26.5.23

Vozes-sombra

Não são as vozes que ecoam nas veias

capatazes de sismos cardíacos

de lamas que enobrecem a poluição

de bocas património de mau hálito

de granadas conspirativas 

que adormecem no travesseiro

do sangue desabilitado que esmorece

da cabeça que mergulha no chão decrépito.

As vozes

que ecoam nas veias

são o desdobramento da alma

os sucessivos alambiques que destilam estados

e atiram

para a boca de cena

a fragilidade infatigável

o desejo de ser apenas

o mais anónimo desejo 

entre os párias.

#2794

O arroz malandro

maroto

tão a jeito

de donzelas de prazeres 

omissos.

25.5.23

Ar condicionado

O xisto debruado na boca

ajeita as palavras

parecem:

estrofes;

ou um candeeiro todavia fundido

à espera de vez

no fundo do mar

sem lá ter sido encontrado

por naufrágio.

 

A boca naufraga

trémula

desajeitada

diz umas palavras desastradas

antes que na noite decrete

o silêncio

e os ardinas da luminescência arvorem

o princípio geral do universo

e a sua incontestabilidade.

 

Os rebeldes sobem à cena

tomando conta da noite

prometendo demoras

e algum vinho

jurando oposição às incontestáveis coisas

assim encenadas. 

 

As vozes disfarçadas de colibri

coonestam os penhascos que vomitam água

mesmo no auge do cachão

e em baixo o tremor contínuo

ensurdecedor

embacia as falas que ousam.

 

É melhor assim

(alvitra o visitante)

o silêncio traduz a melhor fala.  

E pensou

o que seria de um corpo em queda livre

sem arnês

à mercê do turbilhão tempestuoso

o que seria do corpo se não fosse despedaçado.

 

Um pouco à frente

mesmo depois da fina bruma 

dissipada num arco-íris

o leito amansa numa lagoa que se alarga

e as margens pedem cais 

para os destroços do cachão.

 

Mumificado

o musgo-testemunha

empresta um lugar acetinado aos visitantes.

 

Entardece.

enquanto o silvo das aves tardias

se mistura com o rumor já distante do cachão.

A boca insiste em palavras metálicas

como se fosse preciso desenjoar 

e um dia aprazível estivesse adulterado

pelo cansaço dos excessos.

 

As vozes tardias

as que foram paridas para desmanchar prazeres

começam a arrastar o oxigénio

para a falésia onde está o sono.

Tiraram a vez

aos demónios que esbracejam a farda

enquanto juram acertar contas com o futuro.

Injustiças indocumentadas (111)

Desmancha os prazeres

antes 

que os prazeres retaliem.

#2793

A tábua de salvação,

puída,

a via verde

para o precipício.

24.5.23

Pavilhão dos despertos

A genealogia da fantasia

morde na orelha do velho marinheiro.

A modista urticariamente conservadora

só arrota se estiver sozinha.

O gato maroto espreita a fêvera a descongelar

à espera de se substituir a uma humana boca.

Os circos nunca estiveram vazios.

Às medas, 

a indigência trata da toponímia do lugar.

Se ao menos lavado estivesse o lagar

não era de uvas que seriam mentidas as pernas

possivelmente

de maratonistas magros correrndo contra o mosto

à medida que os contrabandistas assobiavam

para o lado

e de lado andassem os desmerecidos foliões

arrastando a aderência malsã 

com os dentes de fora.

Combinam-se duelos de estrofes:

um atira 

a angústia perene

que se consome no pavilhão geral dos gelados

e o outro contrapõe

com a maresia que se levanta na biblioteca

sem que os estetas protestem contra a manhã.

A impressão

é que está tudo embriagado 

ou apenas louco

e ninguém sabe

se pior é estar louco ou ser embriagado.

Injustiças indocumentadas (110)

Se a mão é morta

não pode ir bater

a nenhuma porta.

#2792

Conta os quilómetros

nessa conta incerta

antes que os quilómetros

deem conta de ti.

23.5.23

#2791

Tanta pressa

em saber do futuro

é um oráculo

que se mata a si próprio.

Injustiças indocumentadas (109)

Quem está à espera 

da sorte

num jogo de azar?

22.5.23

Às velas

As velas

ardem a angústia

incendeiam os dias por haver.

Exilados

damos as mãos às árvores

e lemos no mar a mare de outrora

o esquecimento armadilhado.

Somos as velas

o mar, os nossos corpos

e deste fogo amamentamos tempestades.

No conhecimento do belo

que não se intimida com as palavras

não fica refém das indulgências

amordaçado nas lágrimas vertigem.

Pelas velas

aquecemos os corpos

no império da noite fria

e no sangue combustível

sermos escultores do dia sem prazo.

Aquecemos as mortalhas que embaciam a nudez.

Aquecemos as estrofes que sobem à boca 

e no miradouro da manhã

tecemos as profecias derrotadas

o véu único que nos cobre

e reserva a nudez

para nós.

