3.11.22

Menos que noite

É o superlativo embate

na onda que se agiganta

desde o magma lancinante:

nada se oferece em vão

e os mármores sublimam

uma opulência que é disfarce.

Nas mangas da incerteza

gravitam as constelações sem freio

e os pés que sentem a falta de chão

não se desordenam

não encaixam no caos aparente.

Deixem-nos à sua sorte

que eles 

sabem procurá-la.

#2574

Não somos corsários

e não damos resposta

a convocatórias de zaragata.

2.11.22

O jogo sem fim

Sexto sentido:

as covas da estrada

desamortecem os contratempos

em que se prevê o tempo por andar. 

 

Vão as janelas, os contemporâneos:

assustam as nuvens malvadas

que fazem coro com a tempestade,

sabem que forte é a sua têmpera

quando porfiam contra o mar levantado. 

O corte válido

é aquele que resgata os sentidos

que nunca chegam a ser velhos. 

Se o fuso horário não enganar

e o rio arrematar a nostalgia dos forasteiros

das barcas trôpegas desembarca

uma gesta de virtuosos,

aqueles que trazem no bolso

resposta afivelada para qualquer pergunta. 

 

O miradouro tira as teimas:

no lugarejo conhecido como mentira

desaprovam-se todas as palavras. 

Mal se desencanta um lugar assim

que toma as dúvidas por mentiras

e isenta de culpa as mentiras que o são,

legítimas.

#2573

Se os sonhos 

enfraquecem

as páginas restantes

tornam-se bastardas.

1.11.22

Sinalética

Do sol

até ao sul

do sono sanado

em vez do sal segado.

 

O sabre

sobre o santuário

sinaliza o sábio

servido de sentinela.

 

O sal servido

singra o sono sagaz

que no Sul

se sagra no solstício.

#2572

O mundo

está cheio

de varizes.

31.10.22

Fuso

O dia

que se adia

no adeus

sem deus. 

O deus 

que adia

o dia 

sem adeus.

A possibilidade da possibilidade

Ninguém desiste da luz diurna

enquanto pelo crepúsculo não for vencido. 

Jogam-se as peças todas

no tabuleiro onde se atravessam

as possibilidades infinitas. 

O conhecimento não chega à fala

com muitas delas.

O periscópio lança-se sobre a âncora distante

o despojamento titula a ousadia. 

Os braços desembaraçados

nivelam-se pela estatura do Olimpo. 

Num momento

as peças espalhadas pelo chão

disfarçam o inanimado:

querem que todos saibam

que são uma possibilidade

que se joga na aritmética das possibilidades

uma equação emancipada da órbita do criador

os números em vertiginosa roda-viva,

um deles à espera de lugar

na lotaria incandescente que afogueia o dia. 

No clandestino amplexo das possibilidades

uma sai do avesso da coorte

e contraria a maré a preceito. 

Antes que, 

do antebraço das possibilidades,

muitas sejam extintas

e o mapa delas se reduza a um ermo.

#2571

Desfalece 

na dança improvisada

no comodato da noite.

30.10.22

Injustiças indocumentadas (38)

Atrás da orelha

não é o lugar

para a pulga

estar.

#2570

Rasgo

de cima a baixo

a cicatriz imponderável

e fico à espera

do dilúvio.

29.10.22

#2569

Por que se chama

excelência

a quem fica a léguas de ser 

distintivo?

28.10.22

Condecoração

Meia-desfeita

a veia regida pelo lenticular céu

impõe-se no cesto impar

onde se afeiçoam 

entre desiguais

as fazendas que escondem a pele. 

É por desfeita e meia

que as palavras murais se inventariam 

antes que o ocaso se faça império

e a memória estiole na varanda servil. 

É por esta desfeita

que não se abraça a angústia:

ao sangue apetece ser a lava ingente

o salto sem lanço que atira 

por dentro do arnês

o remédio encorpado 

contra o músculo forte que desce a serrania. 

E assim

meio desfeito

entre os estilhaços dos derrotados

os braços assentam na litania avençada

antes que o tempo ultrapasse a viagem

em contramão. 

#2568

Que corram

contra a maré

os minutos atrevidos.

27.10.22

Corte a eito

No corte a eito

o excesso

o caudal que transborda

sem aceitar a margem como limite

o inadiável sufrágio da palavra sem algemas

a boca faminta das fomes sem nome

a convocatória do vulcão sem represas

num desbarato que se move

à velocidade 

sem medida. 

No corte a eito

onde espiga 

o deitar tudo a perder. 

