Não é em vão
que vão te tornas,
a escada da decadência
é o vau inadiável.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Vou às portas de um país basco
sem medo do ricochete
das balsas de exilados
com fome de colinas adelgaçadas
pária de um idioma sem paradeiro
das fronteiras que acabam depois
nas manhãs condensadas
que se acastelam
nas costas do mar.
Que sabemos
da árvore noturna
dos humores que fabricam o orvalho
da matéria-prima de que é feito o sangue
dos inviáveis dias
que se arrumam no dicionário?
Toda a água contida no rio
desfaz-se num mar totalitário
e digo
que não há maior gesto democrático.
Se estamos à mercê da contingência
se só sabemos que do outro lado da página
medra a luz crepuscular
de que serve sermos arquitetos do porvir
se depois acabamos engenheiros
a fazer o levantamento dos destroços
e repor o que do passado puder ser salvo?
Não aprendemos com o futuro
e ficamos à espera da fala do passado.
É essa a nossa tragédia comum.
Um lampejo de vozes exaustas
a pele que se gasta com o reviver
e o sangue em banho-maria
sempre à espera
do próximo apeadeiro.
De cada rua demandada
a granada desaprovada
que se amotina na contramão
de um corpo que precisa de corrimão.
Deste espólio que se agiganta
não há vivalma que se espanta
caem as mãos como um machado
no estio nunca atrasado.
À água funda o oráculo resgatado
fundeia o espectro destinado
o estuário tardio e sem bainhas
só deixa emergir as entrelinhas.
No ocaso a jura pertence
o lugar deixado ao luar incense
e os poros de matéria combustível
escondem a força invisível.
As estrofes que atapetam o calendário
contrariam o provável mortuário
cortando a eito a temível passadeira
para no miradouro ser devolvida a canseira.
O jacarandá incendeia a alma promissora
e avaliza a luz encantadora
a fala junta-se ao orgulho matinal
num diadema seminal.
Ouvem-se as vinhas
o aroma que prometem
enquanto esperam nos socalcos
pelo tempo que vinga.
Os artesãos não conspiram a solidão
que o vinho ajuramentado precisa de colo
precisa de mãos sábias
que o despoja de ardis
e matéria pretensiosa.
Logo agora
que a empreitada ganhou peso
e a desdieta é da culpa
do terroir
(por já terem,
talvez,
sido extintos
os termos em português).
Adivinhei o estado comatoso
à volta do adro voejavam abutres disfarçados
e o oriente devolvia o sol
ainda infante
ainda assembleia dos desejos.
As ruas apinhadas de silêncio
fingiam as vozes suadas
fingiam
que sabiam ver debaixo das pálpebras
e as pedras guturais que segredavam os rumores
desatendiam as preces embaixadoras.
Os corpos
eram atirados para a falésia
mas voavam
tão leves
que se acreditava que era intencional.
Os gatos lutavam pelo lugar
houvesse uma gata que fosse para disputar
e antes que os preclaros se abespinhem
diga-se
que os gatos não leem os gurus de amanhã
nem vão às manifestações participativas.
(Porventura
propor-se-á
numa bem-aventura assembleia
a destituição da natureza
ou a sindicalização
das gatas.)
O cio dos gatos é indiferente
e os varões pendidos na madurez invejam
tão profilático desejo
toda a carnalidade sem o véu dos costumes.
A usura
a maldita usura
levar-nos-á à decadência
e depois
à extinção.
(A menos que as assembleias participativas
se substituam à usura
e, salvíficas,
decretem que tudo o que se opõe
à desmaterialização
está condenado à proibição.)
A encenação não conta,
adverte o pai na direção da filha
e ela
insistindo no descomportamento
mostra a língua e duas caretas
às meretrizes que se mercam
na rua feita montra.
Ah, se ao menos o mundo não tivesse arestas
e as chaves não fossem segredos
as bocas diziam os nomes ao acaso
e já ninguém participava no medo;
se as cortinas se mantivessem subidas
e já não houvesse clareiras por recusar
as fogueiras não se extinguiam
nem à força de chuvas estrénuas.
