23.10.21

#2180

[Crónicas do vírus, DCCLII]

 

Legados da peste (68):

a imorredoira

liberdade condicional.

22.10.21

Boca quimera

A boca que dança no fojo

não é aquela que estropeia palavras.

Os lábios são o aval do desejo

e diz-se

à boca pequena

que dela sobra uma combustão demorada.

Ao deus-dará

a boca a que chamaram quimera

arremata a doação singular

e as sílabas sopesadas são a sua iguaria.


#2179

[Crónicas do vírus, DCCLI]

 

Legados da peste (67):

a alvorada de novos oráculos

em demanda 

da peste que se reanima.  

21.10.21

Hipótese

Se em vez de juras

houvesse madrigais.

 

Se em vez de colheitas

houvesse um sinal dos céus.

 

Sem em vez de preces

houvesse palavras dedilhadas.

 

Se em vez de consolos

houvesse uma imagem avivada.

 

Se em vez de prantos

houvesse poemas.

 

Se em vez de amanhãs

houvesse uma claraboia.

 

Se em vez de achados

houvesse em ermo por habitar.

 

Se em vez de altivez

acabássemos na morada da modéstia.

 

Se em vez da avareza

morássemos no mapa do desprendimento.

 

E se em vez da ambição

desprendidos fôssemos pela mão do simples existir.

#2178

[Crónicas do vírus, DCCL]

 

Legados da peste (66):

aceso o rastilho

mil vulcões outrora reprimidos

coligam-se numa ode à violência.

20.10.21

Paradoxo de lei (ou a lei do paradoxo)

Tirando a nostalgia

e os degraus corrompidos

que tiravam a seriedade à escada

qualquer medida se sobrepunha

ao começo de um começo

só porque havia o medo da finitude. 

Em vez da cura

olhavam com suspeição para a doença.

Só por serem ateus

não entravam nas contas dos condecorados

nem os campos fartos se compunham

para reunir o seu pirronismo.

Deus

o tal que não existe

é muito democrático

na distribuição das maleitas.

 

(E disse-o sem dar pela contradição de termos.)

#2177

[Crónicas do vírus, DCCXLIX]

 

Legados da peste (65):

encurralados num vendaval

no vento que hasteia os espantalhos.

19.10.21

Essencial

Não é o tempo 

que existe; 

nós 

é que dele 

fazemos uso. 

Somos a sua fábrica. 

E sabemos: 

mesmo as folhas caducas 

que galanteiam o Outono 

cultivam 

o esvaziar do tempo.

#2176

[Crónicas do vírus, DCCXLVIII]

 

Legados da peste (64):

o exílio no futuro

enquanto 

armadura contra o passado.

18.10.21

Intendência

O colibri orquestra o oceano.

Ele não sabe que seu parto

deu-o o mar imensurável.

Não sabe

que de tão imenso

o mar se esconde com medo

de o tomarem como exíguo.

As vozes protestam:

vivemos todos num enclave

sitiados por paradoxos que nos consomem

sem sabemos a autoria das noites medonhas

das comendas que se advertem 

contra o chão puído que nos não quer.

O colibri vigia o oceano.

Ele não sabe do seu pranto

do mar hercúleo

desfeito nos estilhaços da sua fragilidade.

Não sabe que armas precisa de terçar

para libertar os farsantes do seu pecúlio

e para da madrugada sobrante erguer estátuas

poemas válidos que substituam a gramática

devolvendo aos matriciais arquitetos

as regras deixadas a apodrecer.

O colibri pergunta ao oceano

o que o traz iracundo.

O oceano deixa o silêncio a levitar

uma coreografia que se subleva 

contra os feitores de tanta coerência.

E o oceano

vulcanicamente atirado contra os cais 

que dele protegem alguém

não desiste do sufrágio das almas:

quer que elas venham às janelas

espreitar o oceano temerário, 

que mais parece um foragido a sair de si mesmo

na colonização da terra que não é seu domínio.

O colibri não desiste do oceano.

Amanhece ao seu lado,

como se um mago afagasse o seu rosto

numa tentativa de temperança

e das suas veias 

retirasse todo o veneno que o consome

que consome as pessoas vestidas na sua humildade.

Mas o oceano contraria os vates que o desenharam

bucólico;

sitiado na sua agitação insolente

imita o alpinista e cresce por cima das dunas

ocupa o chão empedrado da alameda vizinha

deixando para memória futura

um restolho que não finge o desacato.

O colibri não se inquieta.

As mealhas da História conhecem os ciclos

e da destruição episódica 

que reverte a favor da povoação das almas.

#2175

[Crónicas do vírus, DCCXLVII]

 

Legados da peste (63):

um exército de mercenários

a soldo

de conspirações

e de dogmas.

17.10.21

Sentido único

Ostenta-se

a cilada

no remoto gesto 

da palavra.

 

No alpendre

as ruínas ascendem

no olhar túrgido

dos idosos.

 

Não é a decadência

o antídoto

se em páginas gastas

se apaga a dança.

 

O resto

tem a tutela do luar

e em nós as mãos caldeadas

adiam a tirania do tempo.

#2174

[Crónicas do vírus, DCCXLVI]

 

Legados da peste (62):

somos

uma fotografia

encomendada ao devir.