#2567

Muito se teoriza

sobre a “bomba suja”

mas as únicas bombas limpas

que conheço

são as bombas de água.

26.10.22

Protesto contra os que protestam contra o Outono

O musgo

dava uma ideia

do Outono. 

Do mesmo modo,

os cogumelos que medravam

livres

nos baldios à mercê 

do sortilégio outonal.

 

Desta vez,

as estações 

não estavam do avesso. 

 

As pessoas

paradoxalmente 

andavam tristonhas

refogadas em lume brando

pela chuva instalada há dias consecutivos

e a humidade bafa que emprestava

um ameno quase exótico

aos dias arrastados. 

 

As pessoas

desprezam o bucolismo do Outono. 

 

Não apreciam

a metamorfose das folhas das árvores

escrevendo o seu próprio óbito

na decadência selada pelo acobreado mágico. 

Se pudessem

os desavindos com o Outono

saltavam a estação,

melhor dizendo, 

saltavam as duas estações 

que obrigam a abrigo e agasalho. 

 

Os que desaprovam o Outono

não sabem

que o Outono não é o espelho da decadência;

é um amplexo que se ajuramenta 

na renovação que encontra sedimento

na hibernação heurística. 

 

Nós também hibernamos

sem ser um Outono 

que nos desaprova. 

 

As pessoas

invejam o Outono

porque não têm mão

na metamorfose 

que é a promessa do Outono. 

#2566

A língua mordaz

vai aos estilhaços

e devolve o chão

aos cultores de ilusões.

Injustiças documentadas (37)

A lagosta é suada.

Pudera.

Com a água a ferver

que lagosta não acaba

suada?

25.10.22

Injustiças documentadas (36)

Devíamos 

ser contra

o ordenado

mínimo.

O anarquista resolvido

Um dia 

disse um poema

e cresci três centímetros. 

No dia 

a seguir

deixei que outro poema

se aninhasse no colo da manhã

e soube ser aprendiz

dos vultos selados no anonimato. 

Dias 

mais tarde

só me apetecia organizar

uma coletânea de poesia 

diversa, 

como diversa deve ser a poesia

enquanto mostruário da vida 

em todas as suas conceções.

Tornei-me 

ministro de uma coisa qualquer

que, 

todavia, 

não soube dizer qual,

num governo de um ministro só

(sem a importunação do chefe da hierarquia). 

O feitiço da poesia

alcançara o sortilégio

de tornar ministro 

um anarquista 

que pensava não ter remédio. 

#2565

Que lugar mendaz

este que respira

o medo da noite.

Injustiças documentadas (35)

Os gatos

não comem

as línguas.

24.10.22

A sátira não é um cisma

Sendo a sátira um jogo de luxo

em que ao tabuleiro não eram admitidos

pobres de espírito

desenganados estivessem

os que fossem em demanda de legendas. 

A sátira com legendas não é sátira

é a placa toponímica da indigência. 

Dando o ouro da sátira como garantia

fica sempre a garantia

de nas imediações vegetarem

ou os que desconfiam 

que a sátira disfarça uma linguagem cifrada

ou os que ficam aquém do sentido alegórico

das palavras em que se encerra a sátira. 

Nunca se pode contentar 

uns e outros.

#2564

O adubo

enxerta-se nas veias

e o sangue cresce,

lunar.

23.10.22

#2563

Dar um jeitinho,

ó povo

pequenino.

22.10.22

Injustiças indocumentadas (34)

Nem toda a mostarda

sobe ao nariz.

#2562

Salvo-conduto

cheio de habilitações

mente por nós

agora e na hora

da nossa hipocrisia.

21.10.22

Buenos Aires (promessa)

Ouvimos

em surdina

os verbos esquecidos. 

 

Lamentamos

em coro

as páginas desfalecidas. 

 

Avisamos

o passado

para não ser vulto. 

 

Arrefecemos

em segredo

a candeia do medo. 

 

Habitamos

de corpo inteiro

o sangue crepuscular. 

 

Admitimos

nas nossas mãos

as bocas impacientes. 

 

Resolvemos

sem aviso prévio

as rugas que adejam no ocaso. 

 

Desenhamos

em sílabas desabituadas

os labirintos que se antecipam. 

 

Fintamos

com a destreza do Maradona

as trovoadas impertinentes. 

 

Marcamos

nas costas do segredo

o lugar em Buenos Aires.

#2561

Os rostos 

encenam os véus

que deixam as almas

sem tradução.