Maior é a desonra
de corresponder
o lavar a cara à gato
a pouco asseio
se à demais fauna
(sem excluir a humana espécie)
os gatos
dão lições de asseio.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Maior é a desonra
de corresponder
o lavar a cara à gato
a pouco asseio
se à demais fauna
(sem excluir a humana espécie)
os gatos
dão lições de asseio.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIX]
Legados da peste (155):
um sonho
pela rama
num idioma
que se chama farsa.
É nesta miríade de noites
que amanhecem os sonhos.
Não são promessas
ou
um presságio tangível.
Talvez
apenas
uma morada diferente
como se a um palco imaterial
o corpo aportasse.
À matéria-prima daninha
não se acrescenta o verbo diurno.
Os palcos assim terçados
continuam vazios.
Os sonhos
esperam ainda
pelo seu paradeiro.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVIII]
Legados da peste (154):
do estoicismo gratuito:
cair de pé
e nunca mais fermentar.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVII]
Legados da peste (153):
de que lado da cortina
fomos deixados
a adiar?
Jogo o jogo dos seixos que sobram
da maré.
O tempo, hipnotizado,
não é um embaraço.
Se soubesse desenhar
tirava partido da areia molhada
deixada pela arqueologia de uma maré cheia
para emoldurar as baias do mundo.
Não fosse o cadáver de um caranguejo
que não pedia epitáfio
ou a vozearia das crianças outras
que jogavam às escondidas
com a timidez absoluta.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVI]
Legados da peste (152):
os estilhaços
preenchem a paisagem
como campos minados.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXV]
Legados da peste (151):
nem sempre
a vindima de cachos apodrecidos
é colheita tardia.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIV]
Legados da peste (150):
a tradução da fala,
ou o véu que se abate
sobre a boca.
As horas são cortinas que ascendem
na matricial pose do corpo. Pegam-se
nos mastros que dominam o estuário
e os olhos convocados exoneram a culpa
dos órfãos do medo. Se ao menos
a contagem obedecesse aos caprichos
de cada alma não seríamos subúrbios
da vontade. Todas as verdades
se extinguem na sua formulação.
Sobram as palavras não sopesadas,
as palavras desenfreadas que saltam
por cima das fronteiras, ficando à espera
dos internos sobressaltos arrancados
ao magma combustível. As horas deviam
ser silêncios estendidos na geografia
onde os corpos habitam. Deviam olhar
para dentro da carne, isentando o seu
labirinto dos modos que se hasteiam
na mais pura fala totalitária. Ficam
nas mãos os desenhos furtivos que isolam
as horas dos minutos que as alimentam.
Quem sabe se não é esse o segredo.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]
Legados da peste (149):
as bandeiras
retêm o bolor
dos ventos a desfavor.
Sai-te a fava
mas encomenda-os
à mesma
antes
que a fava se torne fada
e a fama se converta
em fado.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXII]
Legados da peste (148):
empossados como guerreiros
na perene fragilidade
do prélio contra os sicários
que tomam de assalto
o nosso domínio.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXI]
Legados da peste (147):
a peste
banaliza-se
e deixa de ser
peste.
(Manifesto da esperança)
Podia dizê-lo
um trilião de vezes
até as palavras
se esgotarem no seu sentido
e, presas à vacuidade,
serem letradas menores
do idioma exaurido.
Podia dizê-lo
modestamente
na austeridade de palavras
que é sua predileta homenagem
antes que,
açambarcadas,
sejam reféns da vulgaridade.
E não,
não digam que
as palavras são imunes
ao gasto.
[Crónicas do vírus, DCCCXXX]
Legados da peste (146):
a memória
é um paradoxo
que convoca o futuro.
A roda dos ventos
vestira-se com o mais fino traje
aquele que se servia
de nobre fazenda
– o traje cerimonioso
que vê a luz do dia
um punhado de vezes.
Apessoada e vaidosa
a rosa dos ventos esperava pelo vento
que se jurava iracundo.
As previsões dos peritos saíram furadas.
E ali ficou a rosa dos ventos
prostrada
refém da melancolia
ao saber que o vento
primara pela inércia.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]
Legados da peste (145):
os braços atirados
em riste
contra as promessas
de passado.
A metáfora cantada
na consequência do dia
atualiza a pele antecipada.
Das rugas não há inventário:
o espelho está partido
e a linhagem do tempo
é o esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]
Legados da peste (144):
a lava torrencial
enfim cristalizada
ou o disfarce de um disfarce
em forma de logro (disfarçado)?
[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]
Legados da peste (143):
pandemia ou endemia:
jura de alívio
ou apenas o jogo da semântica?
Podia ser
a fuligem que açaima o mar
a insaciável sede de maresia
ou apenas
o embaraço de ser.
Podia ser
um beijo sem cor
a temperar o rosto melancólico
e as temporadas não seriam vãs
no seu improvável presságio.
Fossem as palavras castelos sem sombra
e a fala um idioma sem segredos
todos os versos combinariam com a manhã
e
por fim
os mastins seriam calados.
Sem que fossem promessas à espera
o caudal servia de paramento para as juras
e de véspera em véspera
Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.
Até que
enfim
o céu consumido pelo ocaso
já não fosse um segredo sem cofre
e as rimas
fossem o lugar possível da fala.
[Crónicas do vírus, DCCCXXV]
Legados da peste (141):
uma tela
tão impressionista
que é tatuagem imorredoira.
A lava rejeita a pele
como tatuagem.
Deixa para a erupção
o magma tangencial
que sobe aos olhos lívidos
antes que a tarde suba
num frémito peregrino.
As casas são feitas de papel
– diz-se por aí
como se o pranto não tivesse
lágrimas.
Somos irrisórios
e disso
é que podemos ter a certeza.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]
Legados da peste (140):
os muitos véus
sobrepostos
num labirinto sem mapa.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]
Legados da peste (139):
a porta dos fundos
outra vez
(quando
já tinham jurado o Éden
precipitadamente).
Se as pessoas conhecessem os gatos
não diriam
“caga nisso”,
como quem diz
não dês importância ao sucedido
ele faz-se esquecer por si mesmo.
Se as pessoas conhecessem os gatos
saberiam
que os gatos escondem o que cagam
para não deixarem vestígios
à sua passagem.
[Crónicas do vírus, DCCCXXII]
Legados da peste (138):
timoneiros
que não passam de regentes
e regentes
que não têm cepa
de timoneiros.
Não se é novo
na véspera da eternidade.
Uma centelha foge do céu.
Desenha uma estrada de sonhos
e nós,
que novos somos,
anexamos o orvalho pendido das uvas
por sabermos
que é o elixir alojado na pele sem regras.
Nos socalcos a poente
o refrão entoa desde o vale profundo.
Não somos nós a profanar
o austero relógio que encomenda as almas;
deixamo-nos
por conta da vontade
arqueada na frontaria desimpedida
onde se assina o livro de honra.
Não se é novo
na véspera da eternidade;
E o que é a eternidade
se não uma servidão?