Calígula ou barítono,
a hesitação agoniante
antes de responder à pergunta
“o que queres ser em crescido”.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Calígula ou barítono,
a hesitação agoniante
antes de responder à pergunta
“o que queres ser em crescido”.
Queria um dólar
o câmbio fortaleza
e nem sabia
que no lugar em que estava
o dólar não tinha serventia
valia tanto
como uma nota de monopólio
ou a palavra jurada dos solenes coveiros
que condenavam a mátria
à irremediável dissolução do futuro.
Dessas juras solenizadas
não se extraía em memória futura
o saldo em mitomania
– e ninguém se lamentava
ninguém queria contas prestadas.
Invocassem não ser o caso
sobrava
aos mandantes hasteados com o aval popular
a imperícia;
tal como
a do dólar naquela mátria
que não sabia da serventia do dólar
a tão glosada nota verde
ali,
estranha como idioma não aprendido.
Um,
armado até aos dentes
vai perder a peleja
porque o outro,
armado até aos olhos,
lhe passa a perna
(e os dois, talvez,
a caminho da autofagia).
Perdeu a cabeça.
A quem a encontrar
solicita-se devolução
aos perdidos e achados.
Sabes do crepúsculo
o sabre luminar de que é feita
a bainha do dia
o lampejo de mediania que é suficiente
sabes
do furacão circuncidado
a ametista escondida no bolso
o microscópio por onde arde a angústia
sabes
de que matéria é feita a fala continua
nos antebraços do esqueleto ancestral
se ruínas são elevadas a património armilar?
O sol de julho
é como as fornalhas
onde se funde o aço:
se houvesse metáfora do inferno
o Verão que nos tortura
seria a metáfora entre todas.
(Não se confirma
que inferno
rima com Inverno.)
As facas em descanso
deixam a pele na letargia
os acasos justapostos pelo ocaso da memória
e nada se credita à devoção
o amor tem os braços de um polvo
para não fugir nos interstícios do sono.
Esta é a matéria válida
o desassombro
das vozes que murmuram o paladar da alma
desarrumando os conspiradores
os que erguem
insatisfatoriamente
barragens elefantes brancos
e mesmo assim o caudal abraça-se
ao rio restante.
Tatuada a astúcia em forma de verbo
o corpo é um santuário à prova de derrotas
sem haver
quem o consiga desfeitear.
Podem ser medonhas as ondas
temível a lava de todos os vulcões por junto
podem todos os olhares açambarcar a tirania
deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade
podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas
e os pederastas da estultícia desfilar
na passerelle
ostentando a sua indigência
podem os deuses,
adormecidos,
esquecer-se da bondade
que os padrinhos seculares
descombinam do olvido
derruídos pelo esplendoroso labirinto
onde se terçam as solenes proclamações
o desejo que torna árida a aridez
e devolve ao avesso à fazenda legítima.
Os cabelos
cavalgam o dorso das ondas
dir-se-ia
amaciam o horizonte atrás delas deitado
como se o outro lado do mar
estivesse à distância de duas braçadas.
Que ninguém proteste a impossibilidade.
O seu antídoto
é a vontade arrematada
contra a indulgência
que se disfarça de medo.
A saliva foge das cicatrizes
o remorso incendeia-se na manhã
os sonhos são o prolongamento do medo
as sílabas obedecem ao quociente
para que nada fique
sem raiz quadrada.
O pelourinho
foi demitido da praça
os inquisidores estão nus e ao deus-dará
e já nem as viúvas lamentam oxalás.
Honestos
os chás orientais com rótulo disfarçado
e desonestos
os vinhos do Porto made in África do Sul.
Os reclusos estão viciados na biblioteca
e os catedráticos delinquem às escondidas.
E tudo, ou quase,
virado do avesso
como se do avesso
as coisas perdessem o avesso
e se tornassem
coisas.
Vou às portas de um país basco
sem medo do ricochete
das balsas de exilados
com fome de colinas adelgaçadas
pária de um idioma sem paradeiro
das fronteiras que acabam depois
nas manhãs condensadas
que se acastelam
nas costas do mar.
Que sabemos
da árvore noturna
dos humores que fabricam o orvalho
da matéria-prima de que é feito o sangue
dos inviáveis dias
que se arrumam no dicionário?
Toda a água contida no rio
desