7.8.21

#2099

[Crónicas do vírus, DCLXXI]

 

A renúncia,

em vias de extinção.

6.8.21

#2098

[Crónicas do vírus, DCLXX]

 

Desafinados ainda,

os violinos 

resgatados do bolor

do crepúsculo demorado.

5.8.21

Copo meio cheio

Não era a página que rasurava;

era o vértice das palavras

que em si eram vertidas

o lamento fraco na dobra da folha

em juras 

que não remediavam o despassado.

 

Conseguia beber o vinho à prova

de um trago só;

não aproveitava o verbo pueril

que ele desconhece esse verniz.

Em vez de uma tardia censura

traduzi os remorsos 

através das vírgulas que depunham

a meu favor:

eram repetidos os clamores

mas não tinha a feição dos seus penhores

não conseguia deles fazer inventário.

 

À margem,

como em laterais rodapés,

perseguia a franqueza que se escondia

do rosto da página.

Será que diria:

oxalá estivessem a consulta pública

os rodapés laterais 

que se escondem

sob minha custódia?

#2097

[Crónicas do vírus, DCLXIX]

 

Está em falta o armistício

para a letargia da peste.

4.8.21

Biombo

Que diremos do mel

se a boca da abelha

é um leito de morte?

 

O beijo do escorpião

não precisa

do escorpião.

#2096

[Crónicas do vírus, DCLXVIII]

 

A peste

prestes a ser arrumada

no quarto dos fundos.

3.8.21

Descavilhado

Serpenteia o rio

cavando as encostas. 

Ninguém diga

que amestrada é a paisagem;

é feita de convulsões sucessivas

como se a alvorada tivesse sido corrompida

por deuses anónimos,

deuses impreparados na arte cénica do belo

deuses párias 

que se esgotaram na emblemática

sopa servida aos de espírito desavençado. 

Prostrado por tanta paisagem fidalga

sinto o corpo transido

e ele próprio

desamestrado.

#2095

[Crónicas do vírus, DCLXVII]

 

(Variante do #2094)

 

Dos biombos

o espólio do futuro.

#2094

[Crónicas do vírus, DCLXVI]

 

Dos biombos

não se consumirá

a saudade.

2.8.21

#2093

[Crónicas do vírus, DCLXV]

 

É comovente

o esforço de muitos

(donos de espaços dançantes)

para salvar o Verão.

Não consta

que o Verão tenha pedido

para ser salvo.

1.8.21

Ferro fundido

Procuro a minha ausência

nesta casa fortuita

onde o arco-íris se depõe. 

Procuro

a ausência que de mim medra

nos contrafortes da cordilheira setentrional

enquanto instruo os olhos 

na omissão. 

Procuro

o que da minha ausência

sobra de mim. 

Pode ser que seja de mim

a foz que se promete

ao mar de fundo.

#2092

[Crónicas do vírus, DCLXIV]

 

Prometido:

um bilhete

para a salvação.


31.7.21

Fonte

É a pega 

que agarra o mundo

pelos seus deslimites. 

O santuário onde se respira

o ar que não tem janelas. 

O encantamento 

com o sangue ávido

que transborda as fronteiras do corpo. 

O cais onde se agarram

as mãos que já não são trémulas. 

Os lábios devolvem as sílabas

à medida do caudal que se congemina,

estrutural. 

Que as árvores estão pendidas

sobre o pensamento diuturno

é a legenda que se arrasta em rodapé;

não serão os serões acostumados

à diligente insónia

que desmentem os presságios do passado;

outro tanto dirão das rosáceas

que fermentam os corpos ajuramentados,

antes que sejam apenas uma lutuosa recordação. 

As mãos,

que se dizem ávidas,

recortam os atlas 

por onde se materializa a voz. 

São o aval da invisível consagração

os nomes por haver no tabuleiro das incógnitas

o húmus onde se inventa a fertilidade

a noite sem fronteiras. 

#2091

[Crónicas do vírus, DCLXIII]

 

Quando nos devolverem o que éramos

teremos na mesma

duas pernas e dois braços

dois olhos e dois ouvidos

uma boca e uma pele?

30.7.21

Força bruta

O corso sedentário

transita pela cordilheira sem métrica. 

Protestam contra as distâncias

e o caminho sinuoso. 

Umas vozes avulsas

arrepiam o que parece umas preces. 

Dir-se-ia

preces para apressar

o termo da peregrinação. 

