19.11.20

Cruzes, credo!

Mandatário das privações

cozinhava em lume brando

a branda água do deserto

e sentia-se o coração do oásis

um feixe de luz 

nas entrelinhas da aridez.

 

Povoava as arestas insubmissas.

Talvez

um eufemismo para outra coisa

à falta de bravura para galvanizar o verbo

e fraturar o marasmo da pudicícia.

 

Afinal 

as privações eram pretexto.

Uma lança furtiva

na argamassa dos óbices

o contraditório do antagonismo

surfando

em velas arrevesadas que se estreitavam

contra o vento estrepitoso.

 

A vau

atravessava a intempérie

e dava-se o milagre

de entrar no cais e seca estar a roupa.

Falava-se de um entretenimento:

fingia-se,

fingia-se a rodos

e até o fingimento entrava na aura

do fingimento,

sobretudo aos domingos.

 

Que se desembaraçassem os lugares-comuns

os oitentas em metamorfose de oitos

a verbena ao luar a seguir à alvorada

o patine em letra morta

à espera de preenchimento dos espaços

a coisa iletrada enxertada ao balcão.

Que fujam para os japões

os funcionários diligentes

 

(que odeiam que lhes chamem

colaboradores)

 

e lá ensaquem, 

com a mestria dos puros,

a melancolia sem geografia a preceito.

 

Às vezes

o inventário começa 

nos limites que somos.

Imprevisível

o ocaso antecipa-se numa data

indeterminada.

 

De que adianta

assobiar para o ar

se o ar já está perdido?

#1804

[Crónicas do vírus, CCCLXXI]

 

A pedagogia do silêncio

como prevenção.

(E castração?) 

18.11.20

Jackpot

“Um jackpot”,

dizias.

 

Pelo meio

o nevoeiro assobiava

adiando a manhã

enquanto no banco do jardim

as esperas dançavam nos rostos

melancólicos.

 

Tu não esperavas:

teu era o amanhã

que nunca deixavas chegar a sê-lo.

“Se tivesse conta-quilómetros

andava sempre em excesso de velocidade”,

rasuravas as costuras do tempo poltrão

vertendo nele a tua bravura

um sentido próprio de boémia

que fazia do tempo uma raridade.

 

(Outros disso diriam

ser a extinção da lucidez.)

 

“Um jackpot”,

dizias:

e combinavas com os tutores do amanhã

a aposta de como o contarias,

amanhã,

ao ontem desapalavrado.

 

“Para mim

os minutos têm 

mesmo 

sessenta segundos”. 

#1803

[Crónicas do vírus, CCCLXX]

 

(Ergástulo das máscaras)

Somos

todos estranhos

uns para os outros.

#1802

[Crónicas do vírus, CCCLXIX]

 

De vacina em riste

antes que a poeira

seja nossa pele.

17.11.20

Folhas caducas

Azedou

o dia azedo

e no seu avesso

tirámos à sorte uma cor

a sintaxe da heurística manhã

derramando o verbo

cingindo o rosto

e no seu lugar

o peito pleno

amou.

#1801

[Crónicas do vírus, CCCLXVIII]

 

Quem imaginou

que o exílio

era em casa?

16.11.20

Enxertia

Desenho o perímetro da costa

com os dedos entrelaçados

ao vento de estibordo.

Contenho os limites da paisagem

no rebordo das mãos.

O vento alisa,

superficialmente,

o cabelo testemunha.

Não sei das artes de navegar.

Alguém cuida da função

por mim.

Não lhe sei do rosto

nem sei se as mãos são confiáveis.

Não importa.

Suspeito que o mapa

sairá paradigmático

um portentoso achado na cartografia

enquanto a da alma se treslê

em figuras disformes

que se enxertam numa banda desenhada

enquanto estrofes sem vinagre

se derramam nas páginas 

que só existem nas varandas do pensamento.

Um sobressalto bule com o barco

e mal me disponho para a simetria.

Oxalá não fosse a validade das almas

o altar menosprezado

onde nem as marés se arpoam.

De mim dou o possível

que aos da argamassa da ufania

deixo o díodo do impossível.

De mim

há de vir ao mundo

a maresia retratada nos mapas

cinzelados por meus dedos desaprisionados.

#1800

[Crónicas do vírus, CCCLXVII]

 

A cidade despida

num domingo vespertino;

ou: o oráculo do apocalipse.

15.11.20

Lying condition

Here is where

the lie lies

whereas

all lies lie

amongst

the lies laying 

under the mist

of a broad lie that lies

against the odds.

#1799

[Crónicas do vírus, CCCLXVI]

 

Despir os rostos

numa improvável nudez,

o exibicionismo sonhado.

14.11.20

#1798

[Crónicas do vírus, CCCLXV]

 

No virar da página

que não fiquem palavras 

por deitar.

13.11.20

Esconjurado

O soalho suado

recebe os corpos em sede;

deles fará sua sede

no exato momento frondoso

o campo das framboesas

que fermentam na chuva diurna. 

Não posso saber do crepúsculo

que em seu sal desmaia;

habitaria nas levadas bucólicas

se a lua não se escondesse do dia

e as palmas das mãos sangrassem

a urze desmaiada. 

Os óbitos vêm no fundo de página.

Não se encomendam elegias

e os oradores oficiais do reino

já andam à procura de ofício. 

Fossem prematuros 

os demónios encastrados no trivial remoço:

sob o verniz dos notáveis

está o seu incenso boçal

no singular desprezo pelos pergaminhos 

e os cantos não canoros que destoam. 

Ah, se só soubesse nadar

no improvável desgosto das marés,

se soubesse desenhar os contornos da maresia

se ao menos fosse a minha melhor companhia

não precisava de tirar os dados à sorte

só para não calhar o azar. 

