[Crónicas do vírus, CCCXLIX]
O jogo
é diferente
e das regras sabe-se
um desconhecido conhecido.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Este é o chumbo que tinge o tempo
uma mortalha irremissível
o protesto encorpado no vinco do rosto
sem estar à espera de nada
sem arrumar as esperas
para o relógio diuturno que arregaça o dia
sem arruinar os anéis vertidos em ternura.
Não são as mesas gastas
o palco adiantado ao crepúsculo;
não são as mãos suadas
que aquecem o arrefecimento noturno;
não são os jacarandás floridos fora do tempo
o atestado de salubridade do pensamento:
não há certidão lavrada no mosto da melancolia
e de vulcões ideados é colhida a sementeira
os juros a pagar no vindouro
entre a fala amuralhada e o vinho delituoso.
Não são os trovões medonhos
que acordam da hibernação plúmbea
nem o ocaso feérico se transfigura
em alvorada a destempo.
Esta é a boca ávida
o transiente esfacelar da fala anciã
a nova gramática
que desponta no viés das parras acobreadas
o autor sem nome nem paradeiro
um outono macilento
que desaprova a gente que o desaprova.
Este é o túmulo sem inquilino
a turfa tremeluzente que bebe toda a chuva
o mirífico legado do porvir jurado
em estandartes magníficos
na solene indumentária
da nudez.
A meação das intenções
no refúgio uterino
onde são patronos
os trovadores hesternos.
Os mapas são o crepúsculo das marés.
Na maré alta dos corpos
uma crisálida abre-se ao dia
exponencial
e dita as sílabas do poema mandatário.
Um diadema entroniza o dono do dia.
Amanhã não será dele.
Justas ou não,
as agonias somadas já não esperam em vão:
o esquecimento fez-se cimento
e as vigas de aço
emprestaram-se esteios ao frágil estertor.
[Crónicas do vírus, CCCXLVI]
A era
em que os recordes
deixaram de pertencer
às modalidades olímpicas.
O meu computador
é mais inteligente
do que eu.
Todos os dias,
sem que lhe tivesse pedido,
atira para a pasta do lixo
as mensagens daquele sujeito
insuportável.
Sem que lhe tivesse pedido.
O meu computador.
Mais inteligente.
Do que eu.
Pudera:
o meu computador
alinha na equipa
da inteligência artificial.
Ele terá de mim
melhor conhecimento
ou então
sou eu,
o da apenas inteligência espontânea,
que estou em défice de conhecimento
de mim próprio.
Mas
ao menos
o meu computador
não têm dívidas existências
e dúvidas ao banco
nem trava conhecimento
com lugares descobertos
nem se extasia com um livro
uma peça de teatro
um concerto de música
nem se enamora da mulher amada
nem testemunha a filha
a deixar de ser criança.
O meu computador
limita-se
a ostentar sobre mim
a superior inteligência
poupando-me
à conversão de incómodos
quando a sobredita personagem
bolça um qualquer asnear
na prolixa atividade de enviar
mensagens.
E eu
não invejo
o computador por ser
mais inteligente
do que eu:
a inteligência que me coube
(a tal, espontânea e humilde)
já não cabe em si
de tão tumultuosa.
[Crónicas do vírus, CCCXLV]
Às vezes penso
que tomámos todos
barbitúricos
e acordámos no meio
de um pesadelo.
O L. não gosta
que as músicas tenham
coros.
Perguntei porquê.
O L. foi evasivo
(e desconversou).
Gostava de saber as razões do L.
Não que queira por elas
medir as minhas:
é mau arrazoado
(diria o filósofo
cujo nome
o momentâneo esquecimento
tornou baço)
que a couraça das nossas ideias
seja assestada pelo fiel
das ideias dos outros.
O L. permanece enigmático.
Não tem importância.
O L. gosta de cães
e eu nunca perguntei
porquê.
[Crónicas do vírus, CCCXLIV]
“Dentro do possível”
– e ninguém ousa interrogar
fora do possível?
Nevrálgico,
o penso rápido
panaceia com caramelo
e refrigério em tocata breve.
Todo o homem
comporta a sua besta
e não há barragem alistada
que faça as vezes da romã
no eixo perpendicular do outono.
Há palavras que arrotam
um suicidário apessoado, breviário
letra de forma de impecável estética
e o soez gravitar no emparedado arguir.
Contam as contas
na pia batismal
onde se servem os ébrios
que um sábio sabe-o de dedutível fonte
mesmo com entorses à gramática.
