[Crónicas do vírus, DLXX]
Recolhemos
os fragmentos perdidos
nas ruínas da peste
sem vontade de sermos
o mesmo filão.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DLXX]
Recolhemos
os fragmentos perdidos
nas ruínas da peste
sem vontade de sermos
o mesmo filão.
A aguarela sentou-se no lago
e deixou que o espelho de água
falasse por si.
E antes que a noite tivesse pressa
não deixou que a plateia
se exilasse no olvido.
Deitou a mão ao entardecer
e emoldurou a aguarela
em lugar imperial.
Não saiu do lugar,
não fosse o lugar sair do sítio.
Na manhã que se seguiu
a aguarela era a continuação
do lago
e ele,
o pintor encomendado,
esquecimento puro de si mesmo.
Foi ao fundo da alameda
que branqueou a confidência:
“Eu não tenho chefe,
tenho inteligência.”
Logo depois
hasteou a bandeira da vaidade
(confundido pelo sol
que feria o olhar).
[Crónicas do vírus, DLXVIII]
Já não somos
de plasticina.
(E alguma vez
deixámos de ser
de plasticina?)
O sonho
no seu próprio anzol
sobreposto
à matéria venal:
o sangue armadilhado,
à espera de tempo.
Estragão
(ou outra erva qualquer,
não se sabe)
ceava
nos espinhos da coroa do escolhido
devolvendo um aroma
que o suor houvera curvado.
Os discípulos ciciavam
à espera do anoitecer:
o escolhido parecia enfraquecer.
Sem demora
encomendaram umas tisanas
que os espinhos se desprendiam da coroa
e o escolhido já só parecia
uma miragem.
[Crónicas do vírus, DLXVI]
Liberdade doseada,
às colheradas,
com o advento de maio
(que é depois de abril).
Não digo
no espasmo da fala
que seja acintoso,
o Napoleão.
Podia ser
que o pusesse em diálogo
com Séneca
(ou em caso de indisponibilidade,
com S. Tomás de Aquino).
Napoleão teria de esperar pela rifa.
Sagaz,
tentou subornar o espírito do concurso.
Foi o seu maior erro:
Kierkegaard podia ensinar,
sem a catedrática pose
que não tolera o contraditório,
que os espíritos são
à prova de subornos.
Napoleão resignou-se.
Antes Napoleão por um dia
do que os discípulos em barda
pressurosamente ensinando o desdisse.
Assim como assim,
não há auroras boreais
por estas paragens.
Atiro o alfabeto
contra a boca sedenta
e reverto a toada a favor
dos órfãos de sentido.
As letras
desenho-as com o cinzel furtado.
Meto-as numa aguarela primaveril
e desminto os ogres que voluteiam
entre os hemisférios perdidos.
À força de um labirinto
depois do ermo lugar
junto as mãos todas numa clepsidra:
oxalá sejam artífices
do mais alto verbo
e depois de um depois
se cumpram na fértil andança dos mares.
Dizem:
que não venham venenos sem antídoto
que não se soergam no ocaso
os mastins celebrados por atrocidades
que falem baixo
os tiranetes sem guarida;
que não se desestime a laje secular
o adro que não perde os velhos em repouso
a crisálida que se deita nas flores sedentas.
Amparo o alfabeto,
antes que fique órfão.
Espreito
pelos interstícios
onde ecoa a penumbra.
Espreito
a madrugada em sentido
o vocabulário tenente
que é o aforro dos tardios.
Espreito
este dorso incansável
que promete o amanhecer sem demora
o visível contrabando da fala.
Espreito
a madrugada sem sentido.
Ponto e vírgula;
o excedente que se abeirava
não era o abismo
a vertigem pela calada;
ponto e vírgula:
era o tempo poupado
para a miragem seguinte.
Em vez da vírgula
o som calado da montanha
o rumorejo da água escondida
e o sol em barda
batendo contra o corpo exilado.
Desacreditava;
e não precisava de ser metódico
com a pontuação.
Um bazar em Istambul
vale mais
do que a torre de marfim
que é o pináculo dos modernos
mercadores.
Desenganem-se
os astronautas da finança
por mais fecunda que pareça
a sua artilharia.
Pois espartanos são os seus modelos,
a léguas de importunarem
a metáfora do belo
que é o bazar de Istambul.
És storyteller,
sem redenção.
E eu
rendido
devolvo a paga
em sobremesas e teatro.
Cresço nos enredos
que exsudam de teus dedos.
Esvazio as barreiras
enquanto fico à tua espera,
à espera de um cosmos
que é metamorfose dos sonhos.
Pela mão das tuas estrofes
não quero saber onde me levas.
Só quero saber
que me leves.
As tuas estrofes
são a bala de confiança
que me industriam a ser
alguém por fora de mim.
Levanta-se o termo em volta da penumbra:
a manhã está pronta.
Desembaraça-se a luz,
ao início presa às amarras da noite,
autorizando os matinais percursores
na inauguração do dia.
Não há nada a dizer da rotina.
As pedras do cais
são sempre frias e húmidas,
mesmo quando o Verão está no auge.
O que será
dos que rumam contra a maré
e, noctívagos,
viram o tempo do avesso?
Dirão de sua rotina
ser uma rotina
no avesso da rotina
dos que são seus antípodas
– uma fortuna ao acaso,
como qualquer outra.
Não se fale de rendição
nem de perspicuidade.
Os lados dos dados não mudam
com um aceno da vontade.
Em vez da angústia,
a aceitação da rotina:
é uma prova de vida,
um ermo.
Uma chuva malsã
desarruma a sementeira
o inesperado absoluto
para prostração dos agrários.
As abelhas fugiram a tempo
mas o vinhedo estava sitiado.
Ao longe
nuvens pomposamente acerbadas
deram sinal de partida;
deixam atrás de si
a devastação.
Um caudal sem leito
desce os socalcos à procura de espaço.
É uma fotografia perturbante:
os rostos assimétricos da natureza
falam depois das loas
quando a sua fúria castradora
deixa os miseráveis à míngua.