[Crónicas do vírus, CDLXXXII]
Uma peste
com saudades do maio de 68.
(Vendo as guedelhas
que os varões apresentam.)
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CDLXXXII]
Uma peste
com saudades do maio de 68.
(Vendo as guedelhas
que os varões apresentam.)
I
O furtivo gato vadio
esgueira-se entre duas paredes.
Não tem pertença.
Disso se alvitra
dos gatos que dizem ser vadios.
Mas o gato tem um paradeiro,
como pode ser vadio?
II
Os pianos à espera de venda
não se ensinam na mudez.
Junta-se em finas camadas
a poeira versátil que os desafina.
Os pianistas não andam por perto.
Os pianos exibem a sua contumácia.
III
O embaixador debita o gongórico pesar
enquanto o mundo puído
cuida da sua decadência.
Se tivesse havido tirocínio
fora dos salões diplomáticos
o embaixador libertar-se-ia dos laços solenes
enfim imberbe na hermenêutica do mundo.
IV
O fundo ácido das palavras espontâneas
contraria o desaguisado com a eira da alma.
O passo incerto acerta as horas,
ditas por uma clepsidra submersa.
As ilusões não são a terraplanagem hasteada,
o olhar devolvido ao teatro dos sonhos.
V
Veio uma amostra do tempo lúdico.
Em vez de preces
(não atendidas),
uma voz rude.
A cortesia pertence ao pretérito,
embrulhada em verbos contrafeitos
e personagens vazias de memória.
É vetusto o singrar na solidão:
vetusto e sem propósito
a semântica sem falantes em nome próprio.
Lúdico é a lucidez sobrante.
VI
O mapa abraçado ao diadema
povoa as cintilações desarmadilhadas.
Oxalá o mapa haurido seja destronado
pelo envelhecer consentido,
sem pressa.
Os mapas desaprendem-se
no eterno desejar de tudos sem hipótese.
VII
O gato vadio
não sabe o que é o mar.
Mas o mar fala connosco
conta-nos os segredos
que são os nossos segredos.
A manhã avivada
enumera os verbos alimentares
enquanto o tempo urde as suas personagens.
Não consta
que os gatos
(vadios ou não)
procurem o mar como azimute.
VIII
A armadilha sob o olhar
disfarça-se de beatífico rosto.
As árvores acinzentadas pelo dia chuvoso
martirizam-se
não lhes sai da cabeça
que foram inventadas
para ornamentos de dias ungidos pelo sol.
IX
Antes o despenhor dos gatos vadios
do que a fórmula narcisista
de anjos agonizantes
presos
às cortinas da memória
e à tirania da pertença.
[Crónicas do vírus, CDLXXXI]
Quando isto tudo terminar.
A centelha de desesperança
que mais ecoa nas bocas.
Não será a voz sem nome.
Não será o ocaso adiado.
As ferragens do dia
espalhadas no sótão do pensamento
guardam as sílabas que esperam vez.
Não será por causa dos nomes sem voz.
Não será por causa do adiamento esquecido.
O caudal frugal
despenha-se no dorso cansado
e usurpa a lucidez desembaraçada.
Não será do nome que traz uma voz.
Não será do ocaso que súplica vez.
Os armadores dos sentidos
povoam a geografia das almas
sem espera de recompensa.
Não será através do medo.
Não será através dos sonhos.
Os trunfos amuralhados
revoltam-se nas costuras da manhã
e atravessam o leilão marcado para um ermo.
[Crónicas do vírus, CDLXXVIII]
E apesar do arcaísmo
para que somos atirados
fugimos para o futuro
através de ideias fecundas.
Não quero ser
astronauta:
o mundo
não é para ser visto
de fora.
Ou,
sendo assim olhado,
senti-lo exterior se torne vício,
terapêutico ao fazer esquecer
as suas imensas fragilidades,
e seja o apetite
para os pés não voltarem a sentir
a boca da terra.
Não me digam
o que não é falável
na circuncisão do olhar
pelas lágrimas repressoras
de altivos sicários de almas.
Prefiro desfalar
o que é falável
usar a baioneta da palavra
fecundar a dissidência
no altar
onde
só vozes caiadas
colhem identidade.
Não me obstruam o mar
que as minhas ondas se sobrepõem
aos paredões indigentes.
Não levem
o ouro que trago na pele
que a nudez remanente
é pólvora
ateada no quartel dos fracos.
Não me digam
o que tenho caução para dizer
que serão essas as palavras
que faço sussurrar na boca,
continuamente.
Não desembaracem fronteiras
que eu próprio me faço salteador
e desembarco numa baía
onde o areal se declarou
livre
de magistrados castradores.