O sorriso verseja
joga-se contra as lombadas
e os livros agredidos enxugam lágrimas
as que não são tartamudeadas
pelos meãos tenentes que a tudo dizem sim.
Ninguém venha ao engano
que no defraudário não se limam arestas
nem se encantam arrependimentos
(a menos que seja pecadora
a recompensa promitente).
[Crónicas do vírus, CCCXLIII]
(Variante do #1770)
Quase sempre
sermos fotocópias
é o mais próximo do possível.
[Crónicas do vírus, CCCXLII]
Do oráculo
dos profetas da catástrofe:
doravante
seremos apenas
fotocópias do que fomos.
Por que se confunde
castigo com punição
se os dois se entaramelam
numa nebulosa aflição?
Por que se aviva
o raio no limite do sol
se a trovoada se esconde
na cortina de obstruídas nuvens?
Por que se fala de tudo
na praça onde alta se nota a vozearia
se os alarves peritos se fundem
no impreciso palavreado?
Por que adormecem no estio
as bestas desemparelhadas
se os campinos estouvados
pedem meças na estultícia?
Por que se cultivam
os abraços e os corpos entrelaçados
se é no sexo
que eles se agigantam?
Por que assobiam estrofes
os desamantes sem espelho
se é no fojo sem batismo
que açambarcam os enteados da lógica?
Por que fingem os foragidos
que são estetas da compulsão
se a sua contumácia
é nosso deleite?
[Crónicas do vírus, CCCXLI]
A espuma dos paradoxos,
se para uns
o tempo se funde no nada
e para outros
teima em demorar-se.
Era todos os dias:
o animal exótico
fora do habitat
exposto aos olhares
em vez de sujeito
objeto com moldura de aberração.
Boquiabertos humanos
tratando-o como troféu
selado no bilhete do recinto.
E o animal
contristado e sem remédio
só não indiferente
porque odiando
profundamente
os humanos.
[Crónicas do vírus, CCCXXXVIII]
Efeitos primários:
a exposição demorada à pandemia
causa
baratas tontas na política.
Visita guiada
ao parapeito onde se deita
o dia fruído:
ninguém deseja a sua Bastilha
nem um copo de leite azedo
ou o larvar bocejo que afiança
desinteresse.
Ninguém se manifesta
a favor das contrariedades
nem se propõe como Sísifo
que do vale sobe
ao mais alto miradouro.
Destas visitas guiadas
tomamos conhecimento
como mnemónica do seu antídoto.
Sento-me no vão do silêncio
onde o vulcão se ri das fronteiras
e nenhum passaporte tem validade.
Sento-me à porta da falcoaria
onde as facas estão líquidas
e o vinho se desimpede
na fermentação ávida do jogo
com desregras.
Sinto o medo a ecoar na boca
as suas sílabas arrastam-se
como portões enferrujados
que se desenjaulam da maratona do fogo.
Sinto que cavalgo no silêncio
e dá-me preço para ser testemunha
de um outro silêncio desautorizado
o modesto encargo
do silêncio
que atraiçoa o silêncio estrutural.
[Crónicas do vírus, CCCXXXVI]
Quantas mortes,
as havidas e as que pendem,
são precisas
para castrar as liberdades?
Fixo
os dentes
no povoado
onde esquálidas
prosseguem as virgens.
Determino
os verbos
na gramática
onde esquecidas
erram as metáforas.
Provoco
a maresia
no mar grosso
onde esperançosas
se soerguem musas.
[Crónicas do vírus, CCCXXXIV]
Empenhados
no estalão da sorte
(ou do seu antónimo)
meros peões
de um jogo de acasos.
Por onde me escondo
na atalaia dos desacertos
em conjuração com as armas embestadas
que alisam as páginas altivas.
Angariem-se cicerones avalizados
para a meã partilha do moderno
esconjurando as balizas arcaicas
devolvendo ao mosto pútrido
os anciãos que fogem da báscula do tempo
penhores da imodéstia dos Homens
no seu refúgio apalavrado
em versos sem curadoria.
Pois se mecenas somos
é no dorso audível das caravanas
onde se desmata o pretérito
que perdeu o paradeiro.
Sem a custódia dos ogres
que a mão sensível
não tem mesura.
O corrimão heráldico
tem o seu avesso:
finas
as filigranas
em corpos beócios.
Nunca houve juramento
dos jumentos encartados
que se disfarçaram
de pergaminhos distintos
– e não era carnaval.