9.8.22

Poesia vs. ciência

Uma fatia da lua:

a chave urdida na sementeira

no bolbo da Primavera

e os tribunos extáticos

atribuem aos deuses as causas órfãs.

Uma fatia da lua servida no oráculo:

os destemidos marinheiros trazem os mares

eles que passaram por tantas marés

e que ciciam o sono perdido

antes que fossem serventia à mesa

de criaturas acusadas de naufrágio.

 

O que seria dos mapas

sem os marinheiros intrépidos

ou os exegetas que nos leram

a História?

 

Na pena iconoclasta dos letrados

as talhadas de lua são como aneurismas

pestes que vestem as páginas dos vates

contra os determinismos selados

em matéria irremediável.

As luas de antanho

testemunharam o ocorrido

mas ninguém lhes pergunta

pelo determinismo dos peritos.

#2486

Os dentes macios da estufa

fintam a geografia limítrofe.

8.8.22

Poema à Adélia Lopes

Hoje

(já)

li

dois livros

e qualquer coisa

de poesia.

Peregrinação

Todas as tardes são pusilânimes

quando os aromas se escondem

nos verbos covardes

nos rostos seráficos que, 

étimos de fingimento,

corroem a mais ínfima corrosão

deixando um telúrico vazio por dentro

no raiar do dia assim desapetecido.

 

Não é o vulgar irradiar do sol

que disfarça as intempéries interiores:

o basalto cobre a pele

e as mãos 

tornam-se esquimós com medo do Verão.

 

Se ao menos 

a tirania saísse do dicionário

talvez houvesse um arranjo 

para as entorses do mundo.

#2485

Bulem comigo

em (quase) igual medida

bulas papais

e bulas medicamentosas. 

7.8.22

#2484

As mãos atravessadas

numa floresta de frases

desmatando a mudez da fala.

Verosimilhança

Os olhos a carvão

arrastam a vírgula

na página emaciada.

 

Contam as sílabas

no úbere do tempo

a tempo de não serem tardios.

 

As clepsidras conspiram

braços a desmedo no nadar

o suor lavado no mar.

 

As tardes porfiam

um cessar repetitivo

em versos sentados no luar.

 

As comendas não se revindicam

lugares vazios no idioma

se os silêncios disserem mais.

 

Nada dizemos aos anátemas

às ermas marés

no regozijo dos motes entronizados.

 

No distante lugar

onde nada se faz dicionário

os rostos contam tudo o que é preciso.

6.8.22

Desconsentimento

O logos periférico

larápio da santidade,

todavia visceral,

do sangue bolçado

contra 

os anátemas de tanta linhagem. 

Logo se confessa o esconjurado

em degraus estilhaçados

por manifesta indisposição ao arnês

no fundo

a liberdade sem código de conduta.

Os almanaques passeiam nas mãos serenas

e deixam lacradas sentenças;

as mesmas que habilitam dissidências

na pureza do pensamento sem freios.

Dessas harpas subliminares

levantam-se ecos que desenham as estrofes

em vez dos códigos de conduta:

pois deles só tem carestia

os que à partida sabem

não serem credores de confiança. 

#2483

No estirador sem esconderijos

somos a pele que se mostra

a franqueza possível 

de um nome sem rasuras.

5.8.22

#2482

Avarias, avarias, avarias;

Vinte e seis minutos de avarias:

ou um mundo

com um desenho não caricatural.

 

[GNR, “Avarias”]

4.8.22

Distâncias

Tudo se reduz a nenhures

a largueza de um deserto

resumida a um grão de areia

os mapas que disfarçam imensidões

ou antes se limitam a rasurá-las

na pequena moldura do olhar. 

Os limites não se enganam

na artilharia amputada dos legítimos guerreiros

que cortam tiranos pela raiz. 

Nada se agiganta depois do horizonte;

a finitude 

ou a sensação de ela ter um palco

anestesia as almas sobressaltadas. 

Não precisam de geografias sem fim:

gigantes são as empreitadas

que desassossegam as almas. 

#2481

Se procurares

nas veias dos destroços,

encontrarás uma Bastilha.

3.8.22

A garganta da terra

Na garganta da terra:

os lençóis revirados

marca registada do avesso

tatuavam a crisálida

que avivava a melancolia. 

Tirava as medidas ao comboio

que rompia o silêncio noturno;

de vez em quando

ecoavam os nomes

em seus disfarces

de fantasmas.

Os proveitos versados,

anotados em folhas amarelas,

eram olimpicamente ignorados:

falava-se de desmaterializar a matéria

por tudo o impossível que soasse

nas arcádias povoadas pelo escol.

