2.3.21

#1929

[Crónicas do vírus, DI]

 

O murmúrio 

de uma voz sem nome

levanta o véu

de um sol impaciente.

1.3.21

Improvavelmente

Não quiseram cancelar deus

dentro do prazo

e ficaram com deus imorredoiro,

um deus sentado a adejar sobre eles,

sem saberem que serventia lhe dar.

Aos chamamentos contínuos

o silêncio estrutural.

Podiam não ter cancelado deus

a tempo

mas deus já os tinha desterrado

para a pátria dos mudos

(o que ia dar ao mesmo).

Não cancelaram deus

dentro do prazo:

deus antecipou-se.

E eles,

insubmissos mortais,

guardaram para si

o diamante da ousadia:

deus não está no meio de nós,

disseram em desdém,

que a eles,

mudos por divino decreto,

deus não ouvia.

#1928

[Crónicas do vírus, D]

 

Como a água barrenta do Douro

alvejada quando o mar a abraça,

esperamos pelo dia depois da peste.

28.2.21

Manual da resignação ao socialismo

O corso 

penhora o viés 

dos feiticeiros.

Em vez 

de pautas autênticas

os trovadores falam

de luas esquecidas

e embaciam os olhos

em luras fingidas.

O cidadão,

disbúlico,

fermenta o paternalismo

enquanto protesta

contra a presença perene

dos mandantes.

#1927

[Crónicas do vírus, CDXCIX]

 

Logo nós 

– arrumavam o fastio,

antes que fosse cedo de mais.

27.2.21

#1926

[Crónicas do vírus, CDXCVIII]

 

A peste

é um parêntesis no tempo

ou a confirmação de que somos

uma grande mentira.

26.2.21

Semântica em coreografia reescrita

A caligrafia

no pranto sem meada,

visível embaraço.

Segredam:

é a apoteose

e as vírgulas parecem

estar de acordo

tal como os sábios

esquecidos da sua erudição.

Doravante,

só há planícies

– planícies e súplicas.

O riso calcificado

desamanhece,

estorva a prosápia dos aspirantes.

Se ao menos se soubesse

do paradeiro da gramática

e não houvesse terroristas do idioma

o apogeu teria lugar

para além do dicionário.

#1925

[Crónicas do vírus, CDXCVII]

 

Não é tanto

o estado de sítio

mas o sítio do des-Estado.

25.2.21

Caudal

Onde o rio torce o braço

e o poente se esconde

nas costas dos socalcos

o feixe de luz habita a janela

ciciando o ocaso.

Onde o rio torce o braço;

antes que os poetas acordem

e tragam para a moldura

o bojo dos almirantes da palavra

e esta,

desenhadora,

amanheça em camadas de sentido

destronando as comendas dos avoengos.

#1924

[Crónicas do vírus, CDXCVI]

 

À medida que o passo avança

um deserto

que parece não ter fim

e devora a paciência.

24.2.21

Exílio

Esconjurado o fogo ávido

os corpos deitados pelo chão

sobre tapetes puídos

exalam o sacrifício do medo

enquanto pela portada

um clarão se projeta na parede.

 

Até parece

que a parede 

não está encardida.

 

Os projetos de passado

imersos no bolso do avesso

como se houvesse oráculos

e dos oráculos pudéssemos pedir

o futuro emprestado.

Não se confia na resistência de materiais

depois de tantas labaredas

e de quase tudo consumido no planalto

onde os espectros ficam longe.

 

Imaginamos a maré que rasteja até ao areal:

os pequenos despojos de água

fundidos na areia

como acontece

com a memória que atravessa o tempo

e se encerra em pontes herméticas,

o lugarejo ermo onde avança o rosto

contra as espadas que dinamitam o sono

em estilhaços que tornam o dia impuro.

 

Amanhã faz-se o resto.

 

A vassoura está perdida

e os vestígios ainda fumegantes 

bolçam uma maldição,

uma maldição qualquer,

anónima,

ergástula,

o condoído lamento

que saciado na anemia.

 

Atravessam-se as portas 

que se julgava fechadas.

 

Os amotinados não estão no lugar 

– eles nunca estão em lugar algum.

Leiam-se os éditos

nos idiomas que houver por inventariar

e diga-se,

com a voz ornamentada a tinta da china,

que a enxada remexe a terra

à procura dos diamantes prometidos.

 

Os medos não vêm à porta

e no juramento sem cerimónia

enfeitam-se as deusas com a nudez

entre os dedos que as desenham

e as bocas vadias

que nelas encontram sede.

#1923

[Crónicas do vírus, CDXCV]

 

Ao naufrágio de todos

somam-se os regentes.

23.2.21

Fala

Parto sem as chaves da porta

não sei das marés amanhecidas

nas palavras suadas

e aos parapeitos nus devolvo

a fala. 

 

Oxalá seja uma empreitada impura

um daqueles objetos disformes

entoando o salitre atirado longe

e contra os tiranetes categóricos arrimar

a fala. 

 

Concebo-me fecundo aríete

nos despojos de um dia esquecido

arriscando a métrica invalida

e às Desdémonas participo o império

da fala. 

