1.4.23

#2730

Longe dos telhados de vidro

a folha caduca

enrugada e seca

esconde um legado.

Injustiças indocumentadas (81)

O toque de Midas

é erógeno?

31.3.23

#2729

Espreitei

por cima do dia

e as mãos falaram

o poema destinado.

30.3.23

Injustiças indocumentadas (80)

Penso rápido

no penso rápido

que o rápido dispenso

no rápido dá que pensar.

Providência silenciosa

Um bocado de carvão 

atirado à patibular infância:

dizemos sempre

que ficou tanto por dizer

e ninguém se acusa 

na cacofonia insurgente,

o chilrear doentio de falas sobrepostas.

 

Um bocado

talvez

de silêncio:

 

a bonomia que se congraça

nas entrelinhas da ausência:

ao silêncio,

a sua suserania

que de palavras banais 

estamos cheios.

#2728

Perguntaram

o que queria ser

quando tivesse idade 

para uma profissão:

alimentador de sonhos,

respondeu.

29.3.23

Dieta

Seguimos pelas avenidas vãs

aquelas onde a poeira sente-se nas veias

e as palavras desassossegam os anjos.

 

Vamos às avenidas malsãs

aquelas onde a poesia é insulto

e a fala se polui com deuses.

 

Saímos das avenidas repletas

aquelas em que somos corpos estranhos

e ao exílio pedimos franquia.

#2727

Recusem a desambição

de meter açaimes nas palavras

para não serem vítimas

do silêncio.

28.3.23

Atlas

Se os corpos fossem mapas

seríamos atlas sedentos

danças sem paradeiro 

um luar à espera de vez. 

 

[Sigur Rós, “Fjögur Piano]

Por inteiro

A pedra que repousa no miradouro

dita a sentença boreal

a armadura desfeita

que revela a nudez,

simplicidade sem cilada

o mosto inteiro 

que fala na vez da voz gongórica

o rosto incindível

que não tergiversa diante dos lobos

matéria fundida de ouro e lágrimas

os versos como âncora certificada

no improvável vinho servido em xisto.

Os socalcos descem às mãos

e das estrofes empunhadas sobra o mel

o dorso desimpedido

contra os embaraços de mastins por aí,

avulsos e estultos.

Não capitularemos

– diz-se em coro

desembainhando a alvura 

que caia a pele, os ossos, o corpo inteiro,

a garantia perene das coisas

na sua verosimilhança insuspeita.

Somos os esteios que não precisam de esteios

e ao espelho não contamos gramas de pudor

nem perfilhamos sermões não encomendados.

#2726

O fio

e o pavio

em leilão.

 

[Manual de instruções para terroristas de trazer por casa]

27.3.23

O indulto

O indulto 

abate-se sobre o dia finito

a jeito da indigência,

o princípio geral de tudo

a confusão entre arbustos baldios

e folhagem extravagante da selva. 

 

Dizia-se:

é por estas desconclusões

que se arremata a desconfiança:

uns olham para os outros

de pé atrás

 

            (caso, único, 

            que os que partem atrás

            estão em vantagem)

 

para serem retribuídos 

com a mesma indiferença. 

 

Ao menos,

não há assimetrias

no escrutínio de um mínimo denominador comum. 

 

O indulto

diz mais de quem perdoa

do que do perdão

 

(o perdoado é o que menos interessava).

 

Esta é a terra de ninguém

em que o indultado desconfia da piedade

e o indultor pratica generosidade 

de que é usufrutuário. 

Os bons espíritos

de tanta bondade que a si convocam

nunca se descomprometeram dos padrões válidos:

a bondade é um reflexivo ato,

no inconfessável pressentimento

das indulgências provadas 

por mercê da bondade.

Injustiças indocumentadas (79)

Dava o corpo ao manifesto

sem ser importar se o manifesto 

estava interessado

no corpo dado.

#2725

Não se faça de um lamento

o hino e a bandeira

amarelecidos em prantos.

26.3.23

Museologia

Corpos 

como mares,

imensos,

e imensas são as marés

que derruem a sua sede.

Ficam à mercê das mãos

que os esculpem

sem remorsos

enquanto a tabuada do tempo

se pressente

imóvel

como se a dança fosse uma gramática

e a coreografia

a sua tradução.

#2724

Atravesso 

um mar de campos baldios:

a metáfora da despertença;

a homenagem 

à vontade sem freio.

25.3.23

Injustiças indocumentadas (78)

Quem havia.

Quem a avia.

#2723

As mãos herdaram a geada

e atiraram-se, repentinas,

ao ouro caiado da pele.

