[Crónicas do vírus, CCCLXVI]
Despir os rostos
numa improvável nudez,
o exibicionismo sonhado.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O soalho suado
recebe os corpos em sede;
deles fará sua sede
no exato momento frondoso
o campo das framboesas
que fermentam na chuva diurna.
Não posso saber do crepúsculo
que em seu sal desmaia;
habitaria nas levadas bucólicas
se a lua não se escondesse do dia
e as palmas das mãos sangrassem
a urze desmaiada.
Os óbitos vêm no fundo de página.
Não se encomendam elegias
e os oradores oficiais do reino
já andam à procura de ofício.
Fossem prematuros
os demónios encastrados no trivial remoço:
sob o verniz dos notáveis
está o seu incenso boçal
no singular desprezo pelos pergaminhos
e os cantos não canoros que destoam.
Ah, se só soubesse nadar
no improvável desgosto das marés,
se soubesse desenhar os contornos da maresia
se ao menos fosse a minha melhor companhia
não precisava de tirar os dados à sorte
só para não calhar o azar.
Demando ao sangue domado
a contradição de termos
o rol das personagens afastadas
o hidrogénio que alisa o dia
as verbenas de viúvos atiçados
e todo o falatório gratuito
no sopesar das invetivas que se desarrumam.
Não interessam as competições bolorentas
as juras feitas na véspera de Baco
os gatos que uns querem como cães
os dentes à mostra no sorriso emaciado.
Devolvam as cartas viáveis
ao tabuleiro onde dançam as presas
façam o concurso dos estetas
na comparação dos paradoxos
sim senhor.
Bebo o vinho de ontem
e urdo conspirações olímpicas
só por desporto
só porque sim.
Senhor.
Desenganem-se os esperançados de última hora:
não é desse senhor que faz constar
a prece sem métrica admitida.
Os olhos cansados
não se arrumam no sono.
Continuam a remar
teimosamente
nos mares imensos
que se atravessam num espaço de um sono.
A alma caótica
trato-a
com a morfina dos livros
a coreografia dos anjos adiados
a pornográfica demanda dos quesitos
um perfume inadiável do querer
os palcos abertos pelos dedos insaciáveis.
A alma caótica
não a quero curada:
como poderia
com a curada alma
deitar mão
a todos aqueles prazeres
sem preço nem mercado?
As ruas amargas
com suas vozes puídas
como decadentes estão as mãos
viradas do avesso pela severidade
os campos de sal
ardendo sob os auspícios do sol.
Um bocejo
a garganta à mostra
como se o beneplácito assomasse
ao inferno
e dele se soubesse
por interposta entidade
as letras em ebulição a destempo.
A pistola
doada à ferrugem
angústia emancipada do coldre
e os vetustos cowboys
esquecidos na vespertina alusão
ao atlas arcaico.
As máscaras
contrariados açaimes
na reinvenção do tempo e do modo
pesadelo vivo na varanda dos viventes
castração
e
ao mesmo tempo
contrafeita báscula da incolumidade.
[Crónicas do vírus, CCCLIX]
Já não é só poesia
ou filme de ficção:
a noite foi colonizada
pela ausência.
Não é a matilha
que comanda o Norte
é, que se saiba, a anilha
a desencomendar a morte.
Podes desaprovar a pandilha
antes que ela do chá aborte
e devolvê-la à erma ilha
onde o litigar tem um corte.
Sobra um rosto na vasilha
e no muro uma palavra em transporte
para então silenciarmos a cavilha
e às mãos darmos aquela cor forte.
E se nos olhos da filha
alcanças um grande porte
não feches a escotilha
abraça essa grande sorte.
Um Calígula
disfarçado de rosto
estampado no peito dos jovens
de herói fazendo de conta
apascenta a maré de ilusões.
Um Calígula
que se desce à praia
mouchão de verbo pantanoso
cancioneiro que paredes envenena
nos sonhos perdidos
de adolescentes.
Um dia
serei dança
no nevoeiro da floresta.
Um dia
serei poema
em aberta maresia.
Um dia
serei arguto
em vinho eflúvio.
Um dia
serei manhã
à espera de seres noite.
Um dia
serei espada
a trespassar o desejo.
Um dia
serei voz
no segredo da tua fala.
Um dia
serei mãos
em desatada corda.
Um dia
serei vetusto
em teu invulnerável regaço.
Um dia
não serei morte
no penhor do teu imorredoiro rosto.
[Crónicas do vírus, CCCLXI]
Somos remidos do parentesco
estranhos uns dos outros
ou imersos no seu esquecimento.
[Crónicas do vírus, CCCLX]
Quem nos protege
de quem nos quer
proteger?
(Inspirado numa crónica de António Roma Torres no Público, e adaptado às circunstâncias)
Um esboço de ideia
interino
a dádiva jogada contra a dúvida
no quartel destronado
por pajens arrependidos.
As costuras da ideia
levantam-se
de um chão enlodaçado
dão vivas à janela que é um peito
descarnado.
Já vai o tempo
em que destemidos figurantes do verbo
se agigantavam
entre o código amuralhado
e a apatia semântica
estilhaçando-o
em víveres de indiferença.
Não se cobre já a nostalgia
que os relógios ainda não estão a destempo.
As juras juram a juras precedentes
que não voltarão a jurar.
É o retrato ideal
da humanidade,
o erro grosseiro
escapando entre os dedos
à medida
que uma certa estultícia
retira do passado o seu paradeiro.
Código morse:
recriam a linguagem
os anões apoderados
sob o olhar tétrico
das fadistas mudas
deserdadas de estrofes.
Código morse:
ciciam as viúvas
desoladamente desamparadas
nos murais onde se acertam as lágrimas
alijadas de seus consortes
em juras eternas
de amores nunca acontecidos.
Do código morse
sobram os vestígios de sons
uma remota eloquência em hipótese
a linguagem por cifrar.
Dei a fala ao gatilho
e ele empunhou miosótis
as suas pétalas
um poema contra
a decadência.
É o amanhã!
(Alguém exclamou)
Está a morder as bainhas
do todo-impoderoso saber
os destroços embainhados
no projeto de passado
sem as juras por inventariar
e os projetos por sair do estirador,
para não falhar.
Não é da fazenda puída
que contam os dedos válidos
nem da cruz alvoraçada
que se terçam mentiras.
Que se emalhem os pertences
(não há equívoco,
caro leitor:
o verbo é
emalhar)
no episódico insurgir da maré,
não por acaso chamada
maré-viva,
que o ponto de cruz
emoldura
para memória futura
os estragos da viva maré.
E depois
não há quem inquira
por que sortilégio do idioma
(ou distração dos peritos)
a uma maré destas
assim devastadora
se chama
maré-viva,
se tantas vezes o que espalha
é morte.