13.10.21

Professor

Desta matemática

houve memória anotada

já não um amontoado de hieróglifos

ou um raciocínio aprisionado

no véu da culpa.

 

Deste a matemática

como não havia notícia

e arrumaste a um canto

os dedicados educadores presos ao cânone.

 

Não foi preciso dizer

“no fundo”,

limitar-nos-íamos a atestar:

foste professor:

aquele que se dedica

a saber que os aprendentes

ficam a saber.

#2170

[Crónicas do vírus, DCCXLII]

 

Legados da peste (58):

uma lição

sobre a perenidade

da contingência.

12.10.21

Estado: a ver-se grego

Encobre-se a anatomia

com heras próprias de uma laguna.

Antes fossem nenúfares

para neles cismarem

em sua metódica curiosidade

cisnes desajuizadas.

Não seria dionisíaco deus grego

(nunca tive jeito para estátua);

limitar-me-ia

no que ao helénico porte diz respeito

a um punhado de sobremesas lácteas,

a convocatória da necessária matéria-prima.

Quanto ao demais

nunca entendi

por que dizem os assarapantados

que se viram gregos.

#2169

[Crónicas do vírus, DCCXLI]

 

Legados da peste (57):

deslumbrados

no engodo do triunfalismo

que soa a vingança sobre nós mesmos.

11.10.21

O bode exploratório

Os intrépidos

desenham a aventura

no avental dos sonhos. 

Emagrecem a bravura

disfarçada como o bodo abdominal

e na verve abastada

dão a beber aos outros

façanhas que nem a crédito suas são. 

Os novelos de voz 

amontoam-se nos dias a eito. 

Deles se diz que são audazes

pelo risível que sobre eles se deita

na exata medida do verbo farto

em compensação 

dos exíguos túbaros em que lobrigam. 

À parte 

o acintoso espanejar que dos outros desemudecem

não são concedidas diatribes ou sublevações

nem nódoas circunstanciais 

que despenteiam modas. 

São satélites de um nada imenso

fulgurantes esbracejares retidos na mudez

um povoado sem estirpe

casas destinadas ao abandono

mal sejam feitorias de lugares vagos,

por demissão dos demais.

#2168

[Crónicas do vírus, DCCXL]

 

Legados da peste (56):

depois dos baixios lamacentos

a cumeada, 

outra vez

a promessa da grandeza.

10.10.21

#2167

[Crónicas do vírus, DCCXXXIX]

 

Legados da peste (55):

voltamos

a ter as cores

na sua gramática inteira. 

9.10.21

#2166

[Crónicas do vírus, DCCXXXVIII]

 

Legados da peste (54):

a subserviência do medo

perdeu prazo de validade.

8.10.21

Descerteza

A colheita dos frutos senescentes

angariada no úbere farto

da melancolia. 

 

Arqueiam a bandeira

por declarada insubmissão

eles que sempre ficaram à frente

das mordaças. 

Não foram as intenções que marearam

entre os parágrafos das vitórias

e a procuração dos antigos. 

 

Em sextas-feiras entardecidas

germinaram os fetos imberbes

sem que as juras pueris fossem

uma tradução. 

E não eram as apostas com o passado

a ebulição dos corpos algemados

que as preces tinham ficado no esquecimento

das luzes acesas. 

 

Em vez de peles tatuadas

sobraram despojos sem nome

e aos nomes sem rosto 

não foi dado

paradeiro. 

#2165

[Crónicas do vírus, DCCXXXVII]

 

Legados da peste (53):

a moldura

não é outra

se não a de outrora.

7.10.21

Haste inteira

Cismo

com o sismo

            que é meu cisma.

Do sismo 

     que a esmo

            me crisma.

Nesta cisma

     rejeito o carisma

            contras os ismos.

Se no sismo

     valido o istmo

            cismo que sou cisma de mim.

#2164

[Crónicas do vírus, DCCXXXVI]

 

Legados da peste (52):

somos sentinelas,

um devir irrenunciável.

6.10.21

O contrabaixo fala mais alto

Vago a pele na tarde sem marca.

Havia musgo

versos e sintonia

entre a amálgama do saber

e o vazio da morte.

Se em meu pecúlio me escondo

não é um estertor a carpir um futuro;

é a serena exposição dos abetos 

arbustos como outros

a notável indiferença que somos sem mágoa.

A tola esperança na fadiga dos estetas

agrava os fusíveis sem escala

e nas trevas ferve o destemor

por conta das mãos contundentes

que não se desalojam das raízes fundas

a razia a prazo no pranto sem juras.

É neste magma que ordeno a lava.

Façam-se por conta das anónimas preces

os volteios que 

registados 

se fundam nos vitrais.

Entre a maré da tarde 

e a incontinência da noite

sou eu

marinheiro sem praça

a estiolar no clã que se estremunha

eu,

perdidos os versos na armadilha da fala,

sentido com tanta prodigalidade.

Da marca

não registada

levo a pele 

aberta por tatuagens sem autor.

