[Crónicas do vírus, CMXXXIV]
Legados da peste (245):
As fronteiras achadas
são apenas
interiores.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMXXXIV]
Legados da peste (245):
As fronteiras achadas
são apenas
interiores.
Rio sem nome
voraz se cumpre
na exatidão da chuva semente;
outono a destempo
ditando para as páginas sem rosto
a álgebra sem mantimento;
vozes escondidas no sótão
cuidando da pele amarrotada
no museu dos déspotas embainhados;
miragens vertidas no olhar
imensas paisagens sem mapa alegado
afogam angústias dantes sopesadas;
vertigem na planície
ajuramentada para ser moldura
antes que seja império o anoitecer.
O ocaso
senta-se ao jantar
nas suadas palmas das mãos
que se refugiam
no silêncio.
Por medo
talvez seja por medo
metendo as facas longas
no espelho estilhaçado
pelo crepúsculo.
Joga-se
a mirífica mentira
no pedestal onde se fruem ilusões
antes que a pele acorde
presa na hibernação.
Não se cuida
a decadência em prováveis regatos
nem a alucinação transforma o sangue
em altivez.
O xisto
não é a pedra tumular
arrancada à falésia matinal
e o peito carnudo procura as cicatrizes
nas estrofes surdas.
Até que o alívio
seja o campanário irrelevante
e as fragas tomem o corpo por semente
sem avisar os deuses de permeio.
Vozes
armadilhadas
templos sem tributo
vozes
sem remissão
sem medo da estatueta do amanhã
irrompem desde a mudez
mudando
verbos e fermentos
à espera
de vozes em seu desalinho
por corrimões frágeis
desatando preces enjeitadas
como se fossem ideias fracassadas
desembaraçadas do outono
desminadas.
[Crónicas do vírus, CMXXXII]
Legados da peste (243):
Uma guerra
para disfarçar outra
ainda por extinguir.
Dentro desta roupagem
pastoreio a aragem
no sumiço do miradouro.
O horizonte não tem fim
e colho no rosto
o frio abraçado no vento
que rasura a pele.
Longe
onde só o silêncio se autoriza
não contesto as vozes que não ouço
e de minhas palavras murmuradas
faço a fogueira que me aquece.
Depois do dia válido
é o lugar onde a terra se ausentou
mais o furtivo clamor da multidão indiferente.
Oxalá o exílio
não andasse por longe
ou a lonjura não fosse a albufeira
onde se desfazem as bandeiras gastas
para da aragem constituir
a levedura de ânimo.
[Crónicas do vírus, CMXXXI]
Legados da peste (242):
O calendário
é uma ardósia
o seu negrume
um destino por revelar.
Arremesso
beócios
contra
diásporas
elementares.
Fogos
guturais
hoje
ilustrados
jogados
livremente.
Mostos
neófitos
olvidados
partidários
quando
resfolegam.
Serpenteiam
todos
úberes
válidos
Xenofonte
(e) Zaratustra.
[Crónicas do vírus, CMXXX]
Legados da peste (241):
Aprendemos
a sorrir pelos olhos
quando não era certo
o incentivo para sorrir.
Parado
a meio da ponte
quase equidistante
pergunta à alvorada
para que margem seguir.
O silêncio é interrompido
apenas pelo vento.
Demora-se.
Talvez à espera de um sinal
o lado da maré
ou uma nuvem esquecida
ou o sol que fala no selo da primavera
uma pista
que seja.
Não podia continuar parado
tanto tempo.
Agora a urgências é um verbo
intransitivo
como se o tempo morasse tarde
e os corpos ficassem sitiados
pela indecisão.
Escolheu uma margem.
À sorte.
[Crónicas do vírus, CMXXIX]
Legados da peste (240):
Biombos inacabados
metem-se no caminho
juras retroativas.
[Crónicas do vírus, CMXXVI]
Legados da peste (237):
Não é contra o relógio
que se protesta o tempo;
ele continua o seu vagar
como se vogasse
em câmara lenta.
As sílabas portavam-se como balas rasantes
sem que a trovoada passasse da alvorada
e as divindades riam-se dos mastins.
Fosse como fosse era do úbere das memórias
que se saciavam as dúvidas embebidas na pele
e não era em amanhãs que medrava o sono.
A armadura escondida estava de atalaia
não fosse a sua presença imperativa
no reservatório das possibilidades urdidas.
Mas a noite acoitava pesadelos
e as mentiras serviam-se nas entrelinhas
contra a insistência das palavras sem fiador.
