9.7.23

#2838

Não é em vão

que vão te tornas,

a escada da decadência

é o vau inadiável.

Injustiças indocumentadas (132)

Portugal

(não é)

dos pequeninos.

8.7.23

#2837

Era a oliveira falhada

os ramos ressequidos de fora

mas era uma oliveira.

7.7.23

Cem barreiras

Vou às portas de um país basco

sem medo do ricochete 

das balsas de exilados

com fome de colinas adelgaçadas

pária de um idioma sem paradeiro

das fronteiras que acabam depois

nas manhãs condensadas

que se acastelam

nas costas do mar.

Injustiças indocumentadas (131)

É quanto barata 

– quão de terceira classe –

a carne para canhão?

#2836

Dizer adeus

é encomendar alguém 

a deus?

6.7.23

Confissão

Que sabemos 

da árvore noturna

dos humores que fabricam o orvalho

da matéria-prima de que é feito o sangue

dos inviáveis dias 

que se arrumam no dicionário?

 

Toda a água contida no rio

desfaz-se num mar totalitário

e digo 

que não há maior gesto democrático. 

 

Se estamos à mercê da contingência

se só sabemos que do outro lado da página

medra a luz crepuscular 

de que serve sermos arquitetos do porvir

se depois acabamos engenheiros

a fazer o levantamento dos destroços

e repor o que do passado puder ser salvo?

 

Não aprendemos com o futuro

e ficamos à espera da fala do passado. 

É essa a nossa tragédia comum. 

 

Um lampejo de vozes exaustas

a pele que se gasta com o reviver

e o sangue em banho-maria

sempre à espera 

do próximo apeadeiro.

Injustiças indocumentadas (130)

Uma ação de formação,

ou deformação.

Injustiças indocumentadas (129)

Um pé de vento

quantos dedos tem?

#2835

As ruas arrumavam a solidão

sabiam que havia um dia

consecutivo.

5.7.23

A oficina do exilado

De cada rua demandada

a granada desaprovada

que se amotina na contramão

de um corpo que precisa de corrimão. 

 

Deste espólio que se agiganta

não há vivalma que se espanta

caem as mãos como um machado

no estio nunca atrasado. 

 

À água funda o oráculo resgatado

fundeia o espectro destinado 

o estuário tardio e sem bainhas

só deixa emergir as entrelinhas. 

 

No ocaso a jura pertence

o lugar deixado ao luar incense 

e os poros de matéria combustível

escondem a força invisível. 

 

As estrofes que atapetam o calendário

contrariam o provável mortuário

cortando a eito a temível passadeira

para no miradouro ser devolvida a canseira. 

 

O jacarandá incendeia a alma promissora

e avaliza a luz encantadora

a fala junta-se ao orgulho matinal

num diadema seminal.

#2834

Joga-se o jogo do fingimento

a fugir de todo este

fingir.

4.7.23

Vinificação

Ouvem-se as vinhas

o aroma que prometem

enquanto esperam nos socalcos

pelo tempo que vinga.

Os artesãos não conspiram a solidão

que o vinho ajuramentado precisa de colo

precisa de mãos sábias 

que o despoja de ardis 

e matéria pretensiosa.

Logo agora

que a empreitada ganhou peso

e a desdieta é da culpa

do terroir

 

(por já terem, 

talvez, 

sido extintos

os termos em português).

#2833

De que sangue

é feita a noite,

de que sangue

se amestram 

os sonhos?

3.7.23

Mecenato (em proveito próprio)

Adivinhei o estado comatoso

à volta do adro voejavam abutres disfarçados

e o oriente devolvia o sol

ainda infante

ainda assembleia dos desejos.

As ruas apinhadas de silêncio

fingiam as vozes suadas

fingiam

que sabiam ver debaixo das pálpebras

e as pedras guturais que segredavam os rumores

desatendiam as preces embaixadoras.

 

Os corpos 

eram atirados para a falésia

mas voavam

tão leves

que se acreditava que era intencional.

 

Os gatos lutavam pelo lugar

houvesse uma gata que fosse para disputar

e antes que os preclaros se abespinhem

diga-se 

que os gatos não leem os gurus de amanhã

nem vão às manifestações participativas.

 

(Porventura

propor-se-á

numa bem-aventura assembleia

a destituição da natureza

ou a sindicalização 

das gatas.)

 

O cio dos gatos é indiferente

e os varões pendidos na madurez invejam

tão profilático desejo

toda a carnalidade sem o véu dos costumes.

A usura

a maldita usura

levar-nos-á à decadência

e depois

à extinção.

 

(A menos que as assembleias participativas

se substituam à usura

e, salvíficas,

decretem que tudo o que se opõe 

à desmaterialização

está condenado à proibição.)

 

A encenação não conta,

adverte o pai na direção da filha

e ela

insistindo no descomportamento

mostra a língua e duas caretas

às meretrizes que se mercam 

na rua feita montra.

 

Ah, se ao menos o mundo não tivesse arestas

e as chaves não fossem segredos

as bocas diziam os nomes ao acaso

e já ninguém participava no medo;

se as cortinas se mantivessem subidas

e já não houvesse clareiras por recusar

as fogueiras não se extinguiam

nem à força de chuvas estrénuas.