#2163

[Crónicas do vírus, DCCXXXV]

 

Legados da peste (51):

a vida é um jogo

sem se fazer

um jogo com a vida.

#2162

[Crónicas do vírus, DCCXXXIV]

 

Legados da peste (50):

a liturgia dos oportunistas,

uma procissão inacabada.

5.10.21

Semáforo

Antes que seja cedo

e as miragens se abracem ao corpo

a fala angustia-se no teatro da rebeldia.

 

Ao entardecer

contam-se os abismos esquecidos

sem povoar as paredes com a prematura candeia.

 

Não se deixam louvores

aos mártires de outrora

pois deles é o heroísmo em volteios pueris.

#2161

[Crónicas do vírus, DCCXXXIII]

 

Legados da peste (49):

o breviário da vida

a opulência

nunca esquecida.

4.10.21

A espada contra

Arrumam-se as sílabas

no quarto onde o hotel 

se faz toponímia. 

Não tropecem nas palavras

como se uma fala ávida as apressasse

ditando a bulimia da gramática. 

 

As palavras não têm pressa. 

 

Só se a intenção

seja semear a eito

entorses na fala

e terminarmos 

na impossibilidade de entendimento. 

 

(E isso seja de propósito.)

#2160

[Crónicas do vírus, DCCXXXII]

 

Legados da peste (48):

oxalá

quem legifera

tivesse aprendido

a lição da elasticidade.

3.10.21

#2159

[Crónicas do vírus, DCCXXXI]

 

Legados da peste (47):

as emboscadas

não se dispõem 

no tabuleiro dos pressentimentos.

2.10.21

Aviso

Esta é a errata:

o fogo recenseado

agita a madrugada.

As mãos estendem o luar

cozinhando as estrelas outonais.

A noite não está sozinha

apesar das aparências.

Os vultos despidos

acenam pela promessa da manhã.

Não sabem

da sua transfiguração

em esqueletos válidos.

#2158

[Crónicas do vírus, DCCXXX]

 

Legados da peste (46):

o decoroso espetáculo

da vingança do exílio.

1.10.21

A roda da vida

A roda-viva

joga-se 

contra o olhar amedrontado. 

A roda

está viva

e falta saber

se o medo é a medida válida

do olhar. 

A vida à roda

não pede alvíssaras

e os vultos assisados

ficam a léguas do medo castrador. 

A vida roda

e o olhar sem freios

tem a fala mais alta

embainhado nas fronteiras de onde falam

os deslimites.

#2157

[Crónicas do vírus, DCCXXIX]

 

Legados da peste (45):

temos a certeza

que já não andamos

em areias movediças?

30.9.21

Os versos pagãos

Os versos pagãos 

não têm escolta.

As suas mãos almiscaradas

não se arruínam na doca da noite.

Acotovelam-se os disfarçados

como se a sua dança fosse ardil.

Os versos pagãos

escondem-se no crepúsculo.

Ditam as sílabas

para o túmulo onde descansam

as vozes mutiladas.

Não precisam de regresso:

a eternidade da véspera

cuidou de os emoldurar 

nas árvores marmoreadas.

Os versos pagãos

são a voz flagrante

conjeturada no ermo onde falam 

os silêncios.

#2156

[Crónicas do vírus, DCCXXVIII]

 

Legados da peste (44):

as estátuas que faltam,

ou a mnemónica 

dos tributos em débito.

29.9.21

Destilaria

Não espero grande colheita do saque. 

A matéria vã recusa a solidão. 

Entre a teimosia do nanismo 

e o precipício dos néones

os nenúfares inertes não se escondem 

nas sombras. 

Os meticulosos dizeres prostituem-se 

por quem os treslê. 

Não é a noção de desperdício 

que avança a caução. 

Já tive a minha dose de embaixadores. 

Não vou pelas poses estadistas

nem sufrago os mentores de apocalipses. 

Sou de uma alcateia sem nome

a marca registada sem registo

e ao tira-teimas entrego 

as teimas impertinentes

só à espera de pronunciamento de culpa. 

Disso não espero pelo juízo alheio. 

#2155

[Crónicas do vírus, DCCXXVII]

 

Legados da peste (43):

dedicatória aos ausentes

na anamnese dos tempos.

28.9.21

Úbere

Fiz desta ametista

um dócil obelisco

não por falta de rima

mas por ausentes armas. 

Desavencei-me da matança

não por armas ausentes

mas porque acabara de ser coroado

com a ametista,

o meu o obelisco.

Se perguntarem

direi

em intervalo das empreitadas

que não fugi dos medos;

apenas fui eu

estuário por dentro de um delta

dádiva de um esbracejar descontínuo

na alma emparedada pelos lamentos furtivos

escândalo por vezes, 

talvez,

um arroubo fruindo do caudal da natureza

sempre, sempre,

na recusa de um nada. 

#2154

[Crónicas do vírus, DCCXXVI]

 

Legados da peste (42):

seremos o futuro 

arroteado 

pela semente de outrora?