Rabos de palha
ou não são rabos
ou não são feitos
de palha.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Dizem
que o mundo é cão
e quem o diz
ignora
que um mundo cão
não é a representação
que querem impor ao mundo.
Que deste mundo se diga
que não é flor que se cheire
também é seta sem alvo certo
pois as flores não são repúdio para narizes
e às piores flores
pode apenas cair em libelo
o serem inodoras.
Diga-se do mundo,
em ativação desse desprazer congénito
dessa verberação
que ferve no sangue que se não curva,
que é limítrofe
a uma câmara de horrores
ao olhar cansado
que arremata as consoadas desimperativas
aos fingimentos tornados código de conduta
às carripanas
que ultrapassam os limites da decência
ao usar, como palavra maldita,
decência
quando a decência é o desviar dos olhos ingentes
diga-se
deste mundo que é a nossa coutada
que é indigente.
Proteste-se
contra as dores excruciantes
que fazem aderir à pele
os farsantes que deixam conceitos vagos
os lídimos apanhadores de cereja moral
mais a incorrigível mania de açambarcarem vidas outras
o leme viscoso
a que deitam mãos os medíocres entre os medíocres
o tanto húmus adulterado de normalidade,
em cinco palavras,
o mundo virado do avesso,
tão do avesso que o estuque não adere
por deixar de ser possível saber
o que é o avesso e o seu avesso
(sem contar
que o avesso do avesso pode não ser
o contrário do que se intui
na antítese do avesso).
Mas não se diga
em desabono do mundo-exílio
que tem parecenças com um cão
ou com flores imaginativamente fétidas
que nem os cães nem as flores
merecem ser portadores da metáfora,
nem o mundo é idílico
para se disfarçar atrás
de cães venéreos e de flores vadias.
Coloquialmente
o vento fala com os dentes todos
mostra as unhas propositadamente por tratar
como se ensinasse
nos ensinasse
que a descivilização é que compensa.
Insistentemente
gatos com cio arrancam um fio à noite
lutam entre eles
masculinamente marcando coutadas
mesmo sabendo
que não será em vão a espera.
Propositadamente
afiam-se as facas
que a peleja pugna pelo sangue
desejavelmente o dos outros
que o próprio é alérgico a agulhas
que é o mesmo que dizer
só admite a batalha
se a der como vencida à partida
(se não, tomem-no como contumaz).
Idilicamente
o corpo enamora-se nos socalcos da noite
abraça-se a um seu congénere
cuidando de saber diferente do seu o género
e no feixe de luzes que se poetiza
sente o epílogo como campo de batalha
mas redime-se dos pesares
e proclama
oxalá as batalhas fossem com estas armas,
como estas armas,
e o sangue tivesse nome
noutra seiva.
[Resposta a injustiças indocumentadas (52)]
(Na volta
o diabo é deus
em pessoa.)
Para não deixar oxidar
a relativização de tudo:
há as mentiras boas
(dizem: piedosas)
e as boas mentiras
(dizem: periciais).
Estas estranhas mezinhas
que se entranham
comezinhas
como se fossem
madrinhas mazinhas
a quem a mão puxa
para o lúbrico rodopio
e nós
sentidos inocentes
todavia imunes às falinhas
de quem não se espera que mansas sejam
nem espezinhas
apenas proclamações gentias
que não se fingem
nem no mais fundo das entranhas
nós
os não valentes
nem valetes por conta
que espreitam
no protesto dos diminutivos
oh! manigante peste
pior
do que as mais temidas pestes.
Sai dessa pele
no teu papel de sobrinho da esperança.
Pele
em vez de osso maduro
nem que seja em impuro esbracejar
a indulgência dos almocreves
a certeza dos infantes.
Sai da pele
que careces de corpo em nome próprio
esteta infinito
poeta antecipado
mecenas postergado
procurador dos muros sem pousio
assim achado numa clareira onde houve fogo
matriz promitente no denodo dos dias.
A pele que trazes tatuada
é candidata a estilhaço
mourejando nos flancos de um mar adormecido
depois do tumultuoso dia que o arruinou.
Sai da pele;
precisas de outra
e só não sabes que costuras serão suas
e a sua gramática sortilégio.