16.10.21

Garganta, muita

Era vê-lo

todo ufano

em comentário indiscretamente marialva

admitir:

 

“não percebo nada da poda

mas percebo tudo de foda”.

#2173

[Crónicas do vírus, DCCXLV]

 

Legados da peste (61):

guardamos o esquecimento

como o avesso propositado

dos contratempos.

15.10.21

Disfarce

Interrogação (não retórica):

cai o Carmo e a Trindade

se for dito

que a cosmética

se assemelha àqueles bolos

com quimérica ornamentação

à base de chantilly disfarçado:

comem os olhos

para grande lamentação da boca.

#2172

[Crónicas do vírus, DCCXLIV]

 

Legados da peste (60):

oração da obviedade:

mudou o que tinha de mudar

manteve-se o demais.

14.10.21

Povoação

Na sentinela de um tempo habilitado

as vozes esquecidas arrumam os despojos

e os corpos nus perfilam-se no luar aberto.

As paragens anunciam os comboios completos.

Não interessa, já íamos a pé

e a impureza genesíaca não se abate

com vozes soturnas e verbos sem paradeiro.

Fechamos os olhos

e vemos a aurora boreal 

desenhada no avesso do olhar.

As cortinas escondem a ossatura da casa

a ossatura dos seus moradores.

É assim a pele despida

de sentinela ao desejo que se consuma

na finitude dos teatros gentis.

#2171

[Crónicas do vírus, DCCXLIII]

 

Legados da peste (59):

a paciência

é uma desvirtude.

Geometria

As nossas mãos artesãs

levantavam o dia inaugural

libertado da tirania da noite. 

Eram as mãos alquimistas

juntando às somas

todo o ouro colhido 

nas arestas da manhã.

13.10.21

Professor

Desta matemática

houve memória anotada

já não um amontoado de hieróglifos

ou um raciocínio aprisionado

no véu da culpa.

 

Deste a matemática

como não havia notícia

e arrumaste a um canto

os dedicados educadores presos ao cânone.

 

Não foi preciso dizer

“no fundo”,

limitar-nos-íamos a atestar:

foste professor:

aquele que se dedica

a saber que os aprendentes

ficam a saber.

#2170

[Crónicas do vírus, DCCXLII]

 

Legados da peste (58):

uma lição

sobre a perenidade

da contingência.

12.10.21

Estado: a ver-se grego

Encobre-se a anatomia

com heras próprias de uma laguna.

Antes fossem nenúfares

para neles cismarem

em sua metódica curiosidade

cisnes desajuizadas.

Não seria dionisíaco deus grego

(nunca tive jeito para estátua);

limitar-me-ia

no que ao helénico porte diz respeito

a um punhado de sobremesas lácteas,

a convocatória da necessária matéria-prima.

Quanto ao demais

nunca entendi

por que dizem os assarapantados

que se viram gregos.

#2169

[Crónicas do vírus, DCCXLI]

 

Legados da peste (57):

deslumbrados

no engodo do triunfalismo

que soa a vingança sobre nós mesmos.

11.10.21

O bode exploratório

Os intrépidos

desenham a aventura

no avental dos sonhos. 

Emagrecem a bravura

disfarçada como o bodo abdominal

e na verve abastada

dão a beber aos outros

façanhas que nem a crédito suas são. 

Os novelos de voz 

amontoam-se nos dias a eito. 

Deles se diz que são audazes

pelo risível que sobre eles se deita

na exata medida do verbo farto

em compensação 

dos exíguos túbaros em que lobrigam. 

À parte 

o acintoso espanejar que dos outros desemudecem

não são concedidas diatribes ou sublevações

nem nódoas circunstanciais 

que despenteiam modas. 

São satélites de um nada imenso

fulgurantes esbracejares retidos na mudez

um povoado sem estirpe

casas destinadas ao abandono

mal sejam feitorias de lugares vagos,

por demissão dos demais.

#2168

[Crónicas do vírus, DCCXL]

 

Legados da peste (56):

depois dos baixios lamacentos

a cumeada, 

outra vez

a promessa da grandeza.

10.10.21

#2167

[Crónicas do vírus, DCCXXXIX]

 

Legados da peste (55):

voltamos

a ter as cores

na sua gramática inteira. 

9.10.21

#2166

[Crónicas do vírus, DCCXXXVIII]

 

Legados da peste (54):

a subserviência do medo

perdeu prazo de validade.

8.10.21

Descerteza

A colheita dos frutos senescentes

angariada no úbere farto

da melancolia. 

 

Arqueiam a bandeira

por declarada insubmissão

eles que sempre ficaram à frente

das mordaças. 

Não foram as intenções que marearam

entre os parágrafos das vitórias

e a procuração dos antigos. 

 

Em sextas-feiras entardecidas

germinaram os fetos imberbes

sem que as juras pueris fossem

uma tradução. 

E não eram as apostas com o passado

a ebulição dos corpos algemados

que as preces tinham ficado no esquecimento

das luzes acesas. 

 

Em vez de peles tatuadas

sobraram despojos sem nome

e aos nomes sem rosto 

não foi dado

paradeiro. 

#2165

[Crónicas do vírus, DCCXXXVII]

 

Legados da peste (53):

a moldura

não é outra

se não a de outrora.