9.4.22

#2357

[Crónicas do vírus, CMXXXIV]

 

Legados da peste (245):

As fronteiras achadas

são apenas

interiores.

8.4.22

A diástole dos perseverantes

Rio sem nome

voraz se cumpre

na exatidão da chuva semente;

 

outono a destempo

ditando para as páginas sem rosto

a álgebra sem mantimento;

 

vozes escondidas no sótão

cuidando da pele amarrotada

no museu dos déspotas embainhados;

 

miragens vertidas no olhar

imensas paisagens sem mapa alegado

afogam angústias dantes sopesadas;

 

vertigem na planície

ajuramentada para ser moldura

antes que seja império o anoitecer.

Quinze horas, hora continental

O ocaso

senta-se ao jantar

nas suadas palmas das mãos

que se refugiam

no silêncio. 

Por medo

talvez seja por medo

metendo as facas longas

no espelho estilhaçado

pelo crepúsculo. 

Joga-se

a mirífica mentira

no pedestal onde se fruem ilusões

antes que a pele acorde

presa na hibernação. 

Não se cuida

a decadência em prováveis regatos

nem a alucinação transforma o sangue

em altivez. 

O xisto

não é a pedra tumular

arrancada à falésia matinal

e o peito carnudo procura as cicatrizes

nas estrofes surdas. 

Até que o alívio

seja o campanário irrelevante

e as fragas tomem o corpo por semente

sem avisar os deuses de permeio.

#2356

[Crónicas do vírus, CMXXXIII]

 

Legados da peste (244):

Um espelho,

sem centelha,

puído e baço.

7.4.22

Desminagem

Vozes

armadilhadas

templos sem tributo

vozes

sem remissão

sem medo da estatueta do amanhã

irrompem desde a mudez

mudando

verbos e fermentos

à espera

de vozes em seu desalinho

por corrimões frágeis

desatando preces enjeitadas

como se fossem ideias fracassadas

desembaraçadas do outono

desminadas.

#2355

[Crónicas do vírus, CMXXXII]

 

Legados da peste (243):

Uma guerra

para disfarçar outra

ainda por extinguir.

6.4.22

Por vocação

Dentro desta roupagem

pastoreio a aragem 

no sumiço do miradouro.

O horizonte não tem fim

e colho no rosto

o frio abraçado no vento 

que rasura a pele.

Longe

onde só o silêncio se autoriza

não contesto as vozes que não ouço

e de minhas palavras murmuradas

faço a fogueira que me aquece.

Depois do dia válido

é o lugar onde a terra se ausentou

mais o furtivo clamor da multidão indiferente.

Oxalá o exílio

não andasse por longe

ou a lonjura não fosse a albufeira

onde se desfazem as bandeiras gastas

para da aragem constituir

a levedura de ânimo.

#2354

[Crónicas do vírus, CMXXXI]

 

Legados da peste (242):

O calendário

é uma ardósia

o seu negrume

um destino por revelar.

5.4.22

A-Z

Arremesso

beócios

contra

diásporas

elementares.

Fogos

guturais

hoje

ilustrados

jogados

livremente.

Mostos

neófitos

olvidados

partidários

quando

resfolegam.

Serpenteiam

todos

úberes

válidos

Xenofonte

(e) Zaratustra.

#2353

[Crónicas do vírus, CMXXX]

 

Legados da peste (241):

Aprendemos

a sorrir pelos olhos

quando não era certo

o incentivo para sorrir.

4.4.22

Indecisão

Parado

a meio da ponte

quase equidistante

pergunta à alvorada

para que margem seguir.

 

O silêncio é interrompido

apenas pelo vento.

 

Demora-se.

 

Talvez à espera de um sinal

o lado da maré

ou uma nuvem esquecida

ou o sol que fala no selo da primavera

uma pista 

que seja.

 

Não podia continuar parado

tanto tempo.

 

Agora a urgências é um verbo

intransitivo

como se o tempo morasse tarde

e os corpos ficassem sitiados

pela indecisão.

 

Escolheu uma margem.

 

À sorte.

#2352

[Crónicas do vírus, CMXXIX]

 

Legados da peste (240):

Biombos inacabados

metem-se no caminho

juras retroativas.

3.4.22

#2351

[Crónicas do vírus, CMXXVIII]

 

Legados da peste (239):

Distrações de outra ordem

impedem que se diga

que não é de pontos finais

o tempo que se levanta

mas de vários etc.

#2350

[Crónicas do vírus, CMXXVII]

 

Legados da peste (238):

Espectros

na chuva dissolvidos

como sublevação

do pensamento hibernado.

2.4.22

#2349

[Crónicas do vírus, CMXXVI]

 

Legados da peste (237):

Não é contra o relógio

que se protesta o tempo;

ele continua o seu vagar

como se vogasse

em câmara lenta.

1.4.22

Dia das mentiras

Hoje

não conto

mentiras.

Só conto

com a pluralidade

da semântica.

Descafeinado

As sílabas portavam-se como balas rasantes

sem que a trovoada passasse da alvorada

e as divindades riam-se dos mastins.

 

Fosse como fosse era do úbere das memórias

que se saciavam as dúvidas embebidas na pele

e não era em amanhãs que medrava o sono.

 

A armadura escondida estava de atalaia

não fosse a sua presença imperativa

no reservatório das possibilidades urdidas.

 

Mas a noite acoitava pesadelos

e as mentiras serviam-se nas entrelinhas

contra a insistência das palavras sem fiador.