(Ou então

para se convencerem

que é má moeda 

o sedentarismo das ideias.)

#2090

[Crónicas do vírus, DCLXII]

 

Se, 

enfim, 

se pressagia a liberdade,

pode-se,

então, 

reconhecer o sequestro.

29.7.21

Rasura

Qual é a armadura do rumor?

Dispensando as lições de eruditos

prefira-se o rumorejo que cerca o ouvido

à medida que seja o aval da desejada combustão.

#2089

[Crónicas do vírus, DCLXI]

 

Um braço duro de roer

em vias de ser vergado.

28.7.21

Árbitro

O vulto hipoteca-se na maré baixa.

Vozes em surdina condenam-no.

As hipóteses redundantes são marca de água.

As outrora sequelas hoje são reminiscências.

O poço ganhou um fundo.

Abrilhantou-se com as sombras furtivas.

Através delas as vozes falam versos fecundos.

O ocaso já não é uma angústia.

Levita no seu avesso as propriedades valiosas.

Fala, só por si.

Uma impressão digital ao acaso.

Sem vultos por perto.

#2088

[Crónicas do vírus, DCLX]

 

A peste

em vias

de recolher

as balas.

27.7.21

Código postal

O gelo senta-se na memória

converte as mãos em sílabas cortantes

e os corpos ululantes envergam 

uma fala singular. 

 

Levo o fogo perene

às costas da montanha;

não sei se é lava o hálito dos velhos

se as viúvas choram a solidão como conforto

se os cães vadios não têm fome

ou toda a roupa é inútil para abrigar o medo. 

 

É o piano que fala agora. 

Tudo o que diz é ímpar na pureza

cais que dançam em uníssono com as ondas

e um magistério de desinfluência

que assalta os viciados no poder. 

 

Podia ser a água tépida

mesmo no meio da paisagem de gelo

a arrumar as sílabas num santuário sem morada

ou apenas eu

imerso na nudez de mim mesmo

já não contrafação de um algoz sem presa

preparado para a morada sem código postal.

#2087

[Crónicas do vírus, DCLIX]

 

Um salto no tempo:

no anteparo da mudança

ou na irradiação do sempre?

26.7.21

Escrevo de trás para a frente

Escrevo de trás para a frente

a desalma sem modo

que se penhora no desmedo. 

O destempo não se mede

no avesso da fala

nem a mudez se compõe

numa gramática banal. 

Arranjo as flores arrancadas ao crepúsculo

e noto

que o crepúsculo ficou amputado

e só lhe fica bem. 

Escrevo

de trás para a frente

e não é por medo:

oxalá fossem os lutos

a muralha modesta dos farsantes

e das suas lágrimas não tresmalhadas

sobrasse 

o frágil fermento dos fortes. 

#2086

[Crónicas do vírus, DCLVIII]

 

A peste

interrompeu

o tempo.

(Ele há tanto 2020

adiado para 2021.)

25.7.21

Combustível

Sangro

até a alma

ficar nua.

 

Falo

até a alma

crescer lua.

#2085

[Crónicas do vírus, DCLVII]

 

Faltará apurar

se a peste equivaleu

a uns pêsames antropológicos.

24.7.21

#2084

[Crónicas do vírus, DCLVI]

 

Peões

como dantes

mas ainda mais.

23.7.21

Tradução literal

Os tolos

enganam-se

com colos

antes que sejam 

bolos

na paráfrase de seus miolos.

 

Os boémios

não sabem o que são

proémios

e a meio do caminho juntam-se

aos prémios

antes que os forcem a ser abstémios.

 

Os videntes

tropeçam em baças 

lentes

antes que da próxima profecia

os dentes

se partam por serem mitómanas mentes. 

 

Os famosos

tão feericamente efémeros 

levados por invejosos

a meio da peleja com a catadura

dos delituosos

em pária condição dos efemeramente fogosos.

 

Os ufanos

rejeitam

os maus panos

que de fazendas se fazem entendidos

nos canais insanos

onde regozijam com os deletérios arcanos.

#2083

[Crónicas do vírus, DCLV]

 

A águas fundas

o escafandro já puído.

22.7.21

Metafísica de algibeira

Intimo o deus da vontade a falar.

Não espero arranjos a meu favor.

A espera não será civilizada.

Os brutos verbos amontoam-se

numa rua com o chão encardido,

como se estivesse minado.

Intimo o deus da vontade a falhar.

Sempre foi minha ambição

estar ao nível de deus.