20.12.22

Injustiças indocumentadas (54)

Rabos de palha

ou não são rabos

ou não são feitos

de palha.

#2625

Atira vinagre

para cima das feridas

mas não esperes 

cicatrizes.

19.12.22

O mundo não é um cão (ou uma flor exilada)

Dizem

que o mundo é cão

e quem o diz

ignora

que um mundo cão

não é a representação 

que querem impor ao mundo. 

Que deste mundo se diga

que não é flor que se cheire

também é seta sem alvo certo

pois as flores não são repúdio para narizes

e às piores flores

pode apenas cair em libelo

o serem inodoras. 

Diga-se do mundo,

em ativação desse desprazer congénito

dessa verberação 

que ferve no sangue que se não curva,

que é limítrofe 

a uma câmara de horrores

ao olhar cansado 

que arremata as consoadas desimperativas

aos fingimentos tornados código de conduta

às carripanas 

que ultrapassam os limites da decência

ao usar, como palavra maldita,

decência

quando a decência é o desviar dos olhos ingentes

diga-se

deste mundo que é a nossa coutada

que é indigente.

Proteste-se

contra as dores excruciantes 

que fazem aderir à pele

os farsantes que deixam conceitos vagos

os lídimos apanhadores de cereja moral

mais a incorrigível mania de açambarcarem vidas outras

o leme viscoso 

a que deitam mãos os medíocres entre os medíocres

o tanto húmus adulterado de normalidade,

em cinco palavras, 

o mundo virado do avesso,

tão do avesso que o estuque não adere

por deixar de ser possível saber

o que é o avesso e o seu avesso

 

(sem contar

que o avesso do avesso pode não ser

o contrário do que se intui 

na antítese do avesso).

 

Mas não se diga

em desabono do mundo-exílio

que tem parecenças com um cão

ou com flores imaginativamente fétidas

que nem os cães nem as flores

merecem ser portadores da metáfora,

nem o mundo é idílico

para se disfarçar atrás 

de cães venéreos e de flores vadias. 

#2624

A bula

embebe o espírito 

num bálsamo.

18.12.22

#2623

Muda a consoante:

emudece,

consoante muda. 

17.12.22

#2622

Este é o magistério

as confidências imarcescíveis

à prova de farsa

à prova de corruptelas. 

16.12.22

#2621

O tempo

mentiu

aos meteorologistas.

 

[Arqueologia de uma tempestade imprevista]

Não venham tarde os dirigentes do nada

Coloquialmente

o vento fala com os dentes todos

mostra as unhas propositadamente por tratar

como se ensinasse

nos ensinasse

que a descivilização é que compensa. 

 

Insistentemente

gatos com cio arrancam um fio à noite

lutam entre eles

masculinamente marcando coutadas

mesmo sabendo

que não será em vão a espera. 

 

Propositadamente

afiam-se as facas

que a peleja pugna pelo sangue

desejavelmente o dos outros

que o próprio é alérgico a agulhas

que é o mesmo que dizer

só admite a batalha

se a der como vencida à partida

(se não, tomem-no como contumaz). 

 

Idilicamente

o corpo enamora-se nos socalcos da noite

abraça-se a um seu congénere

cuidando de saber diferente do seu o género

e no feixe de luzes que se poetiza

sente o epílogo como campo de batalha

mas redime-se dos pesares

e proclama

oxalá as batalhas fossem com estas armas,

como estas armas,

e o sangue tivesse nome 

noutra seiva.

Injustiças indocumentadas (53)

[Resposta a injustiças indocumentadas (52)]

 

(Na volta

o diabo é deus 

em pessoa.)

#2620

Para não deixar oxidar 

a relativização de tudo:

há as mentiras boas

(dizem: piedosas)

e as boas mentiras

(dizem: periciais).

Injustiças indocumentadas (52)

Deve ser 

uma grande ajuda

vir o diabo e escolher.

15.12.22

Manifesto contra os diminutivos

Estas estranhas mezinhas

que se entranham 

comezinhas

como se fossem

madrinhas mazinhas

a quem a mão puxa

para o lúbrico rodopio

e nós

sentidos inocentes

todavia imunes às falinhas 

de quem não se espera que mansas sejam

nem espezinhas

apenas proclamações gentias

que não se fingem

nem no mais fundo das entranhas

nós

os não valentes

nem valetes por conta

que espreitam

no protesto dos diminutivos

oh! manigante peste

pior 

do que as mais temidas pestes.

#2619

Estas são as clepsidras

que abrandam os sonhos

as clepsidras

que amansam as águas.

14.12.22

Tribunal superior

Sai dessa pele

no teu papel de sobrinho da esperança.

Pele

em vez de osso maduro

nem que seja em impuro esbracejar

a indulgência dos almocreves

a certeza dos infantes. 

 

Sai da pele

que careces de corpo em nome próprio

esteta infinito

poeta antecipado

mecenas postergado

procurador dos muros sem pousio

assim achado numa clareira onde houve fogo

matriz promitente no denodo dos dias. 

A pele que trazes tatuada

é candidata a estilhaço

mourejando nos flancos de um mar adormecido

depois do tumultuoso dia que o arruinou. 

 

Sai da pele;

precisas de outra

e só não sabes que costuras serão suas

e a sua gramática sortilégio. 

 

Não é de uma pele servil

o amancebado distrate em falta,

nas convulsões adiadas 

que espreitam pela escotilha de um luar furtivo

luar eflúvio

que rima 

com o flúmen onde teu olhar repousa. 

