15.4.22

Anti corrosão

Devo as mãos ao asfalto fundente. 

O provérbio arrasta-se na boca

é como se 

picaretas matraqueassem a língua

e da tortura o sangue falasse 

em vez da voz. 

Se esta varanda está gasta

vou a outra embocadura

onde o rio seja eflúvio de mim

e as portas sejam altas fortalezas

abertas contra a tirania do silêncio. 

Possam beijos dar cor às bocas

e da escotilha segredar as manhãs altivas

nem que a penumbra seja o espelho 

em que se acalmam as sílabas. 

Ao longe

o castelo

sozinho

desamparado na paisagem secular

sulca as nuvens que aterram no seu regaço. 

A partida não é o avesso da chegada

apenas

um apeadeiro

no abundante esmo de apeadeiros

onde se hasteia a escolha. 

#2363

[Crónicas do vírus, CMLX]

 

Legados da peste (251):

O manual de instruções

em nova edição

as páginas tingidas

com cor diferente.

14.4.22

Poluição semântica

Será por acaso

que europeia

mete as mãos pelos pés

com epopeia?

#2362

[Crónicas do vírus, CMXXXIX]

 

Legados da peste (250):

A voz

enfim

desembargada.

13.4.22

Lado B

Não é plano

selar comendas

aos lados B. 

Não é um plano,

anjo zelador 

da contingência. 

Do lado B

aprende-se o avesso

uma margem 

contra a repetição. 

São as medusas

o verbo tentacular

agitando estandartes

sem a framboesa noturna. 

Nos tabuleiros gastos

os acordes retirados à maresia

importam da alma

as casas prontas a ser morada. 

Até que se deita

o dorso das mãos

e lado B cogita

desfazendo conspirações pueris

dos magos peritos no improvável. 

#2361

[Crónicas do vírus, CMXXXVIII]

 

Legados da peste (249):

Lotaria,

ou o prolongamento

do jogo por jogar.

12.4.22

Cláusula número um

Corte-se a eito

a casaca ou a língua viperina

se as varandas forem extintas

e sobrarem os contrafortes a esmo

na paisagem dilacerante.

Corte-se a eito:

volta-se ao princípio

onde o verbo se constrói

em ondas alterosas no auge da tempestade

pois todo o ato criativo

é um verso de tumulto.

E depois

quando sobrar o sono

e de pesadelos não for composto

arrume-se o arsenal genesíaco

e faça-se a contagem do avesso

a contar do porvir que não tem horizonte.

#2360

[Crónicas do vírus, CMXXXVII]

 

Legados da peste (248):

A ovação

de vida

ao futuro.

11.4.22

Contracapa

Se a rasura na página

tem o dedo do contramestre

o que dizer da censura

do peso que se arqueia no ocaso sem nome

das bandeiras impostoras que se revoltam

e nos basaltos enquistados se deitam?

Não são desenfreadas, as palavras.

Não são irrefreáveis

nem se acostumam às prisões mendazes

e seus torcionários advogados.

Não é nas entrelinhas

que se abriga o sumo puro

das palavras impuras

o adubo que mente às colheitas desassisadas.

É na contracapa

em poros disfarçados de tinta dourada

como eram dantes as lombadas

um espelho de falsificações

sem se saber da nota da contrafação.

#2359

[Crónicas do vírus, CMXXXVI]

 

Legados da peste (247):

Depois do biombo forçado

o ser pela metade,

vagaroso.

10.4.22

#2358

[Crónicas do vírus, CMXXXV]

 

Legados da peste (246):

As bandeiras

ainda do avesso

vão por gramáticas

desaprendidas.

9.4.22

Ingente

Consegue-se o peso boreal

quando se encerram os olhos

e a mudez se desfaz 

em nuvens de ócio. 

#2357

[Crónicas do vírus, CMXXXIV]

 

Legados da peste (245):

As fronteiras achadas

são apenas

interiores.

8.4.22

A diástole dos perseverantes

Rio sem nome

voraz se cumpre

na exatidão da chuva semente;

 

outono a destempo

ditando para as páginas sem rosto

a álgebra sem mantimento;

 

vozes escondidas no sótão

cuidando da pele amarrotada

no museu dos déspotas embainhados;

 

miragens vertidas no olhar

imensas paisagens sem mapa alegado

afogam angústias dantes sopesadas;

 

vertigem na planície

ajuramentada para ser moldura

antes que seja império o anoitecer.

Quinze horas, hora continental

O ocaso

senta-se ao jantar

nas suadas palmas das mãos

que se refugiam

no silêncio. 

Por medo

talvez seja por medo

metendo as facas longas

no espelho estilhaçado

pelo crepúsculo. 