E nós

com as velas que tremeluzem

sob o saque de um luar colonizador

dizemos ao vinho de que somos feitos

estas armaduras tão frágeis

estilhaços que fortalecem os corpos.

#2790

Foi por este triz

que o petiz

não se cruzou

com a meretriz.

21.5.23

#2789

Os filamentos da pele fecham-se 

urdem o seu esconderijo.

Lá fora, o mundo;

exterior 

(agressor).

20.5.23

#2788

Tornam-se insubmissas as páginas

um dicionário de desobediência.

19.5.23

6:53 am

Acorda a matilha

a água estilhaçada

deita-se sobre o silêncio

e os redimidos assobiam a manhã

exorcizando os paradeiros assombrados. 

 

A matilha

entediada pelo torpor da manhã

estremunha as lágrimas herdadas dos sonhos

no preparativo para a infâmia que é sua perícia. 

 

Os redimidos

esqueceram-se de esconjurar

um a um

os que coabitam a matilha.

#2787

Acredito no céu 

para efeitos meteorológicos e astronómicos.

#2786

Indemnize-se o presente

por danos causados 

pelo futuro.

18.5.23

Respaldo dos ruminantes

Rosnam as rosas na arruaça

os risos roçam os rouxinóis

e são as raízes reptícias 

que arruam os rapazes ruins.

Que arrotam

tão remíveis por rebeldia

por receberem dos irresponsáveis

o raspanete por não rosnarem.

Já as regras ficaram rasas

e à rasca 

roeram o resto da razão.

#2785

Os paióis

que merecem Óscares

são os que guardam flores.

17.5.23

Injustiças indocumentadas (108)

Por vir

o

porvir.

Aposta

As vidas todas 

outra vez. 

 

O nevoeiro em erupção

a manhã sem sentinela

de vez. 

 

O colibri imerso na tarde

subindo às costas do vento

de cada vez. 

 

O troco do oráculo

sem troça das mãos

mal seja a vez. 

 

A meda da fala

desembaraçada do silêncio

sem vez. 

 

O obstinado pesar

culpando o dia de sombras

com vez. 

 

A granada embainhada

e o peso gracioso da cortina puída

à vez. 

 

As flores expropriadas de odor

sobre aviões amortalhados

talvez. 

 

O poema embarcado

empresta sal ao angustiado mar

só desta vez. 

 

A sina que procura orfandade

no vagar do entardecer sincopado

em que seja vez. 

 

O sonho afeiçoado na tempestade

colhendo as pétalas maduras

uma vez. 

Injustiças indocumentadas (107)

O testa-de-ferro

é o que dá

o peito às balas.

#2784

As estrelas marejam 

uma convulsão vulcânica,

o antídoto contra os eclipses.

16.5.23

Trova

Atiro o rosto

contra a conspiração. 

Não será em mim

legítimo o medo

ainda 

que o medo morda fundo

e deixe a pele lívida

mergulhada em anestesia. 

Atiro ao medo

as munições angariadas

sirvo-me da intrepidez

e convoco o sangue para a rebelião. 

Antes que o medo se componha

e como se de uma maré viva 

me condene à hibernação,

ou à obediência. 

#2783

Estilhaços

são a herança

do futuro.

Injustiças indocumentadas (106)

O que são 

os anéis

sem 

os dedos?

15.5.23

Garimpeiro

O arco que vai da alvorada ao acaso

entra pela pele sem ser cicatriz

convoca as ondas que se levantam na nortada

e canta os diademas 

desenhados pelos dedos incansáveis. 

Habilitam-se 

os caos embutidos em azulejos diáfanos

mostram-se as coisas pelo seu avesso

proclamam-se as insolências 

que são o aval dos párias

e num golpe de asa

antes que o amanhã seja apenas outra véspera

amotina-se o espírito irrefreável

contra as muralhas que se encandeiam pela manhã

quando sobre elas sobe o sol vulcânico

e o corpo dá tudo de si 

ao dia anunciado. 

Tudo não se incendeia 

se não na perecível promessa que se encena

e as farsas continuam a cheirar 

o cu do amanhã. 

Composição

Túnel.

Fundo do túnel.

Ao fundo do túnel.

Luz ao fundo do túnel.

Luz ao fundo.

Ao fundo.

Luz.

#2782

Coroação da primavera:

a cintilação de flores

que avivam as árvores.

14.5.23

O viveiro dos gongóricos

Mastigadas as palavras

um bolo alimentar indigesto:

se houvesse por pleitos

as batalhas navais feitas de provérbios

só os indigentes estariam à altura

de campeonatos.

Mas as mastigadas palavras

pareciam

frenéticos embaixadores

em estado lisérgico

nos seus jogos escondidos

inconfessáveis:

palavras mastigadas

eram cuspidas como perdigotos

e os anátemas da gaguez caíam

como água fervente a derreter o gelo:

uma mastigada,

dizia-se,

e não era loa tributada

aos escansões das palavras

assim amarrotadas e gongóricas.