25.9.20

Metamorfose

Exila-se 

o maltrapilho

abjeto detrito social

pária sem paradeiro

nem inventário por anotar

morador de pardieiros. 

Do exílio 

fará convalescença

objeto de estudo da metamorfose

um caldo a preceito

dos estudiosos do arrependimento. 

No degredo

reabilitar-se-á

e depressa 

o desexemplo será bota descalça

e sem a bengala da reprovação 

conseguirá ser

alguém. 

Pois da terra que foi proscrito

o maltrapilho 

roçou os antípodas do paradigma

sempre a um canto

tratado com desconfiança

margeando as próprias margens. 

Hoje

ao longe

extirpou os sedimentos da pária condição. 

Exemplar

é agora a sua estirpe. 

Convocado 

pelo lugar de origem

o maltrapilho transfigurado mandou dizer

que havia proscrito esse lugar. 

#1741

[Crónicas do vírus, CCCXIII]

 

Ao menos

as outonais folhas mortas

não foram canceladas.

24.9.20

General decadência

Sabemos:

 

a decadência

está sempre à espreita

é espada sem aviso

irreparável

no doloroso estertor

que aviva a margem apodrecida.

 

Não há calendário para a decadência:

 

ela contém o seu próprio oráculo

mnemónica sabida

só depois do tempo.

 

Só então:

 

a decana decadência

se improvisa,

indomável,

e por suas lentes

tem assento as coisas baças.

#1740

[Crónicas do vírus, CCCXII]

 

Já ninguém

põe carantonha,

apenas máscara.

23.9.20

Lost in translation in between untidy words

“Thives like us”,

disseste

e eu traduzi:

a afeição que os ladrões 

têm por nós.

 

“Thives like us”,

reiteraste;

e eu percebi 

o que dizias:

nós somos 

como ladrões.

#1739

[Crónicas do vírus, CCCXI]

 

Repetição

ou enredo 

reinterpretado?

22.9.20

Envelope desfardado

Esta é a roda dentada

o pastel na paleta de intenções

o fogo imperturbável

a centrifugação que desaloja impurezas

o acostumado torpor na anestesia da matilha

o carvão alisado na folha de almaço

a inspiração que se perde na boca de água

o modo que não se convence da moda

uma escada íngreme sem cuidados

o mosto que amputa o intemporal

a beleza encerrada nos curros

(fugitiva dos Homens)

o manual de conversação 

o impecável instrumento do consentimento

o barril à espera de manteúdo

os dedos trémulos na forca do medo

o penhor de toda a lucidez

o manuscrito sem titulação

(passado a tinta da China)

a tenaz que apara o desassossego.

Esta

é a palavra dita

à revelia de conjeturas.

#1738

[Crónicas do vírus, CCCX]

 

Bordejamos o naufrágio

e vamos

pela corda do hábito.

21.9.20

#1737

[Crónicas do vírus, CCCIX]

 

Sedição aos costumes

ou

sedução pela alteridade.

Mosteiro

Pesa o sinédrio arcaico

no dorsal esmaecido

vitrina também gasta

do coloquial projeto de dia

na vez da indigência dos feitores

que ofende as balsas onde fermentam

as palavras imprudentes

o préstimo dos arbustos sem dono

a partitura onde se desenham versos

o avião longínquo

acertando no céu sem reticências.

Convoquem-se os ardinas

para que à luz nova tragam notícias.

Não interessa que notícias são;

se um dia quadrar com ausência de notícias

podemos interrogar a hibernação

ou o dia em capitulação?

#1736

[Crónicas do vírus, CCCVIII]

 

Não há meta

a preencher

o firmamento.

20.9.20

#1735

[Crónicas do vírus, CCCVII]

 

Amanhã

a casa

foi o exílio.     

19.9.20

#1734

[Crónicas do vírus, CCCVI]

 

Do frio 

a faca funda

que funde o futuro.     

18.9.20

Sobre o significado de dolo

Dolosos

os destroços armadilhados

nos templos inacessíveis

onde se tornam forasteiros

os contumazes devedores da alma

na contrafação dos espíritos.

Os ossos falam mais baixo

sussurram 

o vencimento do dia

à medida 

que as pessoas desenham seus vestígios

e sem mossa 

se recolhem aos aposentos.

É fim de semana,

exclama o operariado,

exausto.

Amanhã 

será trunfo outra rotina;

um sábado escaninho

a desautorização das horas

um estribo para o avesso da alma

um lampejo de outra fadiga.

Os destroços

são sempre armadilhados 

– sempre dolosos

(e, 

não por acaso,

dolo 

é anagrama

de lodo).

#1733

[Crónicas do vírus, CCCV]

 

Agora,

a valsa 

dos biombos.        

17.9.20

Lição do silêncio

A boca sem fogo

eterniza o frio da pele.

Enche-se de ar,

a boca,

para emudecer.

Ao tirocínio das coisas

falta a pedra angular

um farol de perseverança

a metade do caminho por alisar;

o silêncio quimérico

de uma boca emudecida

pelo frio glacial

que a paralisa,

falta. 

