24.1.23

#2661

Dou à falsa partida

o benefício da dúvida;

a indulgência converge

na vez do logro.

23.1.23

A seita e a coutada

As bocas famintas

bebem na ira da matilha. 

Não conhecem o perdão. 

Avançam,

destemidas,

no concurso da intransigência territorial. 

No territorial 

disfarçado de ideias

na parlamentar farsa da transigência. 

Na hora H

arregimentam o arsenal 

abocanham os tísicos pleiteantes 

na irredutível cerca de onde não têm fuga. 

Sem direito a contraditório

sem direito a julgamento

sem direito

a não ser a (sua) arbitrária lei de seita. 

A matilha

ostenta nas suas bocas saciadas

o sangue ainda morno das vítimas;

os mastins 

passeiam as barbas tingidas pelo sangue exaurido

dos que ousaram habitar outro mental lugar. 

Passeiam toda esta ostentação

na pose de triunfais algozes

ufanos no cercear da dissidência

funcionários diligentes da perdurável doutrina 

com simultânea exibição

para memória futura 

e aviso

aos candidatos dissidentes

do desfado que os espera

se insistirem ser

o que deles 

não se espera 

que sejam. 

#2660

Pior do que balas,

as palavras mortíferas.

22.1.23

O inventor

“(…) o vinco das tuas calças

está cheio de frio

é há quatro mil pessoas interessadas

nisso. (…)”

 

Mário de Cesariny, “De profundis amamus”.

 

Há poetas 

visionários

poetas que pressentiram

com cinquenta anos de avanço

as redes sociais.  

#2659

A meada

dissolvia-se entre os dedos

como se o norte

ficasse ausente. 

21.1.23

#2658

Das espadas,

a entorse.

O logro das palavras,

silenciadas.

20.1.23

Chessboard

The good, 

the bad 

and the ugly

or

the god, 

the bed 

and the truly.

#2657

Devia haver

um dever geral

de elogio

 

(só para desenjoar).

19.1.23

Beco com saída

O exílio que se esportula

a meias com o azedo da angústia

arremete contra o caudal iracundo

na floresta onde se arrumam os sonhos. 

 

Logro a sombra de uma tenaz

como se a uma figura mítica pertencesse

e aviso os deuses de plantão

que vendo dispendiosa a derrota que não intuo. 

 

Manda a tirania dos contratempos

o desmazelo dos fantasmas alinhados

contra os vidros baços que travam o olhar

em labirintos sem o medo metódico. 

 

O corpo suado não responde à lucidez

os versos são a cacofonia não reprovável

e a cada sismo da manhã

antepõe-se a harpa resgatada às cicatrizes. 

#2656

A pérgula 

disfarça a manhã

o medo arrefecido

na geada temporã.

18.1.23

Injustiças indocumentadas (62)

Por dever irrecusável de pertença

devia ser proibido

assentar zeros

à esquerda.

Injustiças indocumentadas (61)

A banha da cobra

está à venda

nas grandes superfícies?

#2655

O armador dos sonhos

meteu greve

e os pesadelos

tiveram rédea solta.

A nudez como cicatriz

Era como uma toga

só para disfarçar a nudez

a vergonha da nudez;

 

não sabia ao certo

porque a vergonha

rimava com nudez. 

 

Do palácio dos corpos alistados

sobrava a moda;

 

isto é

 

o devastador panorama 

das fazendas que alijam a vergonha

que seria 

a procissão dos corpos nus. 

 

E eu não sei

 

ainda

ao certo

 

se é por pudicícia

ou apenas 

por um dogma de estética

o agradecimento a estilistas e não estilistas

por travarem

a procissão de corpos nus

a devastadora imagem 

de um campo de terrores. 

17.1.23

Terra queimada

As costas das mãos

passeiam-se pelas vírgulas,

depostas em lugares ermos

como se fossem

as árvores distantes que ensinam

a gramática da vida

um torpedo desarmado

vocação diligente em ábacos erodidos.

