[Crónicas do vírus, CMLXI]
Legados da peste (252):
Esplanadas
sem cadeiras vazias
no remoçar da Primavera
ateando as vidas de antes.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMLXI]
Legados da peste (252):
Esplanadas
sem cadeiras vazias
no remoçar da Primavera
ateando as vidas de antes.
Devo as mãos ao asfalto fundente.
O provérbio arrasta-se na boca
é como se
picaretas matraqueassem a língua
e da tortura o sangue falasse
em vez da voz.
Se esta varanda está gasta
vou a outra embocadura
onde o rio seja eflúvio de mim
e as portas sejam altas fortalezas
abertas contra a tirania do silêncio.
Possam beijos dar cor às bocas
e da escotilha segredar as manhãs altivas
nem que a penumbra seja o espelho
em que se acalmam as sílabas.
Ao longe
o castelo
sozinho
desamparado na paisagem secular
sulca as nuvens que aterram no seu regaço.
A partida não é o avesso da chegada
apenas
um apeadeiro
no abundante esmo de apeadeiros
onde se hasteia a escolha.
[Crónicas do vírus, CMLX]
Legados da peste (251):
O manual de instruções
em nova edição
as páginas tingidas
com cor diferente.
Não é plano
selar comendas
aos lados B.
Não é um plano,
anjo zelador
da contingência.
Do lado B
aprende-se o avesso
uma margem
contra a repetição.
São as medusas
o verbo tentacular
agitando estandartes
sem a framboesa noturna.
Nos tabuleiros gastos
os acordes retirados à maresia
importam da alma
as casas prontas a ser morada.
Até que se deita
o dorso das mãos
e lado B cogita
desfazendo conspirações pueris
dos magos peritos no improvável.
[Crónicas do vírus, CMXXXVIII]
Legados da peste (249):
Lotaria,
ou o prolongamento
do jogo por jogar.
Corte-se a eito
a casaca ou a língua viperina
se as varandas forem extintas
e sobrarem os contrafortes a esmo
na paisagem dilacerante.
Corte-se a eito:
volta-se ao princípio
onde o verbo se constrói
em ondas alterosas no auge da tempestade
pois todo o ato criativo
é um verso de tumulto.
E depois
quando sobrar o sono
e de pesadelos não for composto
arrume-se o arsenal genesíaco
e faça-se a contagem do avesso
a contar do porvir que não tem horizonte.
Se a rasura na página
tem o dedo do contramestre
o que dizer da censura
do peso que se arqueia no ocaso sem nome
das bandeiras impostoras que se revoltam
e nos basaltos enquistados se deitam?
Não são desenfreadas, as palavras.
Não são irrefreáveis
nem se acostumam às prisões mendazes
e seus torcionários advogados.
Não é nas entrelinhas
que se abriga o sumo puro
das palavras impuras
o adubo que mente às colheitas desassisadas.
É na contracapa
em poros disfarçados de tinta dourada
como eram dantes as lombadas
um espelho de falsificações
sem se saber da nota da contrafação.
[Crónicas do vírus, CMXXXVI]
Legados da peste (247):
Depois do biombo forçado
o ser pela metade,
vagaroso.
[Crónicas do vírus, CMXXXV]
Legados da peste (246):
As bandeiras
ainda do avesso
vão por gramáticas
desaprendidas.
Rio sem nome
voraz se cumpre
na exatidão da chuva semente;
outono a destempo
ditando para as páginas sem rosto
a álgebra sem mantimento;
vozes escondidas no sótão
cuidando da pele amarrotada
no museu dos déspotas embainhados;
miragens vertidas no olhar
imensas paisagens sem mapa alegado
afogam angústias dantes sopesadas;
vertigem na planície
ajuramentada para ser moldura
antes que seja império o anoitecer.
O ocaso
senta-se ao jantar
nas suadas palmas das mãos
que se refugiam
no silêncio.
Por medo
talvez seja por medo
metendo as facas longas
no espelho estilhaçado
pelo crepúsculo.
Joga-se
a mirífica mentira
no pedestal onde se fruem ilusões
antes que a pele acorde
presa na hibernação.
Não se cuida
a decadência em prováveis regatos
nem a alucinação transforma o sangue
em altivez.
O xisto
não é a pedra tumular
arrancada à falésia matinal
e o peito carnudo procura as cicatrizes
nas estrofes surdas.
Até que o alívio
seja o campanário irrelevante
e as fragas tomem o corpo por semente
sem avisar os deuses de permeio.
Vozes
armadilhadas
templos sem tributo
vozes
sem remissão
sem medo da estatueta do amanhã
irrompem desde a mudez
mudando
verbos e fermentos
à espera
de vozes em seu desalinho
por corrimões frágeis
desatando preces enjeitadas
como se fossem ideias fracassadas
desembaraçadas do outono
desminadas.
[Crónicas do vírus, CMXXXII]
Legados da peste (243):
Uma guerra
para disfarçar outra
ainda por extinguir.
Dentro desta roupagem
pastoreio a aragem
no sumiço do miradouro.
O horizonte não tem fim
e colho no rosto
o frio abraçado no vento
que rasura a pele.
Longe
onde só o silêncio se autoriza
não contesto as vozes que não ouço
e de minhas palavras murmuradas
faço a fogueira que me aquece.
Depois do dia válido
é o lugar onde a terra se ausentou
mais o furtivo clamor da multidão indiferente.
Oxalá o exílio
não andasse por longe
ou a lonjura não fosse a albufeira
onde se desfazem as bandeiras gastas
para da aragem constituir
a levedura de ânimo.
[Crónicas do vírus, CMXXXI]
Legados da peste (242):
O calendário
é uma ardósia
o seu negrume
um destino por revelar.
Arremesso
beócios
contra
diásporas
elementares.
Fogos
guturais
hoje
ilustrados
jogados
livremente.
Mostos
neófitos
olvidados
partidários
quando
resfolegam.
Serpenteiam
todos
úberes
válidos
Xenofonte
(e) Zaratustra.
[Crónicas do vírus, CMXXX]
Legados da peste (241):
Aprendemos
a sorrir pelos olhos
quando não era certo
o incentivo para sorrir.
Parado
a meio da ponte
quase equidistante
pergunta à alvorada
para que margem seguir.
O silêncio é interrompido
apenas pelo vento.
Demora-se.
Talvez à espera de um sinal
o lado da maré
ou uma nuvem esquecida
ou o sol que fala no selo da primavera
uma pista
que seja.
Não podia continuar parado
tanto tempo.
Agora a urgências é um verbo
intransitivo
como se o tempo morasse tarde
e os corpos ficassem sitiados
pela indecisão.
Escolheu uma margem.
À sorte.
[Crónicas do vírus, CMXXIX]
Legados da peste (240):
Biombos inacabados
metem-se no caminho
juras retroativas.
[Crónicas do vírus, CMXXVI]
Legados da peste (237):
Não é contra o relógio
que se protesta o tempo;
ele continua o seu vagar
como se vogasse
em câmara lenta.
As sílabas portavam-se como balas rasantes
sem que a trovoada passasse da alvorada
e as divindades riam-se dos mastins.
Fosse como fosse era do úbere das memórias
que se saciavam as dúvidas embebidas na pele
e não era em amanhãs que medrava o sono.
A armadura escondida estava de atalaia
não fosse a sua presença imperativa
no reservatório das possibilidades urdidas.
Mas a noite acoitava pesadelos
e as mentiras serviam-se nas entrelinhas
contra a insistência das palavras sem fiador.