As falas não eram importunadas

ainda que se atropelassem 

num caudal contínuo.

Delas se dizia serem o manancial

de águas frutadas que empunhavam 

poemas.

Esses poemas

eram as mãos que desciam à terra funda,

as mãos fundamentadas

– mãos sinceramente à prova de medo – 

e traziam à superfície

com a mediação de periscópios rigorosos

uma forma de arroz enfatuado,

mas com a devida autorização

dos tutores da república. 

Pois a terra

tinha a sua garganta

e ai de quem 

a quisesse silenciar. 

#2480

Serve-se imoderação a esmo

no panteão dos vivos

que nenhuma palavra

serve para atapetar o rés-do-chão.

2.8.22

Despatriotismo

De silogismo em silogismo, 

as bandeiras decaíam 

no esgotamento dos costumes. 

Dizia-se:

somos peritos em farsas

e avançamos pelo avental

do fingimento

fundindo em verbos ostensivos

o boçal ornamento da fala intransitável.

Os bocejos tornaram-se adjetivo

e da fundura dos estigmas

ninguém reparou na indigência

no mais aviltante destratar de si.

As loucas vozes gritavam

mas ninguém ouvia o clamor

ninguém

queria saber do livro de estilo

onde se ensinava a decadência. 

As mãos caíram no barro

mas não souberam ser escultoras.

Agora ficávamos à mercê do acaso

antes que do avesso de nós

colhêssemos a agitação própria

de quem está fora de validade. 

As bandeiras despedaçadas 

sem servidão

esqueceram-se do hino.

As pessoas esqueceram-se

do hino e das bandeiras;

esqueceram-se

de quem são.

#2479

Avenidas intermináveis,

esboços mentais

de uma altivez sedutora.

1.8.22

Escola primária

Não tendo vocação

para as grandezas

quando chegou a sua vez

entoou

com a solenidade dos condenados à irrelevância:

 

“quando for grande

quero ser

a ursa menor.”

#2478

Não é em gramas

que se mede

o ânimo. 

31.7.22

Marsupial

Desta pele

as escamas

sudário que se convoca

diante das provações

dos mastins em variável grau;

a pele

intensa

abecedário de resolução

o poente que promete inaugurações

poema válido

dos nomes que não se escondem

em cicatrizes

nem se tatuam com disfarces.

#2477

Não se desdenhe o arnês

que o credo na boca

não é idioma escrupuloso.

30.7.22

LCD

O ocaso

não é a mora do medo

é a véspera da glória

que se evade dos destroços.

#2476

Postergar o Verão 

é a vacina contra os incêndios.

29.7.22

Alarme

Promessa

homessa

sem vírgula

ou tomas a pílula

na trave do remédio

não vá ser tédio

e jura, mancebo

antes que te tirem o sebo.

 

Depois confessa

desta que é sua meça

a demais remessa

no patíbulo

versículo

jorna farsante

em forma de Dante.

 

No viés em que pereça

o furriel não adormeça

no baldio em que messa 

antes que desapareça.

Calendário a destempo

O dever de março é uma impostura:

a Primavera adia os tentáculos

sobrando um março que soa a janeiro 

 

– e o corpo delira

em sua exsudação estival

sonhando com uma estação 

a preceito.

O devir de julho

é açambarcar o desejo

com um inverno 

como nos bons velhos tempos.

 

(e havia tanto a dizer

sobre os bons velhos tempos,

ou o que a expressão idiomática contém,

mas hoje 

não é dia de empreitadas gongóricas.)

#2475

Recebes o dia

mesmo não sabendo

se dele ficas credor.

28.7.22

#2474

No labirinto 

de uma palavra

o rosto não fingido

de todos que somos atores.

27.7.22

#2473

Não se deixe de fora

o regatear do dia completo

para não ultrajar 

o de si sempre escasso tempo.

26.7.22

Um comboio

O comboio perdido;

promessa

venda sobreposta nas mãos

a palavra fendida

irradiando o luar fingido

nos baldios onde não há nomes. 

 

O comboio furtivo;

ciciar dos mendigos

das almas que peticionam paradeiro

almas que dispensam o arnês

enquanto se movem

arrancando sílabas ao silêncio.

 

O comboio sem apeadeiro;

miragem

compêndio da loucura itinerante

dos vassalos dos lugares sem limites. 

#2472

Corto a eito

no atalho vicejante

sem a espera da demora.

25.7.22

O reino dos agnósticos

As mezinhas

são mazinhas

ainda que sejam obra

de mãezinhas

e ajuramentadas

em missinhas.