[Crónicas do vírus, CMXXV]
Legados da peste (236):
Sem o medo
como verbo de fundo
podemos ser corsários
como dantes não fomos.
A manhã
era o farol que se juntava
no bordo da janela
e murmurava verbos válidos
aos nossos ouvidos.
Não eram os sentidos em alvíssaras
a combinar com os lugares vazios
e os dedos entrelaçados
fugiam ao penhor do tempo.
Dávamos à manhã
o que nos pedia
e em troca
a manhã anunciava-se
luminosa
um viveiro de bocas suadas
corpos hasteados na vertigem
fazendo em seus refúgios
publicidade ao lugar desocupado
que dantes fora uma jura falsa
de desamor.
Éramos curadores da manhã
ou a manhã
como se fosse nossa porteira
e da portaria atirássemos ao futuro
o sortilégio
que vinha nos versos que as bocas entoavam
e nós
portadores do atlas escondido
desenhávamos a geografia
na simetria dos corpos alinhados.
Se dissessem
que éramos loucos
acreditávamos.
E nós
falávamos os idiomas avulsos
até os que não sabíamos ser conhecedores
só para darmos asilo ao vocabulário reservado
e em jura solene
contássemos as sílabas da confiança.
Não partíamos de dados com números
e também éramos capazes
de poemas escondidos das palavras
a celebração do silêncio abastado
que dispensava o logro das palavras.
De nós
subia ao resto do dia
o sangue sem provações
a terra que partia no convés de um navio sem nome
a toponímia que era a que nos quiséssemos
a cada instante.
Desatámos os nós inteiros
com a destreza de marinheiros
e as cordas ficaram à espera das mãos
o mar inteiro sob a nossa tutela.
Da geografia sem adiamentos
colhemos os violinos que ciciam nas paredes.
Hoje
sabemos que o tempo não é uma dilação
e o coabitar numa medida sem avesso
é a quimera que soletramos
sílaba a sílaba
enquanto dizemos ao mundo
como deve desenhar a fala
como não pode respirar as preces.
Em contemplação do horizonte
no miradouro que se afivela no olhar
abotoamos os centímetros de um vulcão
e toda a lava vertida
é a fecunda prova dos versos
que soubemos ser.
Pois em nós
os verbos não têm tempo
e o olhar funde-se na matéria funda,
a maresia de que somos feitos.
[Crónicas do vírus, CMXXIV]
Legados da peste (235):
O elixir
para memória futura
– estava escrito
no habitual lodo antropológico –
era uma (má) distração.
O trinta e um
é um cabo dos trabalhos
um adamastor que cega o caminho
o lídimo assarapantado
que não sabe como desfazer
os equívocos em barda.
O treze,
segundo os melhores peritos
em cabalística
e os afonsos de variadas superstições,
é a personificação do azar.
Talvez não seja por acaso
que o trinta e um é anagrama do treze.
Inquiram-se
os peritos em cabalística
e os afonsos de variadas superstições.
[Crónicas do vírus, CMXXIII]
Legados da peste (234):
A metamorfose
do sangue,
depois da maré
de veneno.
A fita adesiva conspira
na sudação das palavras havidas
entre um resgate soporífero
e o latir de um cão de fila.
Dizem que são mastins
nas eu povoo-os
no lagar da indiferença:
as suas vozes tonitruantes
só esgaçam
as suas gargantas aturdidas.
Mandam as convenções
– diz-se, à lapela sem flor
do passo que,
em passando,
o ardina reformado murmura
as rimas que se sublevam contra
o silêncio.
Ah!
a fita adesiva
contra-ardósia militante
no vulgar bocejo dos lugares-comuns
que ainda ninguém determinou serem
não-lugares.
[Crónicas do vírus, CMXXII]
Legados da peste (233):
Uma guerra faz esquecer
outra (anterior) guerra?
Lisérgico
o perigo parteiro do medo
desarruma o arnês
e somos todos lançados
no precipício do mundo coabitado.
Salgado o substantivo coevo
admite-se a concurso
uma coroa de espinhos como cama
e um vinho avinagrado
como arma dos admirados.
Por este andar
é noite
e ainda não sabemos
da missa pela metade.
Desde a matéria sensível
a ousada faca que se espeta
no dorso cínico da
(assim dita)
verdade.
E depois
há os que se investem numa missão:
não dar tréguas aos párias
por delito flagrante
contra a
(assim dita)
verdade,
eles, párias,
monstros que são o rastilho dos contratempos
da descompostura da gente
(assim vista, em autorretrato)
decente.
E a ninguém é dado interrogar
se as cores das peças dispostas no tabuleiro
não estão do avesso.