#1732

[Crónicas do vírus, CCCIV]

 

Participo do passado

a contar

com o futuro.

16.9.20

O janota sem penhor

Aperaltado

o janota fumiga

fantasmas avulsos

conversa com botões

desaparafusa consumições.

 

Não há nada

como ser apessoado 

– alvitrou

com a ufania em alta,

sintonizado

com um espelho magnânimo

mas judiciosamente falaz.

 

O aperaltado janota

até no pijama esmerava

fazendas das melhores circunscrições

não olhando ao estipêndio exigível:

assim como assim

os sonhos

            (asseverava,

de si para si mesmo,

com uma solenidade, 

vá lá, 

parlamentar)

 

merecem uma cama a preceito

e era nele que os sonhos se desabotoavam;

o apessoado deitar

era a tença a preceito,

a convocatória dos sonhos.

 

Quanto ao demais

nunca chegou a saber

se sob o verniz pimpão

o pano de fundo 

quadrava com a janotice.

#1731

[Crónicas do vírus, CCCIII]

 

Em lugar da acalmia,

sal derramado

na cicatriz por fechar.

15.9.20

#1730

[Crónicas do vírus, CCCII]

 

O filho das promessas

é o avô das desilusões.

Levantamento

Não seja 

por contraste

a fecunda estafeta de um nome;

não seja

por diletante tomado

o estroina sem apeadeiro;

não seja

por mitomania almejado

o suserano que está na moda;

não seja

por inveja 

a árvore existencial destronada

por excluídos da colheita;

não seja

em abandono deixada

a menina perene

enquanto órfã amanhece a bandeira;

não seja

tristonha a maré

enquanto da maresia sobram os seixos;

não seja 

estimada a loucura

por sucedânea da morte. 

#1729

[Crónicas do vírus, CCCI]

 

Não é 

uma corrida contra o tempo;

levará a palma

aquele

que menos mentir a si mesmo.

14.9.20

#1728

[Crónicas do vírus, CCC]

 

Desconfinar 

rima com

desconfiar.

Loa

A vida é uma.

A vida é una.

À vida

uma vénia.

A vida

é um vitral.

A vida 

não é venal.

A vida

é viável.

A vida 

é visível.

A vida

não quebra

à ameaça huna.

A vida

bebe no húmus.

A vida

é a vida.

Há vida.

Um ávido viva

à vida.

#1727

[Crónicas do vírus, CCXCIX]

 

Uma nuvem

densa

como num pesadelo

sem paradeiro.

13.9.20

Primaverações

Primavera-me,

disseste.

Como na polinização

as abelhas

intuem uma entrega,

primavera-me.

Eu

obediente 

como sabes

ser minha linhagem

fiz de ti 

rainha mestra

não sem antes

te primaverar.

12.9.20

Efeito de estufa

A boca rasga

as palavras.

 

Tende-as 

no sol ganancioso

a fala consuetudinária

em surdina.

 

A boca rasga-se

nas palavras.

 

Fabrica um lago mirifico

onde assentam intenções

vagos delírios sem aviso

o efeito de estufa

em forma de abismo.

 

O que seria de nós,

sem boca

e palavras?

11.9.20

Adiantamento

A formidável orquestração da alma

no irrisório lustro do oblívio

onde tudo foram nuvens

e o cimento cobriu o mapa,

tirando a raiz às paisagens.

Ouviam-se os gemidos sem rosto

e não havia reses por perto

nem o sumo de limões azedos

se vertia por cima das feridas abertas;

por junto

o horizonte desimpedido

as linhas simétricas 

onde assentam as exclamações

de tanta beleza reunida nas intenções

a prolixa invenção do desmedo

que sangra em vez do suor,

o lado lunar

a renovação.

Houvesse a coragem para a tribuna

em vez do esconderijo timorato

e os corpos seriam imperadores

em sua desinibição

recusadas as arcaicas cancelas

que os esbulham de autenticidade.

Os verbos plúmbeos

atirados contra a pele desembaciada

deixaram de ser injúrias sibilinas:

esses mesmos verbos

operam-se na antítese 

ao valerem mais do que são.

Visitam-se as catedrais esquecidas

no bolso da memória.

Envidraçados

os seus salões

perfumam os corpos

extraindo à força

a sua repulsiva contrafação.

#1726

[Crónicas do vírus, CCXCVIII]

 

Em exageros contínuos,

entre 

a apoplexia do pré-apocalipse

e a negação.

10.9.20

O disfarce das palavras

A gana não é real,

que de realezas arcaicas

esta não é terra prendada.

Nem a gana é africano lugar,

para desilusão da geografia.

Nem a África diz a gana respeito,

se a literalidade semântica

fosse o aval.

Nem menos se confunda

com esgana

não só 

por não ser correspondente

o termo

mas pela violência ínsita.

Gana como vontade,

que indomável deve ser

e nem dos costumes é devedora.

Assim sendo,

em que por temperado critério se diga,

que real é a gana

 

(no sentido hierárquico de real,

sem decair no acolhimento

da realeza).