Longe dos telhados de vidro
a folha caduca
enrugada e seca
esconde um legado.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Penso rápido
no penso rápido
que o rápido dispenso
no rápido dá que pensar.
Um bocado de carvão
atirado à patibular infância:
dizemos sempre
que ficou tanto por dizer
e ninguém se acusa
na cacofonia insurgente,
o chilrear doentio de falas sobrepostas.
Um bocado
talvez
de silêncio:
a bonomia que se congraça
nas entrelinhas da ausência:
ao silêncio,
a sua suserania
que de palavras banais
estamos cheios.
Perguntaram
o que queria ser
quando tivesse idade
para uma profissão:
alimentador de sonhos,
respondeu.
Seguimos pelas avenidas vãs
aquelas onde a poeira sente-se nas veias
e as palavras desassossegam os anjos.
Vamos às avenidas malsãs
aquelas onde a poesia é insulto
e a fala se polui com deuses.
Saímos das avenidas repletas
aquelas em que somos corpos estranhos
e ao exílio pedimos franquia.
Se os corpos fossem mapas
seríamos atlas sedentos
danças sem paradeiro
um luar à espera de vez.
[Sigur Rós, “Fjögur Piano]
A pedra que repousa no miradouro
dita a sentença boreal
a armadura desfeita
que revela a nudez,
simplicidade sem cilada
o mosto inteiro
que fala na vez da voz gongórica
o rosto incindível
que não tergiversa diante dos lobos
matéria fundida de ouro e lágrimas
os versos como âncora certificada
no improvável vinho servido em xisto.
Os socalcos descem às mãos
e das estrofes empunhadas sobra o mel
o dorso desimpedido
contra os embaraços de mastins por aí,
avulsos e estultos.
Não capitularemos
– diz-se em coro
desembainhando a alvura
que caia a pele, os ossos, o corpo inteiro,
a garantia perene das coisas
na sua verosimilhança insuspeita.
Somos os esteios que não precisam de esteios
e ao espelho não contamos gramas de pudor
nem perfilhamos sermões não encomendados.
O indulto
abate-se sobre o dia finito
a jeito da indigência,
o princípio geral de tudo
a confusão entre arbustos baldios
e folhagem extravagante da selva.
Dizia-se:
é por estas desconclusões
que se arremata a desconfiança:
uns olham para os outros
de pé atrás
(caso, único,
que os que partem atrás
estão em vantagem)
para serem retribuídos
com a mesma indiferença.
Ao menos,
não há assimetrias
no escrutínio de um mínimo denominador comum.
O indulto
diz mais de quem perdoa
do que do perdão
(o perdoado é o que menos interessava).
Esta é a terra de ninguém
em que o indultado desconfia da piedade
e o indultor pratica generosidade
de que é usufrutuário.
Os bons espíritos
de tanta bondade que a si convocam
nunca se descomprometeram dos padrões válidos:
a bondade é um reflexivo ato,
no inconfessável pressentimento
das indulgências provadas
por mercê da bondade.
Dava o corpo ao manifesto
sem ser importar se o manifesto
estava interessado
no corpo dado.
Corpos
como mares,
imensos,
e imensas são as marés
que derruem a sua sede.
Ficam à mercê das mãos
que os esculpem
sem remorsos
enquanto a tabuada do tempo
se pressente
imóvel
como se a dança fosse uma gramática
e a coreografia
a sua tradução.
Se os pesares
pesarem no vento cortante
e formos o chão em que se deitam
não se espere
uma centelha do dia consecutivo
a diligência sobre nós como dádiva
que nada é perene
e os danos de que somos culpados
interrompem o mel que cicia de longe.
Um canto do corpo
a pele arrancada ao sono
pauta que se adia no luar fundente
e um sinal
o travo doce de uma boca
à espera de um lugar
do vulcão que não se demora.
Em luz
insinuada
entre sombras
o exorcismo
o futuro devolvido
ao lugar distante.
A matéria
diadema embaciado
dia constante nas veias
ocaso
juro sem regra
a jura contumaz.
O rio
dobrado sobre si
sol hirsuto do estio
o açúcar nas uvas
o vinho promitente
à sombra do descanso
as mãos vincadas
suadas
à espera do tempo.
O xisto
ao acaso atapetando o chão
orvalho nascente
e o rio
profundamente longe
contagiando
o perfume das uvas
o som do sangue
o troar do anoitecer
vago
o murmurar vago
e sobrante.
A luz
abraçada ao dia
dando ramos às árvores
tirando frutos às bocas
as bocas que se saciam
umas às outras
arrancam às raízes fundas
o mosto primacial
o magma centrípeto.
A matéria combustível
agarra-se à pele.
Ontem era tatuagem.
Hoje
que se fala apenas de babugem
os arroios vão cheios de água
que houve chuva fora do tempo
talvez um rio de lágrimas,
a descondição dos melancólicos.
Alguém diz:
é preciso partir pedra,
naquela irritante mania
de usar expressões idiomáticas.
(Como se partir pedra
desse para jurar um caminho
ou assegurar um destino
e uma pedreira fosse o embaraço inicial
e todos os que não capitulam
tivessem de vestir o fato de macaco
– outra expressão idiomática
sem paradeiro –
e, na posse de uma humilde picareta,
pacientemente desatasse
a partir a pedra-obstáculo.)
Alguém diz
a maré não está a preceito
e a matéria combustível oferece-se
ao arrefecimento,
a preguiça como aval
que a persistência não é uma arte que se domina.
Os olhos embotados desistem do dia.
Ficam as rugas em salmoura
à espera de serem convertidas
na pele que se dá ao tempo restante.
Por dentro
escondido
o vulcão resiste à hibernação.
As convulsões interiores são como revoluções
espasmos atirando as partes contraditórias
umas contra as outras
como se por dentro do houvesse labirintos
por onde se esgueira a lava
que teimosamente resiste à anestesia forçada.
Por dentro
a resistência dos elementos
ateia a força bruta das páginas arrancadas
ao torpor.
Contra a letargia do futuro
contra as expressões idiomáticas
e os espasmos dos lugares-comuns
a favor dos versos que se sublevam
contra a tirania do que
(dizem ser)
irremediável.
Até prova em contrário,
avivada na carne-viva que deixou de ser,
não estou convencido que a finitude
é o verbo forte.
Dizem
que uma bruma tardia
se apoderou do olhar
e ele, embaciado,
passou a amansar a fala
tartamudeada.
Dizem
que uma maré fugidia
dissolveu o mal-estar
e ele, embuçado,
perdeu a linhagem de bala
torpedeada.
Dizem
que uma cara gentia
se contaminou ao destinar
e ele, desembaraçado,
extinguiu a mala
desarrumada.
O cais é a morada de contentores.
Parecem casas empilhadas
sem critério
como o mesmo acaso
com que cruzam os mares todos
de porto em porto
conhecendo os climas todos
os idiomas de que o mundo é feito
levando mercadorias
fazendo as pontes marítimas
entre remotos lugares.
No cais,
uma cidade de contentores.
Quantas voltas as mundo estão às costas
de todos os contentores amontoados?