[Crónicas do vírus, CDVII]
Quando saberemos
da morada das tréguas?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Pressinto
o lago onde se banha
a coragem.
Os tenentes molham-se
ávidos
certos da produção
de uma quimera.
Não intuem a farsa:
um lago
é composto
apenas
por água.
Atraso o relógio
trespassado pela ilusão
só para apanhar a Perseide fulgurante
que nem parou no apeadeiro.
Atraso o relógio
conjurado pelo fingimento
só para embarcar nos braços do vento
que já encomendou o adeus.
Atraso o relógio
embotado pela errância
só para engastar o filão do passado
que foi vertido numa elegia.
Trago a candeia ao peito
oh!
fazenda minha em vez de sangue
sem sombra da quimera suplicada
apenas o desterro
onde parece que já não sou
onde perecem os fantasmas aviltados.
Cubro com os olhos,
sentinela da noite fugitiva,
as flores adormecidas.
Espero.
Espero que seja madrugada
e os olhos desembaciem a manhã
e aos teus pés me despoje
em toda a nudez impura
réu de um luar qualquer
à espera
à espera da tua mão
e de um lugar.
Vejo um piano
sozinho.
Um piano
à espera de mãos
e eu que trago uma candeia ao peito
condenado ao silêncio
sussurro a música que não sei compor.
Pois no desterro
só há a mudez das montanhas frias
o penhor dos medos desimpedidos
os terríveis monstros que encarvoam o mar.
Mas o piano
espera pelo luar
em forma de sortilégio
e espera
por umas mãos sem corpo
as pétalas
desassombram as puras notas musicais
até que tudo seja
a síntese da música
nas esperas alinhavadas pela manhã boreal
e ao pequeno-almoço
as madressilvas perfumem o quarto.
Voz a voz
o murmúrio
com a lucidez dos olhos falantes.
Empenho tudo:
não quero nada
a não ser a nudez de mim
escondida
a não ser de ti.
Obra feita,
dizia
enquanto o rosto
se tingia de vaidade.
Ninguém
era capaz de inventariar a obra
e de nela traduzir
utilidade.
Obra feita,
dizia,
mas apenas nas suas
elucubrações.
Não compro
o remorso
a navalha arestada
desembaraça o abismo
clientelar.
Não adorno
a epiderme
o magma circunstancial
devolve a água
ecuménica.
Não desconfio
do estuário
o desencontro pueril
encomenda a estrofe
promitente.
Não sublinho
o estudante
a profecia órfã
confirma a impureza
fortuita.
A instauração dos desmodos
não se afivela na transgressão
onde deixo de saber da mão certa
e, rebeldes, as palavras habitam
diferentes lugares.
Podia reinventar a pontuação
mas não é apetite que me dê;
deixo ao sufrágio sem nomes certos:
a vigilância sem ordem.
Sei
de viva voz
(a minha, modesta)
que no bairro alto
habitam as páginas desamestradas
os lobos escondidos do dia
poetas sem armadura
nem segredos.
Povoam o mais alto bairro
em marejados pregões
despindo a camisa mesmo sendo inverno
chamando um novembro quimérico
– ou então
deitando-se
ao implacável escrutínio das massas
enjeitados
como amantes da loucura,
irremédios,
marinando no fino recorte do entardecer.
Povoei
a pedra-angular
contra o centrípeto estilhaçar
das furnas involuntárias.
Pelo meio de tumultos
abracei os olhos às pontes firmadas
dei-me como garantia
às prevenções contra os lodos em estima.
Desembaraçado
o véu desagrilhoou o obscurantismo
e trouxe ao estuário
um horizonte interminável
as barcas todas em trânsito afável
e o rio
habitável.
O rádio escanhoa o dia desafeiçoado
as notícias debitadas
soam como palavras vazias
uma gramática arcaica
desusada
e a voz do locutor
como se a de um louco se tratasse
em contínua vozearia,
demencial.
Que as migalhas do pretérito
não sejam desaproveitadas:
Urge
um choque térmico de História
com suas histórias
benevolamente esbofeteadas
nos rostos imberbes
dos néscios.
Hoje
converso no parapeito
onde se abriga
o mito sem rosto.
Desalojo
a incubação da sementeira
os olhos rasos
já assombrados
num limbo sem verbo.
Recebo
na morada da janela
o beijo sem fome
e junto as mãos
no parapeito da moldura,
à espera
de um tempo desembaraçado.
O genuíno garfo
saltando as searas outonais
exara o salvo-conduto
dos fantasiados ascetas
que derruem soldados.
Daqui a dois bocados
adia-se tudo:
as claras em castelo
não aconteceram;
é preciso pedir (outro) favor
aos galináceos.
Nada disto seria assim
se o bolo tivesse sido comprado
já feito,
ou se, sardónicos,
fizéssemos dieta;
mas somos hienas de nós mesmos
e esquecemos.
Na fila do supermercado
uma senhora manca
manca
e passa à frente da fila.
(Destas coisas modernas,
da prioridade para pessoas
com handicaps).
Na fila do supermercado
uma senhora manca
paga as compras
e sai
sem ser manca.
(Os comentários,
impregnados de moralidade,
ficam por conta do leitor.)
[Crónicas do vírus, CCCXCV]
Uma mortalha de suspensão
(ou um ano inteiro
na jaula de um parêntesis).
Matéria-prima:
o azulejo apessoado
por dentro do olhar antecipado,
em estrofe tutelar
do provérbio em deserção.
A voz do xilofone
ouve-se ao longe.
O murmúrio da multidão
também.
As sílabas sobrepõem-se à maresia
em combate terçado sem gente
apenas no sortilégio das palavras:
das palavras que se embebem
no mar demiúrgico.
Umas,
malditas,
aventuram-se
como primas da matéria fulcral;
outras,
mal ditas,
oferecem-se ao ultraje dos ínscios
e constituem-se desperdício,
tumulares.
Os ladrilhos
tocam ao de leve com os dedos
nos olhos extasiados dos forasteiros.
Os nativos,
distraídos,
são os forasteiros
de sua própria cidade.
Não sabem
do paradeiro dos azulejos.
“An educated guess”
combina o sexteto boémio
antes que pudesse ser
binómio.
E não pode ser apenas
“guess”?
Se cair o adjetivo
a “guess”
fica deseducada?
Ecoa um certo património
a balsa que resguarda
tremeluzentes nónios
que afiançam mesuras
um burburinho.
Uma voz escondida
em tom de repreensão
adverte:
os cavalheiros ficam a dever
aos pergaminhos
se não forem corteses;
em remate
(sentenciou a voz fantasma)
empregue-se o “educated”
como complemento de “guess”.
(Antes que os cavalheiros
deixem os pergaminhos em olvido
e trespassem
as portas do lupanar.)
Metaforizava
a levedura extática
sem supor que na escotilha
vegetavam espiões
disfarçados de chefes de cozinha.
Uma voz troou
como se acabasse
com a feição dos minutos
e disse
de mote próprio:
este
é o país
que não tem sobremesas.
As pessoas despacharam a proclamação:
um país que não tem sobremesas
não merece ostentar
à lapela
o nome de país.
Foi quando um eremita,
conhecido citador de poetas
intelectual de velha cepa
(sem, contudo,
se lhe conhecer safra própria)
contestou:
um país é como os pais
só que sem o acento tónico.
E quem não conhece pais
que não pedem sobremesa?
Ficou estabelecido
ao cabo de aturadas negociações
que um país está dispensado
de inventariar sobremesas;
ficou registado em ata
que um país
tem direito à dieta.
Não metaforicamente falando.