Demando ao sangue domado

a contradição de termos

o rol das personagens afastadas

o hidrogénio que alisa o dia

as verbenas de viúvos atiçados

e todo o falatório gratuito

no sopesar das invetivas que se desarrumam. 

Não interessam as competições bolorentas

as juras feitas na véspera de Baco

os gatos que uns querem como cães

os dentes à mostra no sorriso emaciado. 

Devolvam as cartas viáveis

ao tabuleiro onde dançam as presas

façam o concurso dos estetas 

na comparação dos paradoxos 

sim senhor. 

Bebo o vinho de ontem

e urdo conspirações olímpicas

só por desporto

só porque sim. 

Senhor. 

Desenganem-se os esperançados de última hora:

não é desse senhor que faz constar

a prece sem métrica admitida. 

Os olhos cansados 

não se arrumam no sono.

Continuam a remar

teimosamente

nos mares imensos 

que se atravessam num espaço de um sono.

#1797

[Crónicas do vírus, CCCLXIV]

 

Somos prisioneiros:

da pandemia?

(Ou da estultícia dos outros?) 

12.11.20

Alma caótica

A alma caótica

trato-a

com a morfina dos livros

a coreografia dos anjos adiados

a pornográfica demanda dos quesitos

um perfume inadiável do querer

os palcos abertos pelos dedos insaciáveis.

 

A alma caótica

não a quero curada:

como poderia

com a curada alma

deitar mão

a todos aqueles prazeres

sem preço nem mercado?

#1796

[Crónicas do vírus, CCCLXIII]

 

Um formigueiro nos costumes,

ou a defenestração dos mesmos?

11.11.20

Salinas

As ruas amargas

com suas vozes puídas

como decadentes estão as mãos

viradas do avesso pela severidade

os campos de sal

ardendo sob os auspícios do sol.

#1795

[Crónicas do vírus, CCCLXII]

 

Por fim

um tributo

aos madrugadores.

#1794

[Crónicas do vírus, CCCLXI]

 

Isto vai uma desgraça

para os noctívagos

e os boémios da praça.

#1793

[Crónicas do vírus, CCCLX]

 

O exílio dos desconfiados

agora 

que a desconfiança 

é a pedagogia.

10.11.20

Gentilmente

Um bocejo

a garganta à mostra

como se o beneplácito assomasse

ao inferno

e dele se soubesse

por interposta entidade

as letras em ebulição a destempo.

 

A pistola

doada à ferrugem

angústia emancipada do coldre

e os vetustos cowboys

esquecidos na vespertina alusão

ao atlas arcaico.

 

As máscaras

contrariados açaimes

na reinvenção do tempo e do modo

pesadelo vivo na varanda dos viventes

castração

e

ao mesmo tempo

contrafeita báscula da incolumidade.

#1792

[Crónicas do vírus, CCCLIX]

 

Já não é só poesia

ou filme de ficção:

a noite foi colonizada 

pela ausência.

9.11.20

Povoado

Não é a matilha

que comanda o Norte

é, que se saiba, a anilha

a desencomendar a morte.

Podes desaprovar a pandilha

antes que ela do chá aborte

e devolvê-la à erma ilha

onde o litigar tem um corte.

Sobra um rosto na vasilha

e no muro uma palavra em transporte

para então silenciarmos a cavilha 

e às mãos darmos aquela cor forte.

E se nos olhos da filha

alcanças um grande porte

não feches a escotilha

abraça essa grande sorte.

#1791

[Crónicas do vírus, CCCLXIII]

 

A casa

voltou a ser

casa

(por decreto).

7.11.20

Mito urbano

Um Calígula

disfarçado de rosto

estampado no peito dos jovens

de herói fazendo de conta

apascenta a maré de ilusões.

 

Um Calígula

que se desce à praia

mouchão de verbo pantanoso

cancioneiro que paredes envenena

nos sonhos perdidos

de adolescentes.

#1790

[Crónicas do vírus, CCCLXII]

 

O mosto do dia,

beligerante.

6.11.20

Um dia destes

Um dia

serei dança

no nevoeiro da floresta.

 

Um dia

serei poema

em aberta maresia.

 

Um dia

serei arguto

em vinho eflúvio.

 

Um dia

serei manhã

à espera de seres noite.

 

Um dia

serei espada

a trespassar o desejo.

 

Um dia

serei voz

no segredo da tua fala.

 

Um dia

serei mãos

em desatada corda.

 

Um dia

serei vetusto

em teu invulnerável regaço.

 

Um dia

não serei morte

no penhor do teu imorredoiro rosto.

#1789

[Crónicas do vírus, CCCLXI]

 

Somos remidos do parentesco

estranhos uns dos outros

ou imersos no seu esquecimento.

#1788

[Crónicas do vírus, CCCLX]

 

Quem nos protege

de quem nos quer

proteger?

 

(Inspirado numa crónica de António Roma Torres no Público, e adaptado às circunstâncias)

5.11.20

Em parte incerta

Um esboço de ideia

interino

a dádiva jogada contra a dúvida

no quartel destronado 

por pajens arrependidos. 

As costuras da ideia

levantam-se 

de um chão enlodaçado

dão vivas à janela que é um peito

descarnado. 

Já vai o tempo

em que destemidos figurantes do verbo

se agigantavam 

entre o código amuralhado

e a apatia semântica

estilhaçando-o 

em víveres de indiferença. 

Não se cobre já a nostalgia

que os relógios ainda não estão a destempo. 

As juras juram a juras precedentes

que não voltarão a jurar. 

É o retrato ideal

da humanidade,

o erro grosseiro 

escapando entre os dedos

à medida 

que uma certa estultícia

retira do passado o seu paradeiro.