[Crónicas do vírus, DLXXXII]
A peste apostou
na nossa indignidade
mas fala-se que vamos ser
desaçaimados.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A cabeça em água
não pode ser se não um louvor.
Se a água é o elemento dominante
da Terra
uma cabeça feita em água
é o panegírico da moderna ecologia.
Todavia
as pessoas queixam-se
das cefaleias que liquefazem a cabeça
dos tremores que condensam a angústia.
Se pudessem,
carregavam barragens na nuca
só para abrirem as comportas
e a água desabitar as suas cabeças.
Ah!
se ao menos soubessem
que uma cabeça cheia de água
é uma fronteira que se fecha
ao vento que dela se apodera.
Um bom tema de conversa:
há quem demande o santo Graal
como se tudo fosse contingente
e um bastão ingente,
a qualidade,
adejasse como sentença definitiva.
Não sabem
os que precisam de ser desenganados,
que a fala dispensa adjetivos.
Sou
velocidade de cruzeiro
um meteorito despenhado no futuro
o osso duro que não se adia
regimento sem artilharia
ingrediente raro sem paradeiro
o estuque que disfarça a muralha arcaica.
Sou
o barítono do lugar omisso
a tisana oferecida aos reféns sem preço
pacífica aspiração
rebelde industriado pela vontade sem cortina.
Sou
o olhar sufragado
mãos que se entrelaçam nas sombras
a cobiça desautorizada por vozes apagadas
o espartano delator de ninguém.
Sou
uma medida sem medida
ponte pênsil segura por presilhas
negação da numismática
e no entanto colecionador de toponímia.
Sou
o silvestre artesão que determina as mãos
no mais impuro segredo entre os ímpares.
Sou
o desafio à vertigem do tempo
rebelde sem causas
mentor de almas por tresmalhar
descompanhia recomendável
no parapeito da angústia sem remédio.
Povoamos o sangue com o resto da noite.
Deixamos que os olhos não sejam baços.
O vento tortura a rua
enquanto bebemos o suor dançado
nos parágrafos que se escondem do amanhã.
As vozes amontoam-se nas paredes.
Fintam os verbos inválidos
e são elas próprias o arvoredo da primavera
o fértil chão onde nos deitamos para saber da pele.
Diremos que o medo não se compõe
na porta aberta às marés vivas
e que do centenário dicionário
colhemos as vésperas destinadas.
Açambarcamos os rios:
damos o nosso suor às suas águas.
Vemos no caudal paladino os punhos que escrevem
e sabemos
que nas veias voam palavras debruadas a mar.
Se soubéssemos dos oráculos
não queríamos o estojo dos druidas:
seríamos nós,
suficiente matéria arrumada num cofre,
prestamistas dos ultimatos sem assinatura
razão máxima da desrazão.
Se os prolegómenos se adiam no ciciar da tempestade
deixamos que os trunfos se arrastem na orla
e de um ermo lugar depomos o vazio.
Não há trovoada que nos derrote
nem noite parecida com um labirinto sem nome.
A matéria está dada.
O compêndio desaperta-se do medo
e o medo não se enquista:
fica em nós a medula pura
e sem adiamento cruzamos as latitudes
à espera dos lugares ensinados nos sonhos.
Até que os sonhos percam paradeiro
E subam pelos nossos corpos matriciais.
Deixamos a meação do património
que o território é ingreme
e o peito quer estrofes
que da fala sejam
procuradoras.
Janeiro
todo lampeiro
fevereiro
à espera do carpinteiro
março
mais forte do que o abraço
abril
convenientemente primaveril
maio
todo catraio
junho
com o meu cunho
julho
desfeito o esbulho
agosto
poltrão aposto
setembro
que não lembro
outubro
com o sonho cubro
novembro
sem demora o escombro
e dezembro
com janeiro já pelo ombro.
O molde puído
esconde a verdade da pele.
Não se atira fogo ao lago
nem a trovoada se encanta
por sereias fantasmas;
no fogaréu alinhado
as vozes entontecem-se no mito banal.
Não são as janelas que deixaram de abrir:
é o desmodo de viver
o planalto onde se semeia a aridez
a grotesca exibição dos excendentários
a fábrica de transações a descoberto
onde os alpinistas sem escrúpulos
sobem na medida da descida.
A verdade da pele
arranjada sob o disfarce das cicatrizes
estilhaça o molde puído.
[Crónicas do vírus, DLXXII]
A excitação
antes de tempo
– ou a cobiça do futuro
se cumprir
antes de o ser.
Cabeça em água.
Cabeça
na água.
Cabeça.
sem água.
Água.
Sem cabeça.
Ou:
água
na cabeça.
Água
(que) encabeça.
Me versus myself
a mouthless sword
dying to dare
at the doorsteps of the void.
Me against myself
on the verge of defeat
a woe made of a stiff leash
thriving
(who dares to know?)
the breath of success.
Me or myself
or else
the flipside of mourning
against shaded tears
jawing the tree into de knees
of the dawn.
[Crónicas do vírus, DLXX]
Recolhemos
os fragmentos perdidos
nas ruínas da peste
sem vontade de sermos
o mesmo filão.
A aguarela sentou-se no lago
e deixou que o espelho de água
falasse por si.
E antes que a noite tivesse pressa
não deixou que a plateia
se exilasse no olvido.
Deitou a mão ao entardecer
e emoldurou a aguarela
em lugar imperial.
Não saiu do lugar,
não fosse o lugar sair do sítio.
Na manhã que se seguiu
a aguarela era a continuação
do lago
e ele,
o pintor encomendado,
esquecimento puro de si mesmo.
Foi ao fundo da alameda
que branqueou a confidência:
“Eu não tenho chefe,
tenho inteligência.”
Logo depois
hasteou a bandeira da vaidade
(confundido pelo sol
que feria o olhar).
[Crónicas do vírus, DLXVIII]
Já não somos
de plasticina.
(E alguma vez
deixámos de ser
de plasticina?)
O sonho
no seu próprio anzol
sobreposto
à matéria venal:
o sangue armadilhado,
à espera de tempo.