Escondidos
como se fôssemos
o nosso próprio eclipse
– não é vã,
a matéria anónima.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Virada a pele do avesso
um desassisado vulcão
de frente para o precipício
sem rastilhos por atear
sem outras partidas
a servir de cais.
Do avesso
em vez de avulso
a lareira dentro da boca
e a incandescente tocha à espera de erupção
domando o sal que vem com a manhã.
Avesso me encontro
às tágides como trovoadas
inspiradoras que inspiram um avo
antes que sejam fermentadas
pelo efémero que não entra no dicionário.
Ao vaso centrípeto
onde o sangue se deslaça
e tudo deixa de ser ontem
a pele avessada deixa de ser
em bordões de carne sem prescrição
a teimosia que derrota os mastins sem rédea.
E de volta do avesso
a pele desembaciada golpeia as uvas certeiras
antes que as abóbadas do apocalipse
sejam bilhete postal
antes
que as rodas desimpedidas sejam travejadas
no provável logro dos medos
na fatiada vida servida em fascículos
contra o princípio geral do bocejo
e a alardeada sinfonia
dos que vão de braços em baixo.
Para saber da pele
é preciso levá-la ao avesso
extingui-la das viciosas coleções dos dias
macerá-la no vinho frágil
que a torna a mais vívida fortificação.
O alvoroço armadilha o convés
onde distraídas se congeminam as marés.
As nuvens que desenham o céu
participam na quimera dos contumazes:
se os dedos chegassem às nuvens
conseguiam tatuá-las.
No fundo poucos são assim
escondidos no seu labirinto
só eles conhecedores
das meadas em que se entretecem
sem ambições de desanonimato.
O alvoroço
é o hino em que se amparam
ciosos de serem maiores
do que o espelho que os retrata
na improfícua demência de julgarem
que as suas vidas
são um teatro com audiência.
Assim como o metanol:
sabia o poeta
(“o fogo que arde sem se ver”)
que havia o metanol
– se quando o vate assim poemizou
ainda o metanol não tinha passado
no crivo das invenções.
Camões
foi muito à frente do seu tempo
(não é costumeira loa):
adivinhou
que o metanol seria inventado.
Rega-se a mentira
com o mosto da injúria
somam-se
umas lágrimas vadias
e fingimento q.b.
Armadilha-se o dia
com as esporas do medo
enquanto
as sacerdotisas da hipocrisia
escrituram a feição avessa
e gritam
a seu favor
a verdade que não admite oposição.
Mete-se o preparado no forno dos arnaldos
e o cronometro vai ao zero
só à espera de maturar
sob os auspícios da confraria inteira
que serve em bandeja o solilóquio dos pares
que se prometem sinecuras recíprocas
e ostentam o estandarte do monopólio
sem não olvidarem a bandeira que vestem,
embaixadores incontestáveis
só merecedores de encómios e genuflexões
ou não fossem
em plena vaia ao que dizem representar
juízes em causa própria,
aqueles mesmos que enchem a boca
com a palhuda massa folhada
da ética republicana.
Não são as vozes que ecoam nas veias
capatazes de sismos cardíacos
de lamas que enobrecem a poluição
de bocas património de mau hálito
de granadas conspirativas
que adormecem no travesseiro
do sangue desabilitado que esmorece
da cabeça que mergulha no chão decrépito.
As vozes
que ecoam nas veias
são o desdobramento da alma
os sucessivos alambiques que destilam estados
e atiram
para a boca de cena
a fragilidade infatigável
o desejo de ser apenas
o mais anónimo desejo
entre os párias.
O xisto debruado na boca
ajeita as palavras
parecem:
estrofes;
ou um candeeiro todavia fundido
à espera de vez
no fundo do mar
sem lá ter sido encontrado
por naufrágio.
A boca naufraga
trémula
desajeitada
diz umas palavras desastradas
antes que na noite decrete
o silêncio
e os ardinas da luminescência arvorem
o princípio geral do universo
e a sua incontestabilidade.
Os rebeldes sobem à cena
tomando conta da noite
prometendo demoras
e algum vinho
jurando oposição às incontestáveis coisas
assim encenadas.
As vozes disfarçadas de colibri
coonestam os penhascos que vomitam água
mesmo no auge do cachão
e em baixo o tremor contínuo
ensurdecedor
embacia as falas que ousam.
É melhor assim
(alvitra o visitante)
o silêncio traduz a melhor fala.
E pensou
o que seria de um corpo em queda livre
sem arnês
à mercê do turbilhão tempestuoso
o que seria do corpo se não fosse despedaçado.
Um pouco à frente
mesmo depois da fina bruma
dissipada num arco-íris
o leito amansa numa lagoa que se alarga
e as margens pedem cais
para os destroços do cachão.
Mumificado
o musgo-testemunha
empresta um lugar acetinado aos visitantes.
Entardece.
enquanto o silvo das aves tardias
se mistura com o rumor já distante do cachão.
A boca insiste em palavras metálicas
como se fosse preciso desenjoar
e um dia aprazível estivesse adulterado
pelo cansaço dos excessos.
As vozes tardias
as que foram paridas para desmanchar prazeres
começam a arrastar o oxigénio
para a falésia onde está o sono.
Tiraram a vez
aos demónios que esbracejam a farda
enquanto juram acertar contas com o futuro.
A genealogia da fantasia
morde na orelha do velho marinheiro.
A modista urticariamente conservadora
só arrota se estiver sozinha.
O gato maroto espreita a fêvera a descongelar
à espera de se substituir a uma humana boca.
Os circos nunca estiveram vazios.
Às medas,
a indigência trata da toponímia do lugar.
Se ao menos lavado estivesse o lagar
não era de uvas que seriam mentidas as pernas
possivelmente
de maratonistas magros correrndo contra o mosto
à medida que os contrabandistas assobiavam
para o lado
e de lado andassem os desmerecidos foliões
arrastando a aderência malsã
com os dentes de fora.
Combinam-se duelos de estrofes:
um atira
a angústia perene
que se consome no pavilhão geral dos gelados
e o outro contrapõe
com a maresia que se levanta na biblioteca
sem que os estetas protestem contra a manhã.
A impressão
é que está tudo embriagado
ou apenas louco
e ninguém sabe
se pior é estar louco ou ser embriagado.
As velas
ardem a angústia
incendeiam os dias por haver.
Exilados
damos as mãos às árvores
e lemos no mar a mare de outrora
o esquecimento armadilhado.
Somos as velas
o mar, os nossos corpos
e deste fogo amamentamos tempestades.
No conhecimento do belo
que não se intimida com as palavras
não fica refém das indulgências
amordaçado nas lágrimas vertigem.
Pelas velas
aquecemos os corpos
no império da noite fria
e no sangue combustível
sermos escultores do dia sem prazo.
Aquecemos as mortalhas que embaciam a nudez.
Aquecemos as estrofes que sobem à boca
e no miradouro da manhã
tecemos as profecias derrotadas
o véu único que nos cobre
e reserva a nudez
para nós.
E nós
com as velas que tremeluzem
sob o saque de um luar colonizador
dizemos ao vinho de que somos feitos
estas armaduras tão frágeis
estilhaços que fortalecem os corpos.
Acorda a matilha
a água estilhaçada
deita-se sobre o silêncio
e os redimidos assobiam a manhã
exorcizando os paradeiros assombrados.
A matilha
entediada pelo torpor da manhã
estremunha as lágrimas herdadas dos sonhos
no preparativo para a infâmia que é sua perícia.
Os redimidos
esqueceram-se de esconjurar
um a um
os que coabitam a matilha.