[Crónicas do vírus, DCXXVI]
Outra vez:
a locução
que não podemos
desaprender.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCXXV]
O diadema da marcha-atrás
como avesso
da precipitada marcha à frente.
Não conto
nos contos mais fartos
nem conto contar
os contos heróis.
Pois os heróis
não os tenho em boa conta
e das contas que faço
no resgate do tempo dizível
conto os desembaraços
que dispensam heróis.
Em conta devida
conto as contas sem rosário
antes que rosas outras
sejam o conto do meu fadário.
Estas são
as contas de cabeça
enquanto ela se lembra
dos contos de que fui conto.
A páginas tantas.
Tantas.
A páginas.
Às páginas.
São tantas.
Mas não tontas.
Há páginas,
tantas.
A página.
Uma página avulsa
e a tanta tinta nela apensa,
a morada das palavras.
Tantas páginas
e etc. e tal:
Quantas páginas
foram aos olhos
seria o inventário
que desembaraça os noviços.
[Crónicas do vírus, DCXXIII]
Sinais dos tempos
(que se mudam):
o princípio geral
do assalto às narinas.
Partiam-se as portas
nos despedaços de outrora.
Eram as mãos
então derruídas
a coabitar a fortaleza da alma.
Queria a desmedida das montanhas
o ruído assombroso das falésias
o ciciar dos verbos quiméricos;
queria
povoar com a fala
as páginas enferrujadas pelos estilhaços
sem recusar o vento de estibordo
sem calejar a pele então tatuada
pela impureza.
Dissessem o que dissessem
entre as luas amarrotadas
e as mangas de uma camisa por engomar.
Um capataz persegue o remoinho.
Mordisca a boca
pode ser que se encha de forças
que do caudal não se esperam tréguas.
Um mecenas pergunta pelo obelisco.
Arrisca uma tenência abastada
numa instalação prometida
na imaginação decadente do artista.
O faroleiro perde-se na insónia.
Os navios esperam que a insónia se demore
que a tempestade nascente promete
um mar furioso.
O estroina não sabe o que fazer com o tempo.
Na orla de cada minuto
boceja o espaço desarrumado pelo seu nome.
O mendigo desaprova o bulício matinal.
Deitou-se nas altas horas da madrugada
e resmunga contra a pressa dia ocupados.
O guarda-freio traz muitas histórias a tiracolo.
Espera-o mesa solitária
e os fósforos que ajudam a passar o tempo.
O campeão detém-se à frente do espelho.
Ainda não percebeu
a derrota da antevéspera.
O erudito
inebriado com o produto da sua erudição
trepa as paredes com a exultação de si mesmo:
pergunta ao espelho
(que responde pelo seu nome)
se há alguém mais erudito do que ele.
(O silêncio transtorna-o
e ainda não é desta que sobe
à cátedra do ministério.)
O velho sente a falta do baleeiro.
Arrasta a melancolia nas tascas do lugarejo
perante a indiferença dos ausentes.
O homem sisudo
imerso na observação dos outros
convoca um prolífico rol de juízos morais;
ignora
que não lhe foi encomendada a empreitada
e que devia
antes
mergulhar no poço fétido
onde não pode fingir o seu próprio espelho.
O polícia
em segredo
ajuramenta a anarquia
sem desminar o magma que o domina.
O patriarca comanda as tropas.
Precede-o a autoridade da casta
testemunhada pelos confrades.
(Um grupo precisa de um guru
– o patriarca esconde-se da palavra “líder”).
O porta-voz de sua excelência
declara
com as vírgulas todas no lugar
e a gramática obedecida
que os súbditos são súbditos de vez.
Os súbditos
amestradamente
agradecem.
(E ninguém percebe
como tolos foram arregimentados
na menoridade.)
Os capatazes deixaram de ser capazes.
Diagnosticaram
uma degenerescência incorrigível
o lugar à mesa dos descamisados
que esperam ter nada
quando o tudo está à mão de semear.
Cicatrizes em hibernação
na combustão do esquecimento.
Retiram-se as costuras aos verbos
e ficam só os nomes
a arcaica compostura dos distintos.
Se os minotauros não fossem magros
tomariam aos fantasmas o lugar.
Mas as janelas baças
escondem o puído do dia,
talvez por ser tardio.
A carne exposta
entrega-se aos espelhos suados.
Em convulsões,
desenha o poema furtivo
na praça onde se põem
em todos os entardeceres
as glicínias apalavradas.
No esteio largo dos homens sem medo
a pele torna-se o magma esperado.
O sono
pode virar a sua página.
O mundo tem uma cara
mas andamos nas bocas do mundo.
Eu suspeitava
que o mundo é deficiente.
Agora tive a confirmação:
como podem múltiplas bocas
conviver no mesmo rosto?
Para além da esquizofrenia
que senta o mundo no divã do psiquiatra
o mundo é uma ameaça perene
um lugar definitivamente perigoso para se ser:
temos de aprender a ser esquivos
para não sermos presas
das tantas bocas que o mundo enverga.
O exílio por dentro
desembaraça uma bandeira.
A voz
não se adianta às palavras
numa mudez mortiça,
sem luz.
Os idiomas
dançam
num jardim sem rostos,
procuram uma morada
que não encontram.
Os lugares são todos órfãos.
Os nomes
deviam pertencer
apenas
às pessoas.
Hoje em dia
ontem em noite
amanhã em manhã
depois de amanhã é tarde
(para a lógica da semiótica).
[Crónicas do vírus, DCXIII]
Entre o salto em frente
e a marcha-atrás que pende
a encruzilhada que não se desfaz.
Encho a minha sombra
com a fala sem adiamento.
Navego nas palavras
pendurado nas sílabas
povoadas pela boca.
A minha sombra
tem a caução das mãos
e adeja sobre o avesso de mim.
Não seria nada
na ausência de uma sombra.
A tortura
que se disfarça
no avesso das pálpebras
enquanto os olhares adormecem
entre os esbirros que se calam.
Se houvesse um perfeccionista sistema
e as ruas nunca precisassem de higiene
ninguém seria refém da mudez
ninguém seria penhor
do seu próprio medo.
Em vez disso
a anestesia geral:
os rostos obedientes
as palavras sempre domadas
e o princípio geral do respeito
os verbos enevoados do amesquinhar
sem direito a protesto
no dócil orquestrar de uma gadaria
sob a direção de maestros meãos.
Caderno de encargos:
tirar o avesso do por-do-sol
desenhar as páginas
com palavras irredutíveis
comprar o hoje no leilão do passado
abrir as janelas enquanto o sol se valida
nascer no úbere da vida
atirar os dados contra o cais folgado
avivar o estuário com a boca faminta
despenhar num abismo sem mapa
estiolar o medo contumaz
servir de chão aos poetas
(ou ser poeta entre as palavras chãs)
ser o sal que o mar demanda
amanhecer a qualquer hora do dia
agradecer aos desdeuses
que se povoam no vazio
imaginar os socalcos tatuados na cal
tratar o amanhã por tu;
e prometo:
virar a vaca do avesso.