Alguém diz

de uma paisagem em passagem

no disforme lugar do comboio

à janela:

esta 

é a terra queimada

o torpor que desarma a vontade

uma tela áspera

onde os verbos se trocam por luares

e as velhas não insistem na viuvez.

Mas esta 

não é 

afinal

a terra queimada:

é um gotejar insistente à boca da manhã

promessa sem notário ou procurador

a aldeia com cheiro a lareira

ou o tojo cansado de tanta geada

inerte

a pedir

uma terra alagadiça.

#2654

Vende-se tudo:

a dignidade

o silêncio

o futuro

os sonhos;

e empenha-se

a alma.

16.1.23

O meu latim

Nesta dança improvável

o peito fecundo verso

atesta como é viável

o lugar incontroverso. 

 

A palavra imarcescível

longe do paradeiro imerso

diz a pertença admirável

derrotado o sentido adverso. 

 

Não é a pele durável

em que teimoso me terço

o mapa todavia contestável;

 

se este é o idioma submerso

o logro do chacal perverso

eu sou tudo e o seu inverso. 

#2653

Ufanos

os titulares dos sofismas

desfilam

como se a avenida fosse

sua passerelle de glória.

15.1.23

#2652

Há a nobreza 

e o povo

mas é no povo

que está a nobreza.

 

[Desética socialista]

#2651

As mãos 

mergulhadas na terra

ascendem fartas

ateadas pelo húmus.

14.1.23

#2650

Se a vida anda à roda 

é porque

viva é a roda.

13.1.23

#2649

Empalidecido,

o medo como um muro

que se abatera sobre si,

não sabia em que verbo

seria amanhã.

12.1.23

Combate

Em vez do patriarca

as tágides que seguiam os eflúvios

cantantes

como cantantes são as sombras madrigais

e o provérbio sem casta.

Se não fosse pela diplomacia

os chapéus persignavam-se

ainda rombos

e a contundente mentira abraçava-se

a um disfarce.

Alguém dizia:

o disfarce rima com farsa

e ninguém objetou

que a rima acertou ao lado

errou por milímetros.

Todos distraídos

a contar os gramas que pesam uma lua

sentados em cima das suas almas

e estas impassíveis:

uma alma é à prova de bala

por mais que as balas se sublevem

e tinjam

a tinta imperecível

a pele açambarcada ao labirinto do mundo.

Agora

já não havia patriarcas.

Os sinos tocaram a rebate.

#2648

Os arsenais

(lamentavelmente)

não são uma espécie

em extinção.

11.1.23

Participação

Saber-me

sozinho

ainda que 

a rua

esteja atapetada

por uma multidão;

 

Saber-me

tutor de um sonho

ainda que

o sonho

não tenha mecenas.

#2647

Habitas 

aereamente

nos ramos das árvores

no exercício 

do teu constitucional direito

a seres sonho.

10.1.23

Bisturi

Um arsenal inteiro

a barragem da brandura ao fundo

como se estivessem entretidos

a jogar batalha naval;

e apenas um sonho

a estação preferida 

de tantos quantos

tropeçam no dia 

que vem depois 

do dia. 

Antes houvesse dedos contemplativos

um cálice de palavras doces

os frutos a contar do minuto três

ou um filme de trás para a frente;

não que fosse diligência maior

ser o oráculo que vem antes do futuro

 

(um futuro desses deixa de ser futuro):

 

o que estava em causa

era ser participante do futuro

de um futuro

não era esquisito na escolha. 

Para isso

é preciso esperar

que o futuro seja apeadeiro

o que

a acontecer

se esgota 

no seu próprio pressupor. 

Injustiças indocumentadas (60)

A culpa

não morre solteira;

é consorte

dessa pesada insubstância

que é a consciência.

#2646

A obliteração das sílabas

é o maior afluente

da dívida pública.

9.1.23

#2645

Encomenda

a comenda

pode ser que sirva

de emenda.