 

Tua será uma pele subjacente;

ou uma pele herança

fruída num futuro sem data

à espera

sem a espera das contingências

como se num adro vazio

todas as estrofes levitassem

à espera de vez

à espera da declaração de autonomia. 

 

Sai dessa pele

e encontra a Primavera 

que se insinua nos poros suados

torna-te o trono dessa Primavera

e escreve

num papel feito de rosas 

o teu nome a ouro

o teu nome

de ouro.  

#2618

Uma vez

chamaram-me

erudito.

 

Não me pareceu

que fosse

elogio.

#2617

O fogo puído

em vez do frio,

a reparação do amanhã.

Injustiças indocumentadas (51)

Ninguém

viu orelhas

coladas às paredes.

13.12.22

Ocultação

O areal 

era testemunha do mar

que lhe arrancava pedaços do rosto

a meio da acrimoniosa maré. 

No vento

dir-se-ia cavalgarem, 

escondidos,

vultos empenhados em contrariar a sorte. 

A coligação entre o mar e o vento

castigava o lugar

dando-se ao Inverno

dando a seu nome toda a propriedade. 

 

Não se diga 

que não houve vítimas:

pescadores desavisados

sacerdotes desempossados

escrivães de matéria baça

uns quantos senhores de aristocrática mentira

outros que passaram rente ao esbulho.

Nenhum diga

que não foi sujeito de aviso

e que as estrelas caiadas se deitaram 

num musgo inválido

mesmo a preceito,

mesmo.

Injustiças indocumentadas (50)

Não pode 

ser mau o tempo

em tempo de estiagem.

#2616

O abotoado sorriso

a esmo

mesmo que seja Inverno.

12.12.22

Sem absolvição

Não se inaugure o salvo-conduto

que não há tanta renúncia a ditar

perante os degraus onde transitam

interiores consumições.

 

Absolvição

se houvesse culpa;

ou

mesmo sendo a culpa reconhecida

a prestação de contas delimita-se

ao território do ser.

Não cuidem da absolvição

se ela não foi impetrada. 

 

Fujo dos braços generosos

dos juízes maneáveis

que se amesquinham nas brandas

de onde tem idioma 

a complacência.

Fujo

pois não meti requerimento

para a complacência

e menos ainda pretendo

que me salvem dos piores infernos

por meu será o padecimento

se deles vier a ser inquilino.

#2615

Se ao menos

pudesse levar a nau

até ao epílogo da cordilheira.

11.12.22

Injustiças indocumentadas (49)

Por tanto andar

nas bocas do mundo

caiu na má graça

dos cidadãos em geral.

#2614

Abstração ou obstrução

sempre os soubemos

tese e antítese.

#2613

O nascer do guia.

A nascer

o guia. 

Matéria fundente

Desde o dia feminino

uma glicínia oferece as pétalas

perfumam a cama de folhas outonais. 

A curvatura do corpo

fermenta na rebeldia dos elementos

como se apenas contassem

as paisagens retidas no olhar imorredoiro. 

E depois

deixamos em palavras

o nosso festim

os beijos que as bocas incensaram

os corpos em forma de dádiva

semântica de desligamento

uma fábrica com a mão-de-obra insubmissa.

Esta é a fratura exposta

sem gesso como remedeio:

exposta

por não se esconder de segredos

e neles se tornar o magma fundo

dos próprios segredos. 

Não contamos com prazos de validade

nem somos candidatos à angústia. 

Os medos contam como candeias:

à sua custa

superamos as cordilheiras remotas

soubermos ser 

poetas antes do próprio poema. 

10.12.22

#2612

Em negociações

entre a apatia da manhã

e a extinção do entardecer.

9.12.22

Pivot

É a fulgurante incisão dos desacontecimentos

como se fosse 

o desapertar de uma camisa-de-forças

a lava intempestiva que fala com a boca do vulcão

ou a cordilheira que se agiganta no espaço do olhar:

em tudo 

espectros demissionários

vultos às voltas com insónias

extintos, enfim, 

com a água retirada de uma boca de incêndio,

as mordaças que calaram o passado

os fogos ateados à pele arrefecida

os palcos feitos de sobressaltos

os hotéis onde moravam pesadelos mordazes

todas as vendas que condenavam ao silêncio

e as cortinas onde desmaiava 

o entendimento de tudo. 

Agora

só contam os agoras retesados

num leilão sem agenda

a boca que precisa das palavras irrefreáveis

o teatro onde se jogam as farsas sem máscara

contra os mendazes que enchem a boca de verdade

(em mentiras elevadas ao quadrado)

os vocais embaixadores de causas avulsas

que escrevem leis de bronze em camas de xisto,

todavia,

em tinta sem ser impermeável

que se abate com as chuvas inaugurais. 

Este é o desacontecimento

a desfiguração do mundo teimosamente ideal

reduzido à sua imensa fragilidade,

enfim,

ao reconhecimento da sua escondida fortaleza. 

Sem aspas nem metáforas a arredondar as palavras

sem compensações por perdas que são pretextos

sem o exaurido lugar em que todos procuram

habitar um lugar 

que não é seu. 

Injustiças indocumentadas (48)

Antes 

uma carga d’água

do que

uma carga d’ombro. 

#2611

O dicionário

não trata das almas

e essa é uma culpa

que não é do dicionário.