Não é de uma pele servil
o amancebado distrate em falta,
nas convulsões adiadas
que espreitam pela escotilha de um luar furtivo
luar eflúvio
que rima
com o flúmen onde teu olhar repousa.
Tua será uma pele subjacente;
ou uma pele herança
fruída num futuro sem data
à espera
sem a espera das contingências
como se num adro vazio
todas as estrofes levitassem
à espera de vez
à espera da declaração de autonomia.
Sai dessa pele
e encontra a Primavera
que se insinua nos poros suados
torna-te o trono dessa Primavera
e escreve
num papel feito de rosas
o teu nome a ouro
o teu nome
de ouro.
O areal
era testemunha do mar
que lhe arrancava pedaços do rosto
a meio da acrimoniosa maré.
No vento
dir-se-ia cavalgarem,
escondidos,
vultos empenhados em contrariar a sorte.
A coligação entre o mar e o vento
castigava o lugar
dando-se ao Inverno
dando a seu nome toda a propriedade.
Não se diga
que não houve vítimas:
pescadores desavisados
sacerdotes desempossados
escrivães de matéria baça
uns quantos senhores de aristocrática mentira
outros que passaram rente ao esbulho.
Nenhum diga
que não foi sujeito de aviso
e que as estrelas caiadas se deitaram
num musgo inválido
mesmo a preceito,
mesmo.
Não se inaugure o salvo-conduto
que não há tanta renúncia a ditar
perante os degraus onde transitam
interiores consumições.
Absolvição
se houvesse culpa;
ou
mesmo sendo a culpa reconhecida
a prestação de contas delimita-se
ao território do ser.
Não cuidem da absolvição
se ela não foi impetrada.
Fujo dos braços generosos
dos juízes maneáveis
que se amesquinham nas brandas
de onde tem idioma
a complacência.
Fujo
pois não meti requerimento
para a complacência
e menos ainda pretendo
que me salvem dos piores infernos
por meu será o padecimento
se deles vier a ser inquilino.
Por tanto andar
nas bocas do mundo
caiu na má graça
dos cidadãos em geral.
Desde o dia feminino
uma glicínia oferece as pétalas
perfumam a cama de folhas outonais.
A curvatura do corpo
fermenta na rebeldia dos elementos
como se apenas contassem
as paisagens retidas no olhar imorredoiro.
E depois
deixamos em palavras
o nosso festim
os beijos que as bocas incensaram
os corpos em forma de dádiva
semântica de desligamento
uma fábrica com a mão-de-obra insubmissa.
Esta é a fratura exposta
sem gesso como remedeio:
exposta
por não se esconder de segredos
e neles se tornar o magma fundo
dos próprios segredos.
Não contamos com prazos de validade
nem somos candidatos à angústia.
Os medos contam como candeias:
à sua custa
superamos as cordilheiras remotas
soubermos ser
poetas antes do próprio poema.
É a fulgurante incisão dos desacontecimentos
como se fosse
o desapertar de uma camisa-de-forças
a lava intempestiva que fala com a boca do vulcão
ou a cordilheira que se agiganta no espaço do olhar:
em tudo
espectros demissionários
vultos às voltas com insónias
extintos, enfim,
com a água retirada de uma boca de incêndio,
as mordaças que calaram o passado
os fogos ateados à pele arrefecida
os palcos feitos de sobressaltos
os hotéis onde moravam pesadelos mordazes
todas as vendas que condenavam ao silêncio
e as cortinas onde desmaiava
o entendimento de tudo.
Agora
só contam os agoras retesados
num leilão sem agenda
a boca que precisa das palavras irrefreáveis
o teatro onde se jogam as farsas sem máscara
contra os mendazes que enchem a boca de verdade
(em mentiras elevadas ao quadrado)
os vocais embaixadores de causas avulsas
que escrevem leis de bronze em camas de xisto,
todavia,
em tinta sem ser impermeável
que se abate com as chuvas inaugurais.
Este é o desacontecimento
a desfiguração do mundo teimosamente ideal
reduzido à sua imensa fragilidade,
enfim,
ao reconhecimento da sua escondida fortaleza.
Sem aspas nem metáforas a arredondar as palavras
sem compensações por perdas que são pretextos
sem o exaurido lugar em que todos procuram
habitar um lugar
que não é seu.