[Crónicas do vírus, CDIX]
Proibiram a passagem de ano:
eis os termos definitivos
da conspiração contra os boémios.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Pressinto
o lago onde se banha
a coragem.
Os tenentes molham-se
ávidos
certos da produção
de uma quimera.
Não intuem a farsa:
um lago
é composto
apenas
por água.
Atraso o relógio
trespassado pela ilusão
só para apanhar a Perseide fulgurante
que nem parou no apeadeiro.
Atraso o relógio
conjurado pelo fingimento
só para embarcar nos braços do vento
que já encomendou o adeus.
Atraso o relógio
embotado pela errância
só para engastar o filão do passado
que foi vertido numa elegia.
Trago a candeia ao peito
oh!
fazenda minha em vez de sangue
sem sombra da quimera suplicada
apenas o desterro
onde parece que já não sou
onde perecem os fantasmas aviltados.
Cubro com os olhos,
sentinela da noite fugitiva,
as flores adormecidas.
Espero.
Espero que seja madrugada
e os olhos desembaciem a manhã
e aos teus pés me despoje
em toda a nudez impura
réu de um luar qualquer
à espera
à espera da tua mão
e de um lugar.
Vejo um piano
sozinho.
Um piano
à espera de mãos
e eu que trago uma candeia ao peito
condenado ao silêncio
sussurro a música que não sei compor.
Pois no desterro
só há a mudez das montanhas frias
o penhor dos medos desimpedidos
os terríveis monstros que encarvoam o mar.
Mas o piano
espera pelo luar
em forma de sortilégio
e espera
por umas mãos sem corpo
as pétalas
desassombram as puras notas musicais
até que tudo seja
a síntese da música
nas esperas alinhavadas pela manhã boreal
e ao pequeno-almoço
as madressilvas perfumem o quarto.
Voz a voz
o murmúrio
com a lucidez dos olhos falantes.
Empenho tudo:
não quero nada
a não ser a nudez de mim
escondida
a não ser de ti.
Obra feita,
dizia
enquanto o rosto
se tingia de vaidade.
Ninguém
era capaz de inventariar a obra
e de nela traduzir
utilidade.
Obra feita,
dizia,
mas apenas nas suas
elucubrações.
Não compro
o remorso
a navalha arestada
desembaraça o abismo
clientelar.
Não adorno
a epiderme
o magma circunstancial
devolve a água
ecuménica.
Não desconfio
do estuário
o desencontro pueril
encomenda a estrofe
promitente.
Não sublinho
o estudante
a profecia órfã
confirma a impureza
fortuita.
A instauração dos desmodos
não se afivela na transgressão
onde deixo de saber da mão certa
e, rebeldes, as palavras habitam
diferentes lugares.
Podia reinventar a pontuação
mas não é apetite que me dê;
deixo ao sufrágio sem nomes certos:
a vigilância sem ordem.
Sei
de viva voz
(a minha, modesta)
que no bairro alto
habitam as páginas desamestradas
os lobos escondidos do dia
poetas sem armadura
nem segredos.
Povoam o mais alto bairro
em marejados pregões
despindo a camisa mesmo sendo inverno
chamando um novembro quimérico
– ou então
deitando-se
ao implacável escrutínio das massas
enjeitados
como amantes da loucura,
irremédios,
marinando no fino recorte do entardecer.
Povoei
a pedra-angular
contra o centrípeto estilhaçar
das furnas involuntárias.
Pelo meio de tumultos
abracei os olhos às pontes firmadas
dei-me como garantia
às prevenções contra os lodos em estima.
Desembaraçado
o véu desagrilhoou o obscurantismo
e trouxe ao estuário
um horizonte interminável
as barcas todas em trânsito afável
e o rio
habitável.
O rádio escanhoa o dia desafeiçoado
as notícias debitadas
soam como palavras vazias
uma gramática arcaica
desusada
e a voz do locutor
como se a de um louco se tratasse
em contínua vozearia,
demencial.
Que as migalhas do pretérito
não sejam desaproveitadas:
Urge
um choque térmico de História
com suas histórias
benevolamente esbofeteadas
nos rostos imberbes
dos néscios.
Hoje
converso no parapeito
onde se abriga
o mito sem rosto.
Desalojo
a incubação da sementeira
os olhos rasos
já assombrados
num limbo sem verbo.
Recebo
na morada da janela
o beijo sem fome
e junto as mãos
no parapeito da moldura,
à espera
de um tempo desembaraçado.
O genuíno garfo
saltando as searas outonais
exara o salvo-conduto
dos fantasiados ascetas
que derruem soldados.
Daqui a dois bocados
adia-se tudo:
as claras em castelo
não aconteceram;
é preciso pedir (outro) favor
aos galináceos.
Nada disto seria assim
se o bolo tivesse sido comprado
já feito,
ou se, sardónicos,
fizéssemos dieta;
mas somos hienas de nós mesmos
e esquecemos.
Na fila do supermercado
uma senhora manca
manca
e passa à frente da fila.
(Destas coisas modernas,
da prioridade para pessoas
com handicaps).
Na fila do supermercado
uma senhora manca
paga as compras
e sai
sem ser manca.
(Os comentários,
impregnados de moralidade,
ficam por conta do leitor.)
[Crónicas do vírus, CCCXCV]
Uma mortalha de suspensão
(ou um ano inteiro
na jaula de um parêntesis).
Matéria-prima:
o azulejo apessoado
por dentro do olhar antecipado,
em estrofe tutelar
do provérbio em deserção.
A voz do xilofone
ouve-se ao longe.
O murmúrio da multidão
também.
As sílabas sobrepõem-se à maresia
em combate terçado sem gente
apenas no sortilégio das palavras:
das palavras que se embebem
no mar demiúrgico.
Umas,
malditas,
aventuram-se
como primas da matéria fulcral;
outras,
mal ditas,
oferecem-se ao ultraje dos ínscios
e constituem-se desperdício,
tumulares.
Os ladrilhos
tocam ao de leve com os dedos
nos olhos extasiados dos forasteiros.
Os nativos,
distraídos,
são os forasteiros
de sua própria cidade.
Não sabem
do paradeiro dos azulejos.