Esgotado o tempo
já não se sabe se ele se gastou
ou se atirou contra
os que dele são párias.
Rasgo
a fuselagem dos dias bastantes
as lágrimas que são refúgio das árvores
mas não consigo rasgar
os diamantes que são a safra do futuro.
Deste dar à corda,
a roda dentada que porfia
nos dias seguidos
a visionária sabedoria de viver.
Os tribunais andam distraídos
e as ruas incendeiam-se
com as vozes cansadas
em motins de despensamento.
As manhãs são como úberes.
As vozes ainda em murmúrio
com medo de se revelarem
estremunhadas
expiam os pressentimentos
cifrados nos pesadelos.
De cada vez que chove
deito as mãos para sentir as gotas
acolho a chuva no cabelo desprotegido
e vejo
em cada gota que entardece em meu rosto
um oráculo que se escreve a tinta-da-china.
De cada vez que chove
sou eu
essa precipitação ousada
vertida sobre o adro sem curadoria.
Abotoado o saber
o dia casava-se com os frutos silvestres
amortalhados entre os arbustos.
As mãos macias
diziam
que era de serenidade
que o entardecer se fazia
pressentindo o luar como dádiva
para que na sua luz demiúrgica
fossem os sonhos murados.
Sem saber
um motim interior açambarcou o cais
como se as amarras voejassem sem rédeas
ordenadas pelo vento castigador
e não houvesse chão
entre o corpo e o mar.
A convulsão enfureceu os verbos
e toda a gramática era errante
sem as alvíssaras de um sextante
à mercê do vento avesso que trespassava o rosto
povoando umas rugas mais
o pesadelo sem âncora
com guarida para morder fundo
até ao osso.
Mas era só isso
um pesadelo agitador
a conspiração dos vultos
escondidos nos bastidores
por coragem ausente
de mostrarem de que coragem (não) são feitos.
Apanhados os destroços
a contabilidade dos danos
pariu um rato.
Os pesadelos
não contam
no desembaraço
da alma.
Um martelo pneumático
a percutir
vigorosamente
incessantemente
a fala gongórica,
a autêntica tortura do sono.
Da luz
a penumbra tatuada
a boca que toca na boca
dedilhando os lábios
evaporando o medo
nas paredes que encobrem a noite
dando os dedos ao cicerone
e os poros às escuras
tornam-se
candeia que toca o vulcão
que toca o amanhã anónimo
que toca a carne em fuga
até que dos verbos não soubermos a cor
e nos sobra
fogueira que sabe à lava que falamos.
Certeiro o rasgo
no reduto da torre de marfim
o selo escondido dos olhares indiscretos
como se da lã fizesse um disfarce
e a carne,
refugiada no labirinto arrematado.
Depois do mundo
tiro o dia para saber da cidade
dos urbanos desvios à conta de predestinados
correndo por fora sem estar no fio do invisível
provoco o cidadão inerme
refém da letargia
antes que as cismas corram de vez
com um escol em vias de perpetuação.
As lentes estão riscadas
baças com a humidade primeva
mas os olhos não deixaram de ter serventia
nem os circuitos cerebrais entraram
em modo de segurança:
à vez
os mascotes enfeitados com autorictas
medem as falas no mercado das juras fáceis
contam com suserania dúctil
presas fáceis da mitomania que amura a cidade
preguiçosamente no coldre dos mandantes
só à espera
de serem as balas descartadas
no tabuleiro em que são peões sem nome.
Esta é a torre de marfim puída
uma cortina de espelhos
o jogo no baile dia disfarces
um cortejo de meãos inertes, domáveis,
especialistas em tudo e sabedores de nada
os que são agitadores sem fazerem vento
apregoando sucessivas mágoas e logo a seguir
transigem com os que atiram culpas
num sórdido tribunal de culpados sem pena
e de juízes sem toga.
Não esperem da torre de marfim
um oásis.
Não esperem
que a indigência fermente a excelência:
uns são o espelho dos outros
e estes o espelho do escol sufragado
e quando tudo está nestes preparos
quem pode contestar o palco onde todos se movem?