Joga-se

a mirífica mentira

no pedestal onde se fruem ilusões

antes que a pele acorde

presa na hibernação. 

Não se cuida

a decadência em prováveis regatos

nem a alucinação transforma o sangue

em altivez. 

O xisto

não é a pedra tumular

arrancada à falésia matinal

e o peito carnudo procura as cicatrizes

nas estrofes surdas. 

Até que o alívio

seja o campanário irrelevante

e as fragas tomem o corpo por semente

sem avisar os deuses de permeio.

#2356

[Crónicas do vírus, CMXXXIII]

 

Legados da peste (244):

Um espelho,

sem centelha,

puído e baço.

7.4.22

Desminagem

Vozes

armadilhadas

templos sem tributo

vozes

sem remissão

sem medo da estatueta do amanhã

irrompem desde a mudez

mudando

verbos e fermentos

à espera

de vozes em seu desalinho

por corrimões frágeis

desatando preces enjeitadas

como se fossem ideias fracassadas

desembaraçadas do outono

desminadas.

#2355

[Crónicas do vírus, CMXXXII]

 

Legados da peste (243):

Uma guerra

para disfarçar outra

ainda por extinguir.

6.4.22

Por vocação

Dentro desta roupagem

pastoreio a aragem 

no sumiço do miradouro.

O horizonte não tem fim

e colho no rosto

o frio abraçado no vento 

que rasura a pele.

Longe

onde só o silêncio se autoriza

não contesto as vozes que não ouço

e de minhas palavras murmuradas

faço a fogueira que me aquece.

Depois do dia válido

é o lugar onde a terra se ausentou

mais o furtivo clamor da multidão indiferente.

Oxalá o exílio

não andasse por longe

ou a lonjura não fosse a albufeira

onde se desfazem as bandeiras gastas

para da aragem constituir

a levedura de ânimo.

#2354

[Crónicas do vírus, CMXXXI]

 

Legados da peste (242):

O calendário

é uma ardósia

o seu negrume

um destino por revelar.

5.4.22

A-Z

Arremesso

beócios

contra

diásporas

elementares.

Fogos

guturais

hoje

ilustrados

jogados

livremente.

Mostos

neófitos

olvidados

partidários

quando

resfolegam.

Serpenteiam

todos

úberes

válidos

Xenofonte

(e) Zaratustra.

#2353

[Crónicas do vírus, CMXXX]

 

Legados da peste (241):

Aprendemos

a sorrir pelos olhos

quando não era certo

o incentivo para sorrir.

4.4.22

Indecisão

Parado

a meio da ponte

quase equidistante

pergunta à alvorada

para que margem seguir.

 

O silêncio é interrompido

apenas pelo vento.

 

Demora-se.

 

Talvez à espera de um sinal

o lado da maré

ou uma nuvem esquecida

ou o sol que fala no selo da primavera

uma pista 

que seja.

 

Não podia continuar parado

tanto tempo.

 

Agora a urgências é um verbo

intransitivo

como se o tempo morasse tarde

e os corpos ficassem sitiados

pela indecisão.

 

Escolheu uma margem.

 

À sorte.

#2352

[Crónicas do vírus, CMXXIX]

 

Legados da peste (240):

Biombos inacabados

metem-se no caminho

juras retroativas.

3.4.22

#2351

[Crónicas do vírus, CMXXVIII]

 

Legados da peste (239):

Distrações de outra ordem

impedem que se diga

que não é de pontos finais

o tempo que se levanta

mas de vários etc.

#2350

[Crónicas do vírus, CMXXVII]

 

Legados da peste (238):

Espectros

na chuva dissolvidos

como sublevação

do pensamento hibernado.

2.4.22

#2349

[Crónicas do vírus, CMXXVI]

 

Legados da peste (237):

Não é contra o relógio

que se protesta o tempo;

ele continua o seu vagar

como se vogasse

em câmara lenta.

1.4.22

Dia das mentiras

Hoje

não conto

mentiras.

Só conto

com a pluralidade

da semântica.

Descafeinado

As sílabas portavam-se como balas rasantes

sem que a trovoada passasse da alvorada

e as divindades riam-se dos mastins.

 

Fosse como fosse era do úbere das memórias

que se saciavam as dúvidas embebidas na pele

e não era em amanhãs que medrava o sono.

 

A armadura escondida estava de atalaia

não fosse a sua presença imperativa

no reservatório das possibilidades urdidas.

 

Mas a noite acoitava pesadelos

e as mentiras serviam-se nas entrelinhas

contra a insistência das palavras sem fiador.

#2348

[Crónicas do vírus, CMXXV]

 

Legados da peste (236):

Sem o medo

como verbo de fundo

podemos ser corsários

como dantes não fomos.