Ao teu lado
as manhãs
são boreais.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
E se da matança não houver ouvidos
os sentidos rasgados desmaiam no caudal
talvez sangrando as palavras opacas,
este o graal consentido.
O ringue está sempre pronto:
os imprevidentes impérios
tutelam-se nas mangas dos burocratas
tornam-se adultos
no avesso das páginas remendadas.
As mentiras sobram nas goteiras
cobrem as vidraças com o orvalho demorado
e as pessoas avançam no meio das ilusões
apagadas
como sempre são as pessoas
no fingimento de serem as peças centrípetas
que sobem a palco
ao palco sem residência nem existência certa.
E as palavras
invisivelmente sangradas
escorrem no meio da podridão coeva.
Não se enfastiam
os mecenas do teatro dos fingimentos;
sabem que só são periscópios
enquanto os demais
forem corsários da grande mentira universal,
a mentira que se entronizou
metáfora da verdade.
Colho
na penumbra do outono
as sílabas sortilégio
o almirante miradouro
que levanta do céu embaciado
as cortinas vetustas
e sei
que o outono é promitente
de outonos que não cumprem
o selo da decadência
nele levitando novos horizontes.
Desse palco soube distância.
O povoado sabia-se torto
sem ser pela impureza
a dissidência:
as fragas
sussurravam na esquina do Outono
e a linhagem das palavras entoadas
soava a farsa invalidada
pela muralha da cidade.
Mas o Outono era tardio.
O ciciar do caudal dele dizia ser timorato
um pouco como as bocas
que eram parentes da afoiteza
mas não passavam da medida pequena
assim encerrando-as
na sua soez descapacidade.
Ao menos
à noite
ninguém via rostos e bocas e rio
e até os murmúrios se metamorfoseavam
em silêncios.
A voz perdeu as sílabas
mas não se calou.
Os calos da boca
enchem-se de brio
e resistem
resistem ao veneno bolçado
pelos apátridas que desadoram
a liberdade.
Estado de sítio:
tomamos a convulsão como verbo
reféns do imorredoiro protesto
contra o estado das coisas.
Consideramos:
é da natureza das coisas
a sublevação
contra a natureza das coisas
pois as coisas
em sua natureza
seriam destinadas ao malogro
se de nós soubessem
a apatia.
E nem que preciso seja
adejar uma conspiração
devolvemos à nostalgia a sua inutilidade
por insatisfatória condição;
preferimos
avançar a desmedo
arroteando os touros à medida que desfilam
desfazendo as bandeiras que se supõem
equinócios baratos
juntando nas mãos a neve vagamente prometida
coabitando na memória do presente
– o maior presente que deixamos
em memória do futuro.
A rendição
não se traduz no nosso dicionário.
Queremos ser procuradores do avesso continuo.
Há quem garanta
tratar-se apenas de feitio mal concebido.
Não somos desmancha-prazeres
nem é da nossa lavra
a contradição condenada a ser um logro.
Não escondemos sob o tapete
as más cores que embaciam
o estado das coisas.
Somos
apenas
seus legítimos artesãos
sem esconder
as reentrâncias da contrafação.
Consulta de saldo
sobre o tempo sobrante
em crédito à conta da vida.
O empenho menor
atraiçoa o sangue murmurado
arrefece os dedos
o étimo da capitulação.
Não se sabe
ninguém sabe
a que úbere se dá a vida a beber
pois de sortilégios vários
cumpre-se
a função mínima.
O recibo da consulta de saldo
dança um número.
Se fossem varandas expandidas sobre o céu
diria palavras inestimáveis,
incomensuráveis,
esse número em forma de aval.
Seria um salvo-conduto
quase
uma garantia vinculativa
amarrada a um cumprimento escrupuloso
sem pretextos como enredo
ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis.
Se fosse assim,
que não é.
A transgressão da garantia
começa na ausência de entidade reguladora:
ainda bem
que não há
uma ASAE
para as vidas.
A cada luar sentado no telhado
uma quimera que entra na fala
e compõe os oráculos sem destino.
A cada fado tresmalhado
uma centelha que não se cala
e anima o vento clandestino.
A cada erro sem ser combinado
a carne arrematada pela dura bala
e um espelho com rosto prístino.
Num pregão dissimulado
a pregoeira lamentava
a sorte maldita.
Ao menos
alguém houvesse
em pose burocrática
a lembrar
que uma sorte maldita
é um oximoro:
se é maldita
entra nos pertences da contrariedade
ou se é sorte sem espinhas
tem de levar na sela
um adjetivo conforme.
Serve de afeição
a cordilheira entrançada
os folhos revirados como se fossem
as entranhas viradas do avesso
que é onde se atesta
a têmpera de que versam as entrelinhas.
No bojo que desalinha do modo
a cordilheira contém
as rugas da palma da mão
fica à mercê desta cartografia
desligada de tudo
frágil
tão frágil que nem parece
o sinaleiro do dicionário sem autoria.
À vista desarmada
limitada pela miopia da distância
dir-se-ia da cordilheira
ser uma cortina de ilusões
o logradouro
onde se entretêm os falsos letrados.
Não é dessas cordilheiras
que se compõe a minha carne combustível:
os veios que rompem como arestas
balbuciam as dores excruciantes
como
as que mortificam
misantropos voluntários.
Os maus são uma minoria
– era da lavra de um espelho
onde se abastavam as desmedidas
e ninguém rimava com ilusão.
Os maus são a minoria
– sempre que os ventos
mugiam os tetos plúmbeos
e só os desatentos fugiam do Éden.
Os maus, minoria
– que uma centelha refulgente
em seu ocaso improvável
devolve os férteis frutos às mãos
e os desvalidos perdem a linhagem.
Os maus são uma minoria
– da tença de quem esgota a inverdade
e dela lança a sementeira
que estilhaça lugares-comuns delapidados
para um fogo de artifício ao menos extasiante.
A lagoa
só pode ser um lago pequeno
se o feminino for o santuário
da pequenez.
Se a lagoa
é um lago pequeno
os farroupilhas da nova língua
andam distraídos.