[Crónicas do vírus, CDLXIX]
Quanto do nosso eu
foi confiscado
numa tirania disfarçada?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Tirando
as ervas daninhas
e os coevos admiradores
de aspirantes a tiranetes
fica a aveludada pista
para o tangencial amanhã.
Ao calhas
a matilha limítrofe
fareja o sinal da morte
pois a morte é mantimento.
Admirados
os representantes das farsas
passam a mão pelo amanhã
e certificam-no
com um selo arcaico.
Sem saberem
povoam-se
ervas daninhas
no seu
(próprio)
prândio.
[Crónicas do vírus, CDLXVII]
As palavras imponderáveis:
zaragatoa
síncrono
confinamento
assintomático
profilático
ventilador
zoom
distanciamento
vacina.
Deito-me à amálgama
que incendeia a boca.
Ao longe
o latido de um cão
irrompe a solidão da madrugada.
Lembro o crepúsculo de véspera
uma claridade singular,
maduramente ocre,
agigantando-se
contra a decadência do dia;
lembro
como fiquei extasiado
e quase entoei uma prece
para tornar imorredoiro este entardecer.
Mas agora era madrugada:
a negação
do imorredoiro, quimérico ocaso de véspera.
Entendo agora
a amálgama que não julgo ser prisão
nem labéu que me desterra
mas o manancial que semeia
a estatura maior do que sou.
[Crónicas do vírus, CDLXVI]
Todo este tempo depois
a suspeita
que o devir falhará
os hábitos do outrora.
Não se montam escadotes
num rossio deixado ao deus-dará.
Os poetas esqueceram-se da chave.
Pelo estreito corrimão
não cabem dois pares de mãos.
Aos cabelos enxovalhados
atirem-se pétalas de ouro.
Este puré não vinga
na assembleia de Ícaro.
Não se elevam sacerdotes
no harém esquecido num mapa perdido.
Os poetas nunca foram servis.
Pelas avenidas apinhadas
correm as mãos desajeitadas.
Aos ourives apeçonhados
atirem-se cabelos desemparedados.
Este vinho não convence
na conferência de Eros.
Não se fingem astronautas
na maré rasurada das medidas.
Os poetas não querem um céu.
Pelo cais solitário
avança a matilha caiada.
Aos órfãos revoltados
atirem-se mães à solta.
Este cozinhado não se valida
no estertor de Zeus.
(Trama desnacionalista)
As bandeiras choram.
Escamam as suas lágrimas
nos bebedouros onde se alicia
a melancolia.
Os prantos fundem-se com as preces:
ah,
outrora lançávamos os dados
e hoje não passamos de peões
num tabuleiro onde somos
deslembrança.
As bandeiras rasgadas,
pontuação da desesperança
e só por um segundo
a grandeza,
essa tão fátua grandeza,
se levanta das teias dos manuais:
neles se encerram as suas fronteiras;
neles
vivem os fantasmas
que resistem ao exorcismo do presente.
O futuro
é feito do presente
que vamos adestrando,
este o seu autêntico tirocínio.
O passado
tem o conhecimento
como única serventia;
não se presta
a ser a fonte ardilosa
de onde manam
oráculos disfarçados de miasmas.
[Crónicas do vírus, CDLXIII]
Não chegam
as letras do alfabeto
para emoldurar
o retrato da peste.
Não se diga
uma palavra
sobre as modas
que o silêncio
as devolve
as desmodas.
Na casa decimal
avalia-se o encargo
à revelia da lei,
não vá a ambição
de estar in
perder-se na mealha rota
e acabar no entreposto
onde se arquiva
o out.
Torre de marfim:
onde as vidraças
não cobram franquia
e as palavras se emaranham
numa gólgota medieval.
Torre de marfim:
onde,
circunspectos,
fiscais fazem a corte ao zelo
e sonham
em sonhos sem sono
com judiciosas armadilhas
onde,
impreparadas,
as pessoas são caçadas.
Torre de marfim
até ficar condenada
à verrinosa ferrugem
dos apóstolos da decadência.
“Estou pronta”,
avisou,
a profecia,
com um pé delicado porta fora
sem saber da chuva torrencial.
“Estou pronta”,
repetiu,
a profecia,
ao notar a indiferença da audiência
assim se sabendo sozinha.
“Digo outra vez:
es-tou pron-ta!”,
silabou,
a profecia,
com todo vagar,
a convocar a atenção
quase em súplica
– quase como se fosse preciso
desenhar em legendas
a gramática da advertência
que encorpava
a profecia da profecia.
Ninguém a ouviu.
Quando a profecia se abateu
o esquecimento de todos
embaciou o olhar
e ninguém deu a mão
à profecia.
À profecia
que órfã ficou.
[Crónicas do vírus, CDLVIII]
O paga do
na sede
de sermos animais sociais
é a misantropia à força.
Não prometo tréguas
se nunca dancei com a guerra.
Aos tiranetes da razão
brindo
com uma infusão de loucura
e pé ante pé
assombro-os
com o vulto de que me faço.
Aconselham
que ninguém mate com ferros
para em ferros não ser morto:
esse é o vão a que não me agarro;
deixo-o para os agiotas
que vomitam
por cima da métrica assisada.
[Crónicas do vírus, CDLVI]
A revisitação da quarentena
como pretexto
para a procrastinação de muitos.
Ora:
é esta filigrana
que nos deixa em cabelos de ouro
o sono que entronca nos corpos nus
diamante sem bruto capataz
uma cornucópia tatuada no peito
com um nome sem recusa,
nos olhos vigilantes
não tementes.
À hora incerta
não declaramos um êxtase na alfândega
e ninguém nos quer prender.
O lobo uiva as sílabas sopesadas
e tiramos à sorte o devir
uma senha que escolhe o sortilégio
condensando nevoeiros baços
sobre as cortinas onde se esconde
a indigência.
Por ora
sabemos as páginas onde nos escondemos:
descontamos as onomatopeias
e a pontuação em desacerto
até do fundo do rio,
decantado o lodo,
extrairmos os ossos legados:
a mais pura
das imperfeições,
percebemos logo.
A nossa,
incomparável e incalculável,
imperfeição.
[Crónicas do vírus, CDLIV]
Esta matemática
que desassossega,
almirante
de um sinal escatológico.
Açambarco a roupa
que a nudez me embaraça.
Se ao fundo do lago vou
é por saber que,
submerso,
o corpo se resguarda
do olhar invasivo.
O corpo imerso
cuida da sua tolerância.
Não se blasona
(não que não houvesse
causa própria)
nem se exibe
atentatório
contra o zelo da estética.
Trago a roupa ao corpo
em vergonha própria.
Diletante
capitalizo a nudez
contra o jugo do preconceito
ao lado de quem o toma
como caução.