado

disparam as fendas

na iminente largada

da abundante fecundidade.

 

Diziam

ao nada

não ser de temer

nem que se fantasma 

se pusesse:

se do nada se sabe

ser o seu avesso

matéria bastante

para de um golpe certeiro

estilhaçar o nada.