Nada é impossível
Nada
é impossível.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Arregaço as vírgulas
antes que o mel cristalize
e as sílabas fiquem presas na língua.
O vinho arroteia a verve;
aos vermes que nidificam em barda
dizemos a indiferença axial
(pode ser que deixem de ser fantasmas).
Oxalá as penitências não doessem
como doem as indulgências tiradas a ferro.
O amanhã viria
nesse caso
tingido pelas palavras amansadas
e todos os grotescos lugares seriam banidos
como banidos seriam
os bandidos resistentes.
Passo o corpo amordaçado
a mortalha que desce sobre o silêncio
sem armas.
Ao fundo
a gruta evoca o medo.
O medo de quem não tem medo.
As cortinas embainhadas fogem do dia
escutam a voz gutural dos ontens desarmados.
Às voltas com as páginas amarrotadas
junto os dedos
como se fossem espadas enredadas
e dou ao dia o poema sem nome
avivando as centelhas
que derrotam as sombras.
Not the knot:
knot the not
wait
for knock-out.
Un-note the knot,
unknot the note
knock-out
the wait.
Do caminho raso
as métricas possíveis
afogadas num aguaceiro
desviam as trovoadas triviais;
as copas das árvores parecem sorvetes
mas não se armam os alçapões
sem os arneses por perto.
De caminho
o avesso amoeda-se na pele
sua tatuagem impura que se subleva
na parte de trás da catedral
enquanto os rapazotes sobem aos pedestais
em marés de estultícia.
Caminho
nas oitenta e oito teclas do piano
desenho as notas no sopé do vulcão
e deixo o peito recolher os frutos ateados
sem sair do caudal de onde sorvo as lágrimas
sem pesar na carne as legendas cegas
e à porta sentar os medos pueris.
A caminho da alvorada
levanto a âncora que arrastou o corpo
sitiado por tribunais estéreis
amarrado ao represado manto de água
como se ele próprio, o corpo,
anuísse nas comportas que largam o degelo
mudando a consoante muda
consoante o que muda no jusante.
Dizias
com as palavras ditas em dourado,
as sílabas armadas com destreza,
que eras capaz de secar a maré
– e eu queria
que todas as marés fossem
apenas
praia-mar
para não molhares mais
do que os dedos dos pés.
Sísifo
não sabia
onde se ia meter.
Pior seria
se a rocha corresse
montanha abaixo
atrás de Sísifo.
Dele se diga
com a devida propriedade
que merece a linhagem de astuto.
Se não houvesse luar
as páginas
reféns da penumbra
seriam um luto sem fim.
Se não houvesse sombras
e a noite
fosse um espelho sem fundo
o luar seria mecenas do dia.
Às palavras esquecidas no futuro.
À boca que ateia a combustão das almas.
Ao Inverno que transporta a candeia
que trespassa o olhar.
Ao suor das mãos que falam,
caindo das árvores que ciciam na penumbra.
Ao ocaso, que é uma jura de futuro.
Houvesse um trunfo na manga;
mas estava calor
e não tinha mangas apostadas
e do meio de tudo
encenei o palco ruidoso
onde o silêncio subia à cena.
Houvesse um teatro por perto;
mas era um ermo
o lugar em que coabitava com o luar
e a meio da solidão
agarrei as estrelas que passavam na noite
se a noite não fosse
o lugar onde o medo se prefacia.
Houvesse um astrolábio;
mas medieval não era o tempo atolado
e a meio de um nada
arranquei uma confissão à divindade de atalaia
e dela soube que de oráculos sabe nada
de si se desmentindo
na qualidade em que se apresentava.
Houvesse um remédio à distância de uma mão;
mas a cidade era a toponímia das ausências
e por demissão dos espíritos
ficavam as maleitas à mercê da sua sorte.
Houvesse um navio sem escolta,
seus sem domador os mares atravessados;
mas as marés não estavam de modas
e no meio de mim
arranquei à força
a ilha que se instalara.
O tornado
respira os poros
que se distraem ao entardecer.
Os ventos
desaprovam a sirene calada
e conspiram no avesso do tempo.
Armada a contenda
os coreógrafos pedem lema
em braços suados de tanto tentarem.
Depois da fronteira
um idioma que arranha os ouvidos
em gente que parece sósia de nós.
Na margem da manhã
o ciciar duradouro de um porta-voz
despejando ouro em cima dos sonhos.
Certas
as esquadrias que enformam os corpos
um desfile sincero de estética
e se dizem que não é a estética alimento
por que há tantos mirones
dela dependentes como se uma religião fosse?
É desta vulcânica matéria que somos
um estrado feito de cortinas
e sobre o rosto,
incensado um véu que convoca diâmetro
o previsível testamento que não espera pelo tempo
tombando sobre as margens do amanhã
secretamente, em silêncio,
bolinando contra o vento audaz.
O aval não vem às mãos
antes que a curadoria assine o livre solene
e os mastins sejam açambarcados
no vau onde fundas se estilhaçam as palavras.
Concebemos os altares em lugares ermos
e é de propósito:
nunca percebi
como pode uma santidade ter por nome
aflição.
De mim
o xisto que abraça a alma
o rio que esconde a fundura
e o caudal voraz
que traz de arrasto
os dias vindouros.
Em corpos mutantes
cresce a lua apátrida.
Os rostos escondidos
ocultam nomes.
Se um mosteiro
pudesse ser sede das intenções
e as pedras ancilares fossem depósito
das verdades sem sindicância
todas as palavras valiam por igual
e os corpos
mesmo sendo mutantes
seriam tatuagens uns dos outros.
Nessa altura
enfim
faria sentido falar
de comunidade.
Em vez da condenação
pontes
que atravessem as diferenças;
em vez de cegueira
centelhas
que arrepiem o olhar.