[Crónicas do vírus, CMLXXVIII]
Legados da peste (269):
E agora somos
a explosão de nós
desde o promontório
que selou a liberdade.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMLXXVIII]
Legados da peste (269):
E agora somos
a explosão de nós
desde o promontório
que selou a liberdade.
O prontuário
de manhãs sem nome
sobe nas bocas desassisadas
e compõe
o terno inventário da coragem.
Servirá
em generosas talhadas
o medo antecipatório
que das mãos aguadas
retira os verbos invencíveis.
[Crónicas do vírus, CMLXXVII]
Legados da peste (268):
A queda do açaime
é liberdade exercida em dobro:
uns aliviaram-se da opressão
outros mantêm o direito de o usar.
Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM
O sonho que cicia
na fronteira do ouvido
harpeja o crepitar da lareira
sem que da angústia contumaz
o dia tenha entendimento.
Os degraus movem-se
verticais
à medida que os dedos caiam
a silhueta da enseada.
Ouço palavras atropeladas
espanholadamente atropeladas
num grasnar singular
e o barco promete-se ao mar alto.
E quem não tem as suas enseadas?
Pergunto-me
silenciosamente
omitindo o bramido deslimítrofe
arrumando as cortinas que retesam a claridade
se as enseadas não são privados exílios
ocultando a multitudinária fala gongórica.
[Crónicas do vírus, CMLXXVI]
Legados da peste (267):
Tremenda é a empreitada
de que somos
únicos capatazes.
[Crónicas do vírus, CMLXXV]
Legados da peste (266):
Caíram os açaimes,
longa vida
à beleza e à feiura!
O tratado das coisas
envergonha compêndio
de páginas amarelecidas
embota o rugido das feras
na sincronia das falas sem dicionário.
Trago tratado o dilema
e sem bolçar a digestão dos tempos
arremeto as cores contra o silêncio
neste lugar
que está entre mim
e um outro eu sem paradeiro.
Azulam-se as abóbadas do olhar
em acetinadas colheres que bebem o mar
e no provérbio que dá de viver às almas
arrisco uma vírgula a destempo
arrisco o deleite do provérbio despedaçado.
As coisas tratadas
desembaraçam-se em páginas avulsas
páginas ainda luminosas
dando corda ao mutismo dos timoratos
na divergência das oratórias maduras.
[Crónicas do vírus, CMLXXIV]
Legados da peste (265):
Tudo
não passou
de um pesadelo
que se demorou
numa passerelle encarvoada.
[Crónicas do vírus, CMLXXIII]
Legados da peste (264):
As pessoas
ganharam
(e de vez?)
vergonha na cara.
[Sobre os efeitos duradouros do açaime]
Passei por um autocarro
ia para “Sonhos”.
Não sabia de um lugar
que dá pelo nome de sonhos,
o que ditará
de seus habitantes
serem sonhadores.
Sem nenhuma altercação do pensamento
nem figuração de fingidores a preceito.
Se a alguém
forem visitação assídua
os pesadelos
aconselha-se
temporada nos sonhos
para os habilitar
em detrimento dos pesadelos tentaculares.
Estou convencido:
os antepassados deram nome de sonhos
a este lugar
para um exílio haver
para os fustigados por pesadelos.
[Crónicas do vírus, CMLXXII]
Legados da peste (263):
A comédia
torrencialmente precipitada
sobre a angústia.
Peçam
uma lavagem cerebral
um imorredoiro compêndio de instruções
semáforos diligentemente semeados
em todos os cruzamentos
instruções sobre como ser e atuar
e até como devem proceder
quando as hormonas convidam ao sexo.
Peçam
regulamentos e leis e posturas
e decretos-regulamentares
e uma miríade de regras minuciosas
todas as possibilidades da vida
tatuadas no sortilégio do dedo regulador.
Peçam
para haver regentes em vez de pais
(ou regentes substituindo-se aos pais)
obediência religiosa a uma bandeira
educação meticulosa pelos mestres de escola
dando seguimento à bitola das autoridades
e peçam, ainda,
para as autoridades não se esquecerem
da exibição do poder de império
substituindo-se
a páginas tantas
por autoritários
(que o povo madraço adora “pulso forte”
como se fosse preciso
para um qualquer onanismo místico
que cavalga no poder dos regentes).
