12.2.21

Gato vadio

I

O furtivo gato vadio

esgueira-se entre duas paredes. 

Não tem pertença. 

Disso se alvitra

dos gatos que dizem ser vadios. 

Mas o gato tem um paradeiro,

como pode ser vadio?

 

II

Os pianos à espera de venda

não se ensinam na mudez. 

Junta-se em finas camadas

a poeira versátil que os desafina. 

Os pianistas não andam por perto. 

Os pianos exibem a sua contumácia. 

 

III

O embaixador debita o gongórico pesar

enquanto o mundo puído

cuida da sua decadência. 

Se tivesse havido tirocínio

fora dos salões diplomáticos

o embaixador libertar-se-ia dos laços solenes

enfim imberbe na hermenêutica do mundo. 

 

IV

O fundo ácido das palavras espontâneas

contraria o desaguisado com a eira da alma. 

O passo incerto acerta as horas,

ditas por uma clepsidra submersa. 

As ilusões não são a terraplanagem hasteada,

o olhar devolvido ao teatro dos sonhos. 

 

V

Veio uma amostra do tempo lúdico. 

Em vez de preces 

(não atendidas),

uma voz rude. 

A cortesia pertence ao pretérito, 

embrulhada em verbos contrafeitos

e personagens vazias de memória. 

É vetusto o singrar na solidão:

vetusto e sem propósito 

a semântica sem falantes em nome próprio.

Lúdico é a lucidez sobrante.

 

VI

O mapa abraçado ao diadema

povoa as cintilações desarmadilhadas. 

Oxalá o mapa haurido seja destronado

pelo envelhecer consentido,

sem pressa. 

Os mapas desaprendem-se

no eterno desejar de tudos sem hipótese. 

 

VII

O gato vadio

não sabe o que é o mar. 

Mas o mar fala connosco

conta-nos os segredos 

que são os nossos segredos.  

A manhã avivada

enumera os verbos alimentares

enquanto o tempo urde as suas personagens. 

Não consta

que os gatos

(vadios ou não)

procurem o mar como azimute. 

 

VIII

A armadilha sob o olhar

disfarça-se de beatífico rosto. 

As árvores acinzentadas pelo dia chuvoso

martirizam-se

não lhes sai da cabeça

que foram inventadas 

para ornamentos de dias ungidos pelo sol. 

 

IX

Antes o despenhor dos gatos vadios

do que a fórmula narcisista

de anjos agonizantes

presos 

às cortinas da memória

e à tirania da pertença.

Sem comentários: