29.12.22

#2633

O mosto que se mostra

não é a lava fundida

que fala por um vulcão. 

27.12.22

#2632

Não contes

com a posteridade

para narrar o passado.

26.12.22

#2631

A janela descida;

o sangue que areja.

25.12.22

As bocas carnudas

As bocas carnudas

as que falam por dentro do silêncio

sabem a maresia

ou uma redução de maresia

da maresia pagã

que acompanha o caudal. 

 

As bocas carnudas

estimam-se superiores

contra maldições

e divindades afins

na véspera do foral que autoriza 

o mais fino calibre da areia

em que se estilhaça a cidade. 

Injustiças indocumentadas (59)

Para andar

à pala

é preciso bater

a pala.

#2630

Não te pesarás

no dia de natal.

 

[Mandamento constante]

24.12.22

#2629

Dia de vistoria

dos petizes peticionários

pelo barbudo de vermelho

enfarpelado.

23.12.22

Manifesto contra os heróis

Sob tortura

o segredo

os vintes agora no selo

e a bandeira

ah! a bandeira

o peito às balas

se os heróis forem admitidos

a concurso

 

(não existe a certeza

sobre a pendência).

 

Sob tortura:

que os heróis

candidatam-se à imortalidade

lá,

de onde não conseguem sentir

o sabor da imortalidade 

sem chão.

 

Quanto ao demais

um nome numa rua esconsa

ou numa nota de rodapé

em obscura dissertação de História

não são a paga devida

pelo mito mal disfarçado.

Injustiças indocumentadas (58)

Agora 

que a míngua de água

teve epílogo

já são autorizadas

as barbas de molho.

#2628

Dali

Dali saiu

para o panteão.

Injustiças indocumentadas (57)

Palavra de desonra 

(ode à mentira).

22.12.22

Tabelado

Como areia 

que se torna aresta 

no olhar,

o altar

que amanhã se atesta

como ceia. 

 

Como fugitivo

que não resiste 

à decadência,

a dissidência

que não desiste

como imperativo. 

 

Como angústia

que adia o pressentimento

no oráculo,

o ósculo

que rejeita o sofrimento

e dita a simpatia. 

 

Como fortaleza

que treina os nervos de aço

no cenário,

o bestiário

que germina o embaraço

e desfaz a fraqueza. 

Injustiças indocumentadas (56)

Perder 

o norte

e encontrar 

o sul.

#2627

Arregaço o frio

em novelos 

de cinzento nevoeiro

e digo à manhã

que não me derrota o torpor.

21.12.22

Como torcer o pescoço ao idioma sem dar conta do perjúrio

Escuto as palavras espancadas

como gritam no eivo da entorse

e vejo

como indiferentes e ínscios

prosseguem os fautores da tortura.

 

E escuto as palavras espancadas

e às vezes

sinto-me acossado

por não sermos credores

do idioma que tornamos contrafação.

Injustiças indocumentadas (55)

Se o Inverno é general

qual é a patente do Verão?

#2626

Não olhes 

para o que eu burguesio

olha 

para o que eu falo.

20.12.22

Obelisco

Os gólgotas exercem o seu pesar

antes que balanças sem fiel

cobrem um preço exacerbado. 

São desta igualha

os mercados que não recebem leis

e quem neles afocinhar

não descuide a atalaia permanente. 

Antes fosse assim a tinta

mister que não combina com a modernidade

que é algo que nunca deixa de existir

quando o tempo se dá a conhecer. 

Outrora

os homens

(que se notabilizavam enquanto cavalheiros)

usavam chapéu

gravata exceto ao deitar

sapatos devidamente ensebados

fato de três peças

ceroulas invernais 

(que fazia um frio de rachar)

e só davam azo à luxúria

em visitas a prostíbulos licenciosos

(como se esse fosse o momento 

para terem autonomia

das algemas que os aprisionavam

dentro de um estar meão). 

Agora

só o Espada é que se mantém 

cavalheiro

fiel aos espelhos arcanos

que teimam em verter sobre o presente

a mantilha de um passado

que deixou de ter validade. 

Às vezes

nas poucas vezes

que me desensimesmo 

e pratico 

a modalidade olímpica do arrependimento

sinto-me refém de duas metades iguais:

uma de mim diz que devia ser conservador

e a outra moderadamente progressista 

– socialista, em tributo ao modismo

que já mexicanizou este lugar. 

Teimosamente impuro,

continuo um contínuo ludita

de extravagantes prescrições do mundo.

Sem remédio

e de alma que, 

de tanto errante,

já perdeu as estribeiras da salvação.

Injustiças indocumentadas (54)

Rabos de palha

ou não são rabos

ou não são feitos

de palha.

#2625

Atira vinagre

para cima das feridas

mas não esperes 

cicatrizes.

19.12.22

O mundo não é um cão (ou uma flor exilada)

Dizem

que o mundo é cão

e quem o diz

ignora

que um mundo cão

não é a representação 

que querem impor ao mundo. 

Que deste mundo se diga

que não é flor que se cheire

também é seta sem alvo certo

pois as flores não são repúdio para narizes

e às piores flores

pode apenas cair em libelo

o serem inodoras. 

Diga-se do mundo,

em ativação desse desprazer congénito

dessa verberação 

que ferve no sangue que se não curva,

que é limítrofe 

a uma câmara de horrores

ao olhar cansado 

que arremata as consoadas desimperativas

aos fingimentos tornados código de conduta

às carripanas 

que ultrapassam os limites da decência

ao usar, como palavra maldita,

decência

quando a decência é o desviar dos olhos ingentes

diga-se

deste mundo que é a nossa coutada

que é indigente.

Proteste-se

contra as dores excruciantes 

que fazem aderir à pele

os farsantes que deixam conceitos vagos

os lídimos apanhadores de cereja moral

mais a incorrigível mania de açambarcarem vidas outras

o leme viscoso 

a que deitam mãos os medíocres entre os medíocres

o tanto húmus adulterado de normalidade,

em cinco palavras, 

o mundo virado do avesso,

tão do avesso que o estuque não adere

por deixar de ser possível saber

o que é o avesso e o seu avesso

 

(sem contar

que o avesso do avesso pode não ser

o contrário do que se intui 

na antítese do avesso).

 

Mas não se diga

em desabono do mundo-exílio

que tem parecenças com um cão

ou com flores imaginativamente fétidas

que nem os cães nem as flores

merecem ser portadores da metáfora,

nem o mundo é idílico

para se disfarçar atrás 

de cães venéreos e de flores vadias. 

#2624

A bula

embebe o espírito 

num bálsamo.

18.12.22

#2623

Muda a consoante:

emudece,

consoante muda. 

17.12.22

#2622

Este é o magistério

as confidências imarcescíveis

à prova de farsa

à prova de corruptelas. 

16.12.22

#2621

O tempo

mentiu

aos meteorologistas.

 

[Arqueologia de uma tempestade imprevista]

Não venham tarde os dirigentes do nada

Coloquialmente

o vento fala com os dentes todos

mostra as unhas propositadamente por tratar

como se ensinasse

nos ensinasse

que a descivilização é que compensa. 

 

Insistentemente

gatos com cio arrancam um fio à noite

lutam entre eles

masculinamente marcando coutadas

mesmo sabendo

que não será em vão a espera. 

 

Propositadamente

afiam-se as facas

que a peleja pugna pelo sangue

desejavelmente o dos outros

que o próprio é alérgico a agulhas

que é o mesmo que dizer

só admite a batalha

se a der como vencida à partida

(se não, tomem-no como contumaz). 

 

Idilicamente

o corpo enamora-se nos socalcos da noite

abraça-se a um seu congénere

cuidando de saber diferente do seu o género

e no feixe de luzes que se poetiza

sente o epílogo como campo de batalha

mas redime-se dos pesares

e proclama

oxalá as batalhas fossem com estas armas,

como estas armas,

e o sangue tivesse nome 

noutra seiva.

Injustiças indocumentadas (53)

[Resposta a injustiças indocumentadas (52)]

 

(Na volta

o diabo é deus 

em pessoa.)

#2620

Para não deixar oxidar 

a relativização de tudo:

há as mentiras boas

(dizem: piedosas)

e as boas mentiras

(dizem: periciais).

Injustiças indocumentadas (52)

Deve ser 

uma grande ajuda

vir o diabo e escolher.

15.12.22

Manifesto contra os diminutivos

Estas estranhas mezinhas

que se entranham 

comezinhas

como se fossem

madrinhas mazinhas

a quem a mão puxa

para o lúbrico rodopio

e nós

sentidos inocentes

todavia imunes às falinhas 

de quem não se espera que mansas sejam

nem espezinhas

apenas proclamações gentias

que não se fingem

nem no mais fundo das entranhas

nós

os não valentes

nem valetes por conta

que espreitam

no protesto dos diminutivos

oh! manigante peste

pior 

do que as mais temidas pestes.