Peçam
para tutelarem eufemismos
que escondam farsas bem disfarçadas
e, ato contínuo,
atirem toda a areia do Saara para os olhos
até que a capacidade de inteleção dos súbditos
fique presa por arames.
Nesta altura
não se esqueçam
de pedir
o boletim de voto
e repitam
de preferência,
todo o antecedente.
[Crónicas do vírus, CMLXXI]
Legados da peste (262):
A pedra sobre o assunto
é à prova
de estilhaços?
O verbo na trave
não vá o velho improvável
acertar no buraco da agulha
e ao longe perceber
as pestanas das cortinas
que desviam o olhar para os subúrbios.
Nunca se dispensem
as mãos audazes que se metem
na frente dos provérbios sentenciais.
O guarda-redes abstrato
é um seguro de vida,
perene.
Às vezes
é como se precisasse
de fazer a vindima
o corpo sentido por excesso
e antes que de excessos mais
se encolerize
refém dos meus próprios degraus
habilito o silo com as sobras de mim
para memória futura.
Outras vezes
sento-me no miradouro colateral
e dou de mim à vontade
sem pejo
os fragmentos
os visíveis e os ocultos
no aleatório desconspirar que arremete
basilar
nos socalcos do futuro.
Não fosse o zero
as arestas quadradas
seriam gelo sobre as feridas
o milhão inteiro de profecias
sem dívida por legado
sem vestígios das lágrimas
abandonadas.
Por esconder
o que de mais feio se contém
no humano corpo,
ao sapato
devia ser aposta a comenda
de património da humanidade.
[Crónicas do vírus, CMLXVII]
Legados da peste (258):
Já pouco tempo falta
para reaprendermos
os rostos.
O caminho do silêncio
arroteia marés hasteadas em breve
no descolorido cenário habitado por vultos.
Na gramática do silêncio
contam todas as sílabas
para o apuro dos déspotas.
Descombinam-se os álibis
na congeminação perfeita dos fingimentos
sem cesuras ou outros pespontos
à espera dos promitentes do verbo hausto
à espera
dos mantimentos especulados
nas janelas que tecem suas próprias paisagens.
No caminho do silêncio
nem o arvoredo cicia
e não é pelo vento que se ausentou.
Do silêncio a caminho
o poema que exulta
em frações diferidas do vocabulário loquaz
a mirífica palavra
regida pelas ameias da alma.
[Crónicas do vírus, CMLXVI]
Legados da peste (257):
Prudência
como eufemismo
de teimosia
– ou de perpetuação de poder.
Sólidas
as cofragens
que se enchem
na urdidura dos dedos.
As arestas
são aprumadas
que de ângulos mortos se estiolam
angústias sem lugar.
Os rostos
amontoam-se
num mapa sem nomes
sem mosto que seja mecenas
de um inventário de sombras.
As mãos
agarram as sílabas
enquanto a manhã se agiganta
no otimista oblívio dos apoderados.
Sem ser
por remédio
a maré assustada foge
e do mar alto ateia o dia que sobra.
[Crónicas do vírus, CMLXV]
Legados da peste (256):
Um espelho baço
tutela a penumbra,
a herança indesejada.
Qual é
a silhueta
da glória
se nos degraus do sono
habita uma pirotecnia magra
a estulta máscara de si
um rogo de piedade
a recusa gratuita
candeias vãs
e um rosnar.
Qual é
a geografia
do medo
se nos corrimões da água
se denuncia o algoz emaciado
a claraboia sem contornos
um magistrado sem toga
o tirocínio puído
poetas de giz
e um bolçar.
[Crónicas do vírus, CMLXIV]
Legados da peste (255):
Sobra a hipótese
de postergamento da peste
pelos seus tutores
sob pena de perderem o palco.
[Crónicas do vírus, CMLXIII]
Legados da peste (254):
As fragas
nada pastoris
que arqueiam o dorso.
Os mastins
sozinhos
colonizam a cidade.
Deles é
a derradeira palavra
sentenciadores sem dó.
Talvez por serem temidos
muitos aspiram sê-lo.
O poder
sempre constituiu
a maior
(e pior)
embriaguez de todas.
[Crónicas do vírus, CMLXII]
Legados da peste (253):
Cortinas de fumo
insistentemente
vestem os palcos.