#2348

[Crónicas do vírus, CMXXV]

 

Legados da peste (236):

Sem o medo

como verbo de fundo

podemos ser corsários

como dantes não fomos.

31.3.22

Decénio

A manhã

era o farol que se juntava 

no bordo da janela

e murmurava verbos válidos

aos nossos ouvidos.

Não eram os sentidos em alvíssaras

a combinar com os lugares vazios

e os dedos entrelaçados

fugiam ao penhor do tempo.

Dávamos à manhã

o que nos pedia

e em troca

a manhã anunciava-se

luminosa

um viveiro de bocas suadas

corpos hasteados na vertigem

fazendo em seus refúgios

publicidade ao lugar desocupado

que dantes fora uma jura falsa

de desamor.

Éramos curadores da manhã

ou a manhã

como se fosse nossa porteira

e da portaria atirássemos ao futuro

o sortilégio

que vinha nos versos que as bocas entoavam

e nós

portadores do atlas escondido

desenhávamos a geografia

na simetria dos corpos alinhados.

Se dissessem

que éramos loucos

acreditávamos.

E nós 

falávamos os idiomas avulsos

até os que não sabíamos ser conhecedores

só para darmos asilo ao vocabulário reservado

e em jura solene

contássemos as sílabas da confiança.

Não partíamos de dados com números

e também éramos capazes 

de poemas escondidos das palavras

a celebração do silêncio abastado

que dispensava o logro das palavras.

De nós 

subia ao resto do dia

o sangue sem provações

a terra que partia no convés de um navio sem nome

a toponímia que era a que nos quiséssemos

a cada instante.

Desatámos os nós inteiros

com a destreza de marinheiros

e as cordas ficaram à espera das mãos

o mar inteiro sob a nossa tutela.

Da geografia sem adiamentos

colhemos os violinos que ciciam nas paredes.

Hoje

sabemos que o tempo não é uma dilação

e o coabitar numa medida sem avesso

é a quimera que soletramos

sílaba a sílaba

enquanto dizemos ao mundo

como deve desenhar a fala

como não pode respirar as preces.

Em contemplação do horizonte

no miradouro que se afivela no olhar

abotoamos os centímetros de um vulcão

e toda a lava vertida

é a fecunda prova dos versos 

que soubemos ser.

Pois em nós

os verbos não têm tempo

e o olhar funde-se na matéria funda,

a maresia de que somos feitos.

#2347

[Crónicas do vírus, CMXXIV]

 

Legados da peste (235):

O elixir

para memória futura 

– estava escrito

no habitual lodo antropológico –

era uma (má) distração.

30.3.22

Anagrama de trinta e um

O trinta e um

é um cabo dos trabalhos

um adamastor que cega o caminho

o lídimo assarapantado

que não sabe como desfazer

os equívocos em barda.

O treze,

segundo os melhores peritos

em cabalística

e os afonsos de variadas superstições,

é a personificação do azar.

Talvez não seja por acaso

que o trinta e um é anagrama do treze.

Inquiram-se

os peritos em cabalística

e os afonsos de variadas superstições. 

#2346

[Crónicas do vírus, CMXXIII]

 

Legados da peste (234):

A metamorfose 

do sangue,

depois da maré 

de veneno.

29.3.22

O dicionário sem lugares-comum

A fita adesiva conspira

na sudação das palavras havidas

entre um resgate soporífero

e o latir de um cão de fila.

Dizem que são mastins

nas eu povoo-os 

no lagar da indiferença:

as suas vozes tonitruantes

só esgaçam

as suas gargantas aturdidas.

Mandam as convenções 

– diz-se, à lapela sem flor

do passo que, 

em passando,

o ardina reformado murmura 

as rimas que se sublevam contra

o silêncio.

Ah!

a fita adesiva

contra-ardósia militante

no vulgar bocejo dos lugares-comuns

que ainda ninguém determinou serem

não-lugares.

#2345

[Crónicas do vírus, CMXXII]

 

Legados da peste (233):

Uma guerra faz esquecer

outra (anterior) guerra?

28.3.22

O “véu dos ignorantes”

Lisérgico

o perigo parteiro do medo

desarruma o arnês

e somos todos lançados

no precipício do mundo coabitado.

 

Salgado o substantivo coevo

admite-se a concurso

uma coroa de espinhos como cama

e um vinho avinagrado

como arma dos admirados.

 

Por este andar

é noite 

e ainda não sabemos

da missa pela metade.

#2344

[Crónicas do vírus, CMXXI]

 

Legados da peste (232):

Encontrámos a chave

para a desconspiração.

27.3.22

Da janela

Não colhas

os dissabores 

na urze tardia 

do outono.

#2343

[Crónicas do vírus, CMXX]

 

Legados da peste (231):

A fala desembaraçada

contra a tirania

sem rosto.

26.3.22

#2342

[Crónicas do vírus, CMXIX]

 

Legados da peste (230):

O tempo

já não tem o vagar

como bússola.

25.3.22

Dos avessos ao avesso

Desde a matéria sensível

a ousada faca que se espeta

no dorso cínico da 

(assim dita)

verdade. 

E depois

há os que se investem numa missão:

não dar tréguas aos párias

por delito flagrante

contra a 

(assim dita) 

verdade,

eles, párias, 

monstros que são o rastilho dos contratempos

da descompostura da gente

(assim vista, em autorretrato)

decente. 

E a ninguém é dado interrogar

se as cores das peças dispostas no tabuleiro

não estão do avesso.