3.6.21

Tecelagem

Perseguia a manhã sem nome

e dei às mãos sedentas

a tua silhueta. 

 

A enseada escondia os segredos murmurados. 

 

À altura do entardecer

pedimos água à pele suturada 

com o suor do dia. 

 

Dissemos:

 

este 

é o tempo 

de que somos procuradores

um remoinho sem vento por dentro

os dentes à mostra

decifrando todas as sílabas

no Norte 

sem fim.

#2029

[Crónicas do vírus, DCI]

 

Um jogo de espelhos

para que nos seja devolvida

a imagem

que nos foi expropriada.

2.6.21

Dissidência

Não fosse

o verbo puído;

 

não estimasse

o mosto sofrido;

 

não imaginasse

o nome corroído;

 

não contemplasse

o tempo condoído;

 

não chamasse

o mar derrogado;

 

não prometesse

o ás não falado;

 

não inventasse

o medo açambarcado;

 

não derrubasse

o muro embuçado;

 

não desdissesse

o sábio empertigado;

 

não rejeitasse

o corpo desarmado;

 

não fugisse

do cais empenhado;

 

não fingisse

um sobressalto adiado. 

#2028

[Crónicas do vírus, DC]

 

Sobrestimamos os juízos

até sermos intérpretes do naufrágio

(outra vez).

1.6.21

Des-qualquer coisa

Não se me sejam insinuadas

desideias, 

que me desalmo. 

 

Em caso de desaprovação

desigualo os empatas

só para seguir com a desambição

de desandar à retaguarda. 

 

Não desarrumo as desavenças

não por apetite de desnorte

mas por tributo à derrota da desunião. 

 

Nem que venham a medrar

desideias 

desalinhadas no desatino.

#2027

[Crónicas do vírus, DXCIX]

 

As janelas respiram

o ar dantes vedado.

31.5.21

Pacífico

Uma bala perdida

é a prova de vida dos inocentes. 

Numa câmara de sombras

onde vagueiam vultos serenos

o coldre vazio é o aval

das noites perdidas na angústia do medo. 

Mesmo a tempo

de as mãos sinceras

serem a represa onde se estilhaçam 

as balas perdidas. 

#2026

[Crónicas do vírus, DXCVIII]

 

Da descida aos infernos

à reabilitação da casta,

o intervalo da desmemória. 

30.5.21

Estatutário

Navegas nesta cordilheira

se não te falharem 

os ouvidos-intempérie.

 

Se endossasses o referendo

não se te saberia o sal sem sono;

sabes

ao menos

que não te empenhas às marés sem rosto

nem naufragas nas sílabas proteladas. 

 

Teu é o domínio

que se empareda no astrolábio banal,

a promessa colossal 

aos dias sem nome.

#2025

[Crónicas do vírus, DXCVII]

 

Do nacionalismo às avessas:

o dia 

em que os forasteiros

puderam fazer 

o que nos é proibido.

29.5.21

Prodigiosa loucura

Os loucos

não são achados

na loucura maior

que os transcende.

Desde a inauguração dos tempos

maior é a demência

dos que não estão inventariados

nos registos civis

e em consultórios de peritos.

No tântrico teatro

que é a loucura imorredoira, 

o nome próprio do planeta,

que se descontasse a loucura banal

da contabilidade inexistente

da loucura geral.

Essa

é a prodigiosa loucura

sem sentença. 

#2024

[Crónicas do vírus, DXCVI]

 

O beijo da praia:

outra espera

à espera de ser saldada.

28.5.21

Tabela das marés

Não chegava.

Não chegava a maré

depois da tarde.

Os marinheiros falavam.

Diziam palavras sem geografia.

Eles só sabem do mar

e o mar não se traduz

pelos ventos da diferença.

A geografia

era um vocabulário frugal.

Deste miradouro

não se pressente a decadência.

Já trago o arnês

para não ser a presa seguinte

no mar tempestuoso da decadência.

A próxima maré

é minha.

#2023

[Crónicas do vírus, DXCV]

 

Malefícios da peste em extinção:

os velhos bárbaros

voltam a semear incivilização.


27.5.21

A manhã

Escolhi a manhã.

Neófita

traduz a luz iniciática

ainda sem o jugo 

da poluição.

O sabre das multidões

não frequenta a manhã.

 

(Podia também alvitrar

a bruma espapaçada

o orvalho que desapega do musgo

o rio lânguido que estacionou

à espera da sua foz

os poucos rostos, estremunhados,

o punhal que se abate

sobre o desamparo da noite

que é sempre demorada,

até no solstício do Verão).

 

Escolhi a manhã.

Antecipo as almas amestradas

irrompendo nas artérias ocupadas

arrastando-se até a manhã perder gabarito.

 

Não deito a perder

uma única manhã.

#2022

[Crónicas do vírus, DXCIV]

 

Enfim,

um bouquet de flores

na embocadura do labirinto.

26.5.21

Escrivão

O rapaz 

montado furiosamente na guitarra

desenha os contornos da música

e descarrega o seu corpo franzino

na corrente que dava alimento ao som

numa catarse vertida do avesso. 

 

Fiquei a pensar

se o rapaz fosse das letras

que poeta seria.

#2021

[Crónicas do vírus, DXCIII]

 

Ainda falta

a vacina que nos salva

de nós mesmos.

25.5.21

Rodízio de metáforas

Era a torre de Babel,

dizia-se em surdina;

mas talvez fosse

(após cuidadosa inspeção)

a caixa de Pandora.

 

Ninguém desceu a escadaria

para abrir a porta.

 

Seria 

– possivelmente – 

medo

(ou apenas

a aritmética da exceção).

A noite

A noite é a besta negra que descoloniza a lucidez. 

À noite, as luzes bruxuleantes são sentinelas. 

As luzes ímanes, tatuadas na pele, desenham a coreografia dos opostos. 

As luzes lisérgicas desocupam o sono de um mapa amarrotado. 

As luzes são desfiladeiros habitados por fantasmas deserdados.

Por fantasmas que traduzem a liberdade para um idioma com deslimites.

A noite invernal atravessa as ruas e o corpo quente que a desmente. 

É a noite que se deita nas mãos artesãs, a espoliar o medo. 

A noite contumaz, verbo ou equação, morada do sortilégio.

A noite que espera pela manhã.

A noite que desafia a manhã, desembainhando a espada que roça o abismo.

A noite, que enquanto não é manhã mergulha na vertigem dos sentidos.

A noite que tutela a lua caiada de estrofes.

A noite, penhor da solidão.

Miradouro que se atreve a escrever as palavras proibidas.

À boca da noite, um palimpsesto dos rostos imarcescíveis. 

Na noite que é maternidade no estirador de uns olhos diligentes.

Da noite que não devora os corpos. 

#2020

[Crónicas do vírus, DXCII]

 

Acariciamos

o bojo do dia

na inteireza

que nunca fomos.

24.5.21

Antes que seja cedo

No fojo 

por onde fuja

o lobo em metáfora: 

o mel diuturno

chama o algoz

à espera das tornas

da lua. 

Entontecidos

os rapazes 

tiram-se do mar. 

Os velhos

protestam um silêncio. 

O mar não é menor

à espera da maré

entre remoinhos bastardos

que desmaiam na areia. 

Dizem:

o mar 

esqueceu-se do sal;

ou então

o sal exilou-se

nos rapazes estouvados. 

Dizem:

os rapazes

foram o fojo

para o sal entediado. 

E os rapazes 

transfigurados,

cais

das mais temíveis 

tempestades. 

#2019

[Crónicas do vírus, DXCI]

 

Reconciliação,

depois de uma culpa

sem nomes próprios.

23.5.21

#2018

[Crónicas do vírus, DXC]

 

Um toque de Midas,

apenas um toque de Midas,

para a bússola fazer sentido

outra vez.

Dicionário de onomatopeias

Antes se inventasse

um dicionário de onomatopeias;

seria a melhor recomendação

para reunir os garatujos avulsos

da fala pré-histórica.

Um manual de intenções

contra os mundanos mal-entendidos

que entontecem as almas sitiadas. 

22.5.21

#2017

[Crónicas do vírus, DLXXXIX]

 

A extravagância não é o limite.

É o selo da desmemória.

21.5.21

#2016

[Crónicas do vírus, DLXXXVIII]

 

Não se colhe o lamento

na sementeira do passado.

20.5.21

#2015

[Crónicas do vírus, DLXXXVII]

 

Fomos renúncia,

contra as probabilidades.

19.5.21

Relógio solar

O objeto cortante

antecipa a véspera da fala.

Se ao púlpito chegassem as preces

seria mínimo o dano

e os provectos eremitas não cuidariam

da hermética gramática sem conhecedores.

Os tribunos esqueceram-se da forma

e nem aos tribunais recorrem,

suspeitos de serem réus em primeira linha.

Não se sabe 

quem tem o objeto cortante na mão.

“Agora já não é como dantes”

 

(a ladainha que percute a pele gasta

dos arcanos que vivem aprisionados

num tempo esquecido):

 

os detetives estão todos reformados.

#2014

[Crónicas do vírus, DLXXXVI]

 

Já não demora

para sermos

protagonistas do futuro.