[Crónicas do vírus, DCLXXI]
A renúncia,
em vias de extinção.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCLXX]
Desafinados ainda,
os violinos
resgatados do bolor
do crepúsculo demorado.
Não era a página que rasurava;
era o vértice das palavras
que em si eram vertidas
o lamento fraco na dobra da folha
em juras
que não remediavam o despassado.
Conseguia beber o vinho à prova
de um trago só;
não aproveitava o verbo pueril
que ele desconhece esse verniz.
Em vez de uma tardia censura
traduzi os remorsos
através das vírgulas que depunham
a meu favor:
eram repetidos os clamores
mas não tinha a feição dos seus penhores
não conseguia deles fazer inventário.
À margem,
como em laterais rodapés,
perseguia a franqueza que se escondia
do rosto da página.
Será que diria:
oxalá estivessem a consulta pública
os rodapés laterais
que se escondem
sob minha custódia?
Serpenteia o rio
cavando as encostas.
Ninguém diga
que amestrada é a paisagem;
é feita de convulsões sucessivas
como se a alvorada tivesse sido corrompida
por deuses anónimos,
deuses impreparados na arte cénica do belo
deuses párias
que se esgotaram na emblemática
sopa servida aos de espírito desavençado.
Prostrado por tanta paisagem fidalga
sinto o corpo transido
e ele próprio
desamestrado.
[Crónicas do vírus, DCLXV]
É comovente
o esforço de muitos
(donos de espaços dançantes)
para salvar o Verão.
Não consta
que o Verão tenha pedido
para ser salvo.
Procuro a minha ausência
nesta casa fortuita
onde o arco-íris se depõe.
Procuro
a ausência que de mim medra
nos contrafortes da cordilheira setentrional
enquanto instruo os olhos
na omissão.
Procuro
o que da minha ausência
sobra de mim.
Pode ser que seja de mim
a foz que se promete
ao mar de fundo.
É a pega
que agarra o mundo
pelos seus deslimites.
O santuário onde se respira
o ar que não tem janelas.
O encantamento
com o sangue ávido
que transborda as fronteiras do corpo.
O cais onde se agarram
as mãos que já não são trémulas.
Os lábios devolvem as sílabas
à medida do caudal que se congemina,
estrutural.
Que as árvores estão pendidas
sobre o pensamento diuturno
é a legenda que se arrasta em rodapé;
não serão os serões acostumados
à diligente insónia
que desmentem os presságios do passado;
outro tanto dirão das rosáceas
que fermentam os corpos ajuramentados,
antes que sejam apenas uma lutuosa recordação.
As mãos,
que se dizem ávidas,
recortam os atlas
por onde se materializa a voz.
São o aval da invisível consagração
os nomes por haver no tabuleiro das incógnitas
o húmus onde se inventa a fertilidade
a noite sem fronteiras.
[Crónicas do vírus, DCLXIII]
Quando nos devolverem o que éramos
teremos na mesma
duas pernas e dois braços
dois olhos e dois ouvidos
uma boca e uma pele?
O corso sedentário
transita pela cordilheira sem métrica.
Protestam contra as distâncias
e o caminho sinuoso.
Umas vozes avulsas
arrepiam o que parece umas preces.
Dir-se-ia
preces para apressar
o termo da peregrinação.
(Ou então
para se convencerem
que é má moeda
o sedentarismo das ideias.)
[Crónicas do vírus, DCLXII]
Se,
enfim,
se pressagia a liberdade,
pode-se,
então,
reconhecer o sequestro.
O vulto hipoteca-se na maré baixa.
Vozes em surdina condenam-no.
As hipóteses redundantes são marca de água.
As outrora sequelas hoje são reminiscências.
O poço ganhou um fundo.
Abrilhantou-se com as sombras furtivas.
Através delas as vozes falam versos fecundos.
O ocaso já não é uma angústia.
Levita no seu avesso as propriedades valiosas.
Fala, só por si.
Uma impressão digital ao acaso.
Sem vultos por perto.
O gelo senta-se na memória
converte as mãos em sílabas cortantes
e os corpos ululantes envergam
uma fala singular.
Levo o fogo perene
às costas da montanha;
não sei se é lava o hálito dos velhos
se as viúvas choram a solidão como conforto
se os cães vadios não têm fome
ou toda a roupa é inútil para abrigar o medo.
É o piano que fala agora.
Tudo o que diz é ímpar na pureza
cais que dançam em uníssono com as ondas
e um magistério de desinfluência
que assalta os viciados no poder.
Podia ser a água tépida
mesmo no meio da paisagem de gelo
a arrumar as sílabas num santuário sem morada
ou apenas eu
imerso na nudez de mim mesmo
já não contrafação de um algoz sem presa
preparado para a morada sem código postal.
[Crónicas do vírus, DCLIX]
Um salto no tempo:
no anteparo da mudança
ou na irradiação do sempre?
Escrevo de trás para a frente
a desalma sem modo
que se penhora no desmedo.
O destempo não se mede
no avesso da fala
nem a mudez se compõe
numa gramática banal.
Arranjo as flores arrancadas ao crepúsculo
e noto
que o crepúsculo ficou amputado
e só lhe fica bem.
Escrevo
de trás para a frente
e não é por medo:
oxalá fossem os lutos
a muralha modesta dos farsantes
e das suas lágrimas não tresmalhadas
sobrasse
o frágil fermento dos fortes.
Os tolos
enganam-se
com colos
antes que sejam
bolos
na paráfrase de seus miolos.
Os boémios
não sabem o que são
proémios
e a meio do caminho juntam-se
aos prémios
antes que os forcem a ser abstémios.
Os videntes
tropeçam em baças
lentes
antes que da próxima profecia
os dentes
se partam por serem mitómanas mentes.
Os famosos
tão feericamente efémeros
levados por invejosos
a meio da peleja com a catadura
dos delituosos
em pária condição dos efemeramente fogosos.
Os ufanos
rejeitam
os maus panos
que de fazendas se fazem entendidos
nos canais insanos
onde regozijam com os deletérios arcanos.
Intimo o deus da vontade a falar.
Não espero arranjos a meu favor.
A espera não será civilizada.
Os brutos verbos amontoam-se
numa rua com o chão encardido,
como se estivesse minado.
Intimo o deus da vontade a falhar.
Sempre foi minha ambição
estar ao nível de deus.