Não pode
ser mau o tempo
em tempo de estiagem.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não se inaugure o salvo-conduto
que não há tanta renúncia a ditar
perante os degraus onde transitam
interiores consumições.
Absolvição
se houvesse culpa;
ou
mesmo sendo a culpa reconhecida
a prestação de contas delimita-se
ao território do ser.
Não cuidem da absolvição
se ela não foi impetrada.
Fujo dos braços generosos
dos juízes maneáveis
que se amesquinham nas brandas
de onde tem idioma
a complacência.
Fujo
pois não meti requerimento
para a complacência
e menos ainda pretendo
que me salvem dos piores infernos
por meu será o padecimento
se deles vier a ser inquilino.
Por tanto andar
nas bocas do mundo
caiu na má graça
dos cidadãos em geral.
Desde o dia feminino
uma glicínia oferece as pétalas
perfumam a cama de folhas outonais.
A curvatura do corpo
fermenta na rebeldia dos elementos
como se apenas contassem
as paisagens retidas no olhar imorredoiro.
E depois
deixamos em palavras
o nosso festim
os beijos que as bocas incensaram
os corpos em forma de dádiva
semântica de desligamento
uma fábrica com a mão-de-obra insubmissa.
Esta é a fratura exposta
sem gesso como remedeio:
exposta
por não se esconder de segredos
e neles se tornar o magma fundo
dos próprios segredos.
Não contamos com prazos de validade
nem somos candidatos à angústia.
Os medos contam como candeias:
à sua custa
superamos as cordilheiras remotas
soubermos ser
poetas antes do próprio poema.
É a fulgurante incisão dos desacontecimentos
como se fosse
o desapertar de uma camisa-de-forças
a lava intempestiva que fala com a boca do vulcão
ou a cordilheira que se agiganta no espaço do olhar:
em tudo
espectros demissionários
vultos às voltas com insónias
extintos, enfim,
com a água retirada de uma boca de incêndio,
as mordaças que calaram o passado
os fogos ateados à pele arrefecida
os palcos feitos de sobressaltos
os hotéis onde moravam pesadelos mordazes
todas as vendas que condenavam ao silêncio
e as cortinas onde desmaiava
o entendimento de tudo.
Agora
só contam os agoras retesados
num leilão sem agenda
a boca que precisa das palavras irrefreáveis
o teatro onde se jogam as farsas sem máscara
contra os mendazes que enchem a boca de verdade
(em mentiras elevadas ao quadrado)
os vocais embaixadores de causas avulsas
que escrevem leis de bronze em camas de xisto,
todavia,
em tinta sem ser impermeável
que se abate com as chuvas inaugurais.
Este é o desacontecimento
a desfiguração do mundo teimosamente ideal
reduzido à sua imensa fragilidade,
enfim,
ao reconhecimento da sua escondida fortaleza.
Sem aspas nem metáforas a arredondar as palavras
sem compensações por perdas que são pretextos
sem o exaurido lugar em que todos procuram
habitar um lugar
que não é seu.
Bebemos as mãos;
as mãos que tudo têm para contar
elas,
servidas na fábrica do entendimento
em que tudo se anestesia
em perguntas
que levantam as cores do céu.
Tu dizes:
dou-te o meu perfume
nos versos que as mãos desenham
no teu corpo.
Eu esperava.
Fingia dormir
enquanto as tuas mãos
faziam do meu corpo um mapa
e não podia fingir
não podia fingir
que a madrugada não fala ao ouvido da noite
nem as pétalas vertidas pelos teus dedos
eram como a cura
para o que precisasse de cura.
Lembrava
os novembros desmaiados,
como eram compensados
pelo teu sussurro que me cercava
como se fosse abraçado por uma ideia de ti
pois de ti
sabia de cor a cor que havia por saber
os tremeluzentes dedos ungindo as palavras
com o prazer irrenunciável;
o prazer de nós sabermos
à distância das mãos
e por elas falarmos
as estrofes de poemas apenas guardados
na memória.
Sem meias medidas
o naufrágio estrepitoso
açambarca o ocaso abreviado.
Não se compensam as falas arrependidas
autênticos bálsamos de farsas
todavia,
farsas legítimas;
pois se tudo não passa
de um teatro imenso
cobrindo todas as latitudes e longitudes
traduzindo os verbos venais
por semântica com direito a panteão.