 

Esgotado o tempo 

já não se sabe se ele se gastou

ou se atirou contra 

os que dele são párias.

Injustiças indocumentadas (128)

A coça

que coça.

Injustiças indocumentadas (127)

O amigo é da onça

mas 

a onça não é do amigo.

#2832

Privilégio extravagante

é ser testemunha 

da erupção do sol.

2.7.23

#2831

Rasgo

a fuselagem dos dias bastantes

as lágrimas que são refúgio das árvores

mas não consigo rasgar

os diamantes que são a safra do futuro.

Vassalagem

Deste dar à corda,

a roda dentada que porfia

nos dias seguidos

a visionária sabedoria de viver. 

Os tribunais andam distraídos

e as ruas incendeiam-se 

com as vozes cansadas

em motins de despensamento. 

As manhãs são como úberes.

As vozes ainda em murmúrio

com medo de se revelarem

estremunhadas

expiam os pressentimentos 

cifrados nos pesadelos. 

De cada vez que chove

deito as mãos para sentir as gotas

acolho a chuva no cabelo desprotegido

e vejo

em cada gota que entardece em meu rosto

um oráculo que se escreve a tinta-da-china. 

De cada vez que chove

sou eu

essa precipitação ousada

vertida sobre o adro sem curadoria. 

1.7.23

#2830

Não esperei pelo passado,

o nome fez-se à falésia

no luxo vertical da ousadia.

30.6.23

Injustiças indocumentadas (126)

Alguém sabe

onde Judas 

perdeu as botas?

#2829

O olho do furacão

nunca dorme.

29.6.23

#2828

Deviam

dar ordem à ordem

para ser menos

ordem.

28.6.23

Magistério

Abotoado o saber 

o dia casava-se com os frutos silvestres

amortalhados entre os arbustos. 

 

As mãos macias 

diziam

que era de serenidade 

que o entardecer se fazia

pressentindo o luar como dádiva

para que na sua luz demiúrgica

fossem os sonhos murados. 

 

Sem saber

um motim interior açambarcou o cais

como se as amarras voejassem sem rédeas

ordenadas pelo vento castigador

e não houvesse chão 

entre o corpo e o mar. 

 

A convulsão enfureceu os verbos

e toda a gramática era errante

sem as alvíssaras de um sextante

à mercê do vento avesso que trespassava o rosto

povoando umas rugas mais

o pesadelo sem âncora

com guarida para morder fundo

até ao osso. 

 

Mas era só isso

um pesadelo agitador

a conspiração dos vultos 

escondidos nos bastidores

por coragem ausente 

de mostrarem de que coragem (não) são feitos. 

 

Apanhados os destroços

a contabilidade dos danos 

pariu um rato. 

 

Os pesadelos 

não contam

no desembaraço 

da alma. 

#2827

Um martelo pneumático 

a percutir

vigorosamente

incessantemente

a fala gongórica,

a autêntica tortura do sono.

27.6.23

Ângulo vivo

Da luz

a penumbra tatuada

a boca que toca na boca

dedilhando os lábios

evaporando o medo

nas paredes que encobrem a noite 

dando os dedos ao cicerone

e os poros às escuras

tornam-se 

candeia que toca o vulcão 

que toca o amanhã anónimo

que toca a carne em fuga

até que dos verbos não soubermos a cor

e nos sobra

fogueira que sabe à lava que falamos.

#2826

Um manicómio colossal,

a loucura 

sob o alto patrocínio

dos embaixadores do poder.

26.6.23

O cidadão-ensaísta

Certeiro o rasgo

no reduto da torre de marfim

o selo escondido dos olhares indiscretos

como se da lã fizesse um disfarce

e a carne,

refugiada no labirinto arrematado. 

Depois do mundo

tiro o dia para saber da cidade

dos urbanos desvios à conta de predestinados

correndo por fora sem estar no fio do invisível

provoco o cidadão inerme

refém da letargia

antes que as cismas corram de vez

com um escol em vias de perpetuação. 

As lentes estão riscadas

baças com a humidade primeva

mas os olhos não deixaram de ter serventia

nem os circuitos cerebrais entraram 

em modo de segurança:

à vez

os mascotes enfeitados com autorictas

medem as falas no mercado das juras fáceis

contam com suserania dúctil

presas fáceis da mitomania que amura a cidade

preguiçosamente no coldre dos mandantes

só à espera

de serem as balas descartadas 

no tabuleiro em que são peões sem nome. 

Esta é a torre de marfim puída

uma cortina de espelhos

o jogo no baile dia disfarces

um cortejo de meãos inertes, domáveis,

especialistas em tudo e sabedores de nada

os que são agitadores sem fazerem vento

apregoando sucessivas mágoas e logo a seguir

transigem com os que atiram culpas

num sórdido tribunal de culpados sem pena

e de juízes sem toga. 

Não esperem da torre de marfim

um oásis. 

Não esperem

que a indigência fermente a excelência:

uns são o espelho dos outros

e estes o espelho do escol sufragado

e quando tudo está nestes preparos

quem pode contestar o palco onde todos se movem?

#2825

Estimada coligação de couraças:

a sobrevivência da cidade

agradece.