No pé de página
onde a atenção se dissolveu
os nomes que oferecem a inspiração.
É por isso
que odeio os rodapés:
não passam de ornamentos
um enchimento de página
prova dada
das leituras encomendadas.
Ao pé de página
devia estar apenas
o número
e não os nomes
que quase não passam
de analgésicos números.
[Crónicas do vírus, CDLXXIV]
A mnemónica necessária:
quando será a descolonização
do vírus maldito?
O penhor sem alma
toma de assalto a renda alheia
ao notar
os excruciantes pesares
dos penhorados.
Usurários,
os juros,
combinam com a aspereza da alma
(afinal, tem-na,
mas de mau calibre).
O penhor
desalma os penhorados.
Estes,
em farta súplica,
pedem
(e fazem-no “penhoradamente”)
para haver lugar a alguma indulgência.
O penhor
homem pouco letrado
não sabe o significado de “indulgência”
e tem vergonha de perguntar
(ou de deitar mão a um dicionário
sob o olhar inquisitivo dos outros).
Recusa a súplica,
compulsivamente desconfiado.
Os penhorados perdem tudo.
O penhor
sem saber da vicissitude
perde
o que perderam os penhorados:
não há vivalma
que dê um cêntimo
por aquele pecúlio penhorado.
Termos em que se pode epilogar
reconhecendo
que o penhor foi devorado
pela avareza
(e pela necedade).
Tirando
as ervas daninhas
e os coevos admiradores
de aspirantes a tiranetes
fica a aveludada pista
para o tangencial amanhã.
Ao calhas
a matilha limítrofe
fareja o sinal da morte
pois a morte é mantimento.
Admirados
os representantes das farsas
passam a mão pelo amanhã
e certificam-no
com um selo arcaico.
Sem saberem
povoam-se
ervas daninhas
no seu
(próprio)
prândio.
[Crónicas do vírus, CDLXVII]
As palavras imponderáveis:
zaragatoa
síncrono
confinamento
assintomático
profilático
ventilador
zoom
distanciamento
vacina.
Deito-me à amálgama
que incendeia a boca.
Ao longe
o latido de um cão
irrompe a solidão da madrugada.
Lembro o crepúsculo de véspera
uma claridade singular,
maduramente ocre,
agigantando-se
contra a decadência do dia;
lembro
como fiquei extasiado
e quase entoei uma prece
para tornar imorredoiro este entardecer.
Mas agora era madrugada:
a negação
do imorredoiro, quimérico ocaso de véspera.
Entendo agora
a amálgama que não julgo ser prisão
nem labéu que me desterra
mas o manancial que semeia
a estatura maior do que sou.
[Crónicas do vírus, CDLXVI]
Todo este tempo depois
a suspeita
que o devir falhará
os hábitos do outrora.
Não se montam escadotes
num rossio deixado ao deus-dará.
Os poetas esqueceram-se da chave.
Pelo estreito corrimão
não cabem dois pares de mãos.
Aos cabelos enxovalhados
atirem-se pétalas de ouro.
Este puré não vinga
na assembleia de Ícaro.
Não se elevam sacerdotes
no harém esquecido num mapa perdido.
Os poetas nunca foram servis.
Pelas avenidas apinhadas
correm as mãos desajeitadas.
Aos ourives apeçonhados
atirem-se cabelos desemparedados.
Este vinho não convence
na conferência de Eros.
Não se fingem astronautas
na maré rasurada das medidas.
Os poetas não querem um céu.
Pelo cais solitário
avança a matilha caiada.
Aos órfãos revoltados
atirem-se mães à solta.
Este cozinhado não se valida
no estertor de Zeus.
(Trama desnacionalista)
As bandeiras choram.
Escamam as suas lágrimas
nos bebedouros onde se alicia
a melancolia.
Os prantos fundem-se com as preces:
ah,
outrora lançávamos os dados
e hoje não passamos de peões
num tabuleiro onde somos
deslembrança.
As bandeiras rasgadas,
pontuação da desesperança
e só por um segundo
a grandeza,
essa tão fátua grandeza,
se levanta das teias dos manuais:
neles se encerram as suas fronteiras;
neles
vivem os fantasmas
que resistem ao exorcismo do presente.
O futuro
é feito do presente
que vamos adestrando,
este o seu autêntico tirocínio.
O passado
tem o conhecimento
como única serventia;
não se presta
a ser a fonte ardilosa
de onde manam
oráculos disfarçados de miasmas.
[Crónicas do vírus, CDLXIII]
Não chegam
as letras do alfabeto
para emoldurar
o retrato da peste.