24.3.23

Dramaturgia

Se os pesares

pesarem no vento cortante

e formos o chão em que se deitam

não se espere 

uma centelha do dia consecutivo

a diligência sobre nós como dádiva 

que nada é perene

e os danos de que somos culpados

interrompem o mel que cicia de longe.

#2722

As sombras

abatiam-se sobre o entardecer

num pressentimento telúrico. 

23.3.23

Armistício

Um canto do corpo

a pele arrancada ao sono

pauta que se adia no luar fundente

e um sinal

o travo doce de uma boca

à espera de um lugar

do vulcão que não se demora.

Sideral

Em luz

insinuada

entre sombras

o exorcismo

o futuro devolvido

 

ao lugar distante.

 

A matéria

diadema embaciado

dia constante nas veias

ocaso

juro sem regra

 

a jura contumaz.

 

O rio 

dobrado sobre si

sol hirsuto do estio

o açúcar nas uvas

o vinho promitente

à sombra do descanso

as mãos vincadas

suadas

 

à espera do tempo.

 

O xisto

ao acaso atapetando o chão

orvalho nascente

e o rio

profundamente longe

contagiando

o perfume das uvas

o som do sangue

o troar do anoitecer

vago

 

o murmurar vago

e sobrante.

 

A luz

abraçada ao dia

dando ramos às árvores

tirando frutos às bocas

as bocas que se saciam

umas às outras

arrancam às raízes fundas

o mosto primacial

 

o magma centrípeto.

#2721

Fugia da matilha

como quem renasce

de um prejuízo venal.

22.3.23

Matéria combustível

A matéria combustível

agarra-se à pele. 

Ontem era tatuagem. 

Hoje 

que se fala apenas de babugem

os arroios vão cheios de água

que houve chuva fora do tempo

talvez um rio de lágrimas,

a descondição dos melancólicos. 

 

Alguém diz:

é preciso partir pedra,

naquela irritante mania

de usar expressões idiomáticas. 

 

(Como se partir pedra

desse para jurar um caminho

ou assegurar um destino

e uma pedreira fosse o embaraço inicial

e todos os que não capitulam

tivessem de vestir o fato de macaco 

– outra expressão idiomática 

sem paradeiro – 

e, na posse de uma humilde picareta,

pacientemente desatasse 

a partir a pedra-obstáculo.)

 

Alguém diz

a maré não está a preceito

e a matéria combustível oferece-se

ao arrefecimento,

a preguiça como aval

que a persistência não é uma arte que se domina. 

 

Os olhos embotados desistem do dia. 

Ficam as rugas em salmoura

à espera de serem convertidas 

na pele que se dá ao tempo restante. 

 

Por dentro

escondido

o vulcão resiste à hibernação. 

As convulsões interiores são como revoluções

espasmos atirando as partes contraditórias

umas contra as outras

como se por dentro do houvesse labirintos

por onde se esgueira a lava

que teimosamente resiste à anestesia forçada. 

 

Por dentro

a resistência dos elementos

ateia a força bruta das páginas arrancadas

ao torpor. 

Contra a letargia do futuro

contra as expressões idiomáticas

e os espasmos dos lugares-comuns

a favor dos versos que se sublevam

contra a tirania do que 

 

(dizem ser)

 

irremediável. 

 

Até prova em contrário,

avivada na carne-viva que deixou de ser,

não estou convencido que a finitude

é o verbo forte. 

#2720

Uma epifania 

é coisa

que a ateia não ateia.

#2719

As bandeiras puídas

arrastam-se

na ferrugem do tempo.

21.3.23

Retrovisor

Dizem 

que uma bruma tardia

se apoderou do olhar

e ele, embaciado,

passou a amansar a fala

tartamudeada. 

 

Dizem

que uma maré fugidia

dissolveu o mal-estar

e ele, embuçado,

perdeu a linhagem de bala

torpedeada. 

 

Dizem

que uma cara gentia

se contaminou ao destinar

e ele, desembaraçado,

extinguiu a mala

desarrumada. 

#2718

Um labirinto de metáforas

incendeia o sangue

aviva o vulcão

adormecido.

20.3.23

As muitas voltas ao mundo (contentores)

O cais é a morada de contentores. 

Parecem casas empilhadas 

sem critério

como o mesmo acaso

com que cruzam os mares todos

de porto em porto 

conhecendo os climas todos

os idiomas de que o mundo é feito

levando mercadorias 

fazendo as pontes marítimas 

entre remotos lugares. 

No cais,

uma cidade de contentores. 

Quantas voltas as mundo estão às costas

de todos os contentores amontoados? 

#2717

Podia-se fazer um poema

com nódoa

nafta 

e nefelibata.