O que dizer dos mares arrevesados
que industriam o naufrágio?
Que dizer dos náufragos
pois se ninguém se convoca
para o papel de vítima?
A indulgência atravessa os corpos
deita-os na rota das culpas sem autor
– ao contrário da cozinha de autor
esse terrível modismo
em que o autor se apega ao narcisismo.
A indulgência
é a pior traição
de que podemos ser avalistas;
não remedeia naufrágios
nem sumptuosas e, porém, risíveis
exibições de candidatos a arcebispos da idiotia
pese embora a idolatria
pese embora
as tentaculares redenções
que não passam de disfarces.
Que os vultos perenes
não descolonizem o horizonte.
Se a manhã não fosse infernalmente crepuscular
seríamos autómatos da indiferença
sitiados numa enseada sem saída
condenados a ruminar
entre as perdes corrompidas de um labirinto.
No fundo
estaríamos no fundo
sem sabermos;
que é a geografia própria
de quem foi abraçado
pela pérfida sereia
do naufrágio.
Risco as farsas
os mapas amarrotados
as vozes que contrariam o silêncio
e vou
pelas montanhas intrépidas
saltando os ribeiros que se agigantam
prometendo os dias sem crepúsculo
o miradouro a subir
desde as minhas mãos.
E não deixo o sono vingar
não quero ser
colónia de sonhos avulsos
simples matéria passiva à mercê dos sonhos
não deixo
que os atónitos passageiros da cidade
se amordacem na matéria invisível
ou que sejam apenas
peões
meros peões
numa aritmética acima das suas possibilidades
para se tornarem irrisórios números
condenados à decadência antes do tempo.
Arrisco
que não são profecias
estas aqui costuradas com a saliva da rebeldia
apenas
um desejo que se deseja
na primeira pessoa
do singular.
Pelo fundo da garrafa
o pináculo da audácia
numa cordilheira de juras.
Amedronta-se o medo:
nem vulcões irascíveis
lobrigam o rapto do sono
nem eles
fermentam o desassossego militante.
Amedrontem-se
as estrelas cadentes
os astronautas de galáxias amancebadas
os regentes garbosos:
pelo fundo da garrafa,
que é onde sobra a valentia pura,
os dias chegam ao peito
e são eles que se afeiçoam
à lava incandescente
imparável
que sobe à boca
contra as vendas amestradas
os emissários do silêncio
os procuradores da tirania arrevesada.
Até que o fundo da garrafa
traduza a inteireza
apenas a inteireza
que não capitula
às reticências oxigenadas
pelos apóstatas da liberdade
que não desaprendem de cuspir
no direito a ser
que é o ser dos outros.
Testamentário
da vontade dos deuses
vestia o oráculo sem flores a ornamentá-lo
e murmurava
no cio do dia
os versos saídos de sonhos
os versos
que outrora ficavam
reféns da desmemória.
O artesanal sentir
em vez
do malquisto penhor
ao irmos de visita
a mercados larvares.
[Dirás não ao ominoso capitalismo]
Os segredos
ouviam-se em sessões clandestinas
quando todos estavam a dormir
ou em lugares adivinhados pela ausência.
Os segredos
se viessem a ser contados
estariam por conta de catástrofes
por não irrisórias bombas crepusculares.
Os segredos
são facas afiadas sobre o futuro
penhores que absorvem o oxigénio
areias movediças só depois de lá entrados.
Se sumissem os segredos
o que seria das mentiras?
E se fosse declarada extinta a mentira
(que o seria
certamente
pelos maiores mitómanos)
deixariam os diligentes curadores da verdade
de falarem seu nome?
Logo em menino
queria ser arauto da moral.
Ninguém lhe explicou
que estava condenado a fracassar.
Os dedos correm em simultâneo
sobre as cortinas que escondem
a fúria que amaldiçoa estes lugares.
São eles que servem o antídoto
passeando generosamente pela pele
onde a desarrumação das almas
se agiganta.
Mãos quiméricas
em vez de armas que se terçam
na inviolável condição dos estultos
que são os perspicazes mastins do caos.
Hoje
as notícias mandaram boas novas
aos que continuam a acreditar
que o otimismo vai derrotar o pessimismo:
as mãos
foram agraciadas com uma comenda
muito mais do que honorífica
uma espécie de Nobel
à paz que não faz de conta.