 

No juramento sem lacre

o coração arremete contra o remoinho

onde máscaras sem sentido

patrocinam um medo que não meço

pela fala. 

 

Chego ao estuário que extasia a boca

sem saber dos caminhos demandados

e todavia rasurei as arestas sem previsão

num anoitecer sem angústia à mercê 

da fala. 

 

Na fala que me concebe

arrumo as palavras mortas

contra as armaduras tomadas por vultos

antes que seja a espera a minha consumição

na fala em que me concebo.

#1922

[Crónicas do vírus, CDXCIV]

 

Nos despojos da invasão

arrematamos um olhar aprendiz.

22.2.21

Os meses são desiguais e ainda ninguém protestou

Os calendários são armadilhas:

a transfusão de dias

deixam-nos desiguais.

Todavia

não consta

que fevereiro se queixe de nanismo

nem que maio ou outubro

protestem contra a engorda forjada

ou que junho e novembro

desaprovem a dieta à força

ou que dezembro e janeiro

e julho e agosto

se amotinem por serem desiguais 

na alternância de meses desiguais.

Está é uma desigualdade

sem paladinos 

a quererem ditar a sua correção.

#1921

[Crónicas do vírus, CDXCIII]

 

Damos abraços

ao pesadelo duradouro

sob o vento ancião

que protesta 

um arrepio de apocalipse. 

21.2.21

#1920

[Crónicas do vírus, CDXCII]

 

A peste em bruto:

as juras que ficaram

desautorizadas.

20.2.21

#1919

[Crónicas do vírus, CDXCI]

 

A cólera,

um outro preço

da peste.

19.2.21

Moscatel

As curvas do rio

acordam da penumbra.

Ordenam as palavras dispersas

enquanto os patamares esperam:

esta noite

não é vitral do luar;

é o santuário do pecado.

Às escuras

as curvas do rio

apenas o pressentem.

#1918

[Crónicas do vírus, CDXC]

 

Amanhã

quando for o lugar desse amanhã

seremos anagrama

do que já fomos.

#1917

[Crónicas do vírus, CDLXXXIX]

 

Procuramos outra proteína

nas entrelinhas do labirinto.

18.2.21

Diagrama

Não se esconjuram

os pesadelos

que desornamentam a noite

nas ogivas decadentes da catedral.

Os estrénuos artífices 

conjugam as sílabas 

fazem-nas rimar com a saliva dos lobos

e colhem na mão nua

o fio denso da manhã.

Não anoitecem,

as estrofes adiadas:

esperam pela fortaleza furtiva

e aquartelam os pesares,

até às notícias tardias

selarem as bocas já de si

emudecidas.

#1916

[Crónicas do vírus, CDLXXXVIII]

 

Este tempo de parábolas,

as mãos a empurrá-lo

para trás.

17.2.21

Penitência

Por onde vou

no contrabando do verbo

não há monumentos para gastar.

 

Para onde vou

na gramática das minas

não há bondade para usar.

 

De onde vim

no opúsculo da mentira

não há almas para cuidar.

 

Por onde venho

no oráculo das viúvas

não há lágrimas para atraiçoar.

#1915

[Crónicas do vírus, CDLXXXVII]

 

Os dias

continuam a ser

como bolos cobertos de sal.

16.2.21

#1914

[Crónicas do vírus, CDLXXXVI]

 

Dizem que não houve carnaval. 

Mas é mentira. 

Na rua 

andam todos mascarados.

Retiro

O retiro

ou mais:

o lúgubre lugar

exílio das palavras embaçadas

penhor ávido

das deslembranças.

Ou retiro

às mealhas da memória

o corpo extático

e no alpendre

que tutela o rio

agiganto o eu novo

que se retira

à hibernação gorada.

No retiro ermo

ou mais:

na fuga que desmata

os medos de seus olhos

desvenda-se o mapa

tecido 

pelos dedos não gastos

mercancia da alma sem freio

oráculo sem medida do tempo.

Retiro-me

a tempo do destempo 

que me entroniza

e acredito

no póstumo candelabro

vertendo a cera derruída

pelas lágrimas esquecidas.

Desse retiro

onde sou o que serei:

montanha sem neve

impressão digital da primavera cega

rio estrepitoso

cavando o seu caudal

com as mãos não gastas

e o selo

de um olhar sem medo.

#1913

[Crónicas do vírus, CDLXXXV]

 

Regentes

em pose de estadistas

que não passam

de ilusionistas. 

15.2.21

Manifesto contra o calor de ananases

Temos a sombra da pérgula

enquanto se agiganta a boca do sol

e o estio merecesse castração.

 

Pela janela

coabitamos o olhar

ciciamos por uma réstia de maresia.

 

O palco não está de feição

esta fornalha intempestiva,

como se as palavras bombistas

subissem à boca

e só déssemos conta

quando, 

ativadas pela saliva aterrada,

tomassem conta do corpo inteiro.

 

Tal como a fornalha em riste

contra o frescor do corpo

que exsuda, furiosamente;

o corpo

como se conspirasse 

em autofagia.

#1912

[Crónicas do vírus, CDLXXXIV]

 

Não podemos

convocar o esquecimento

e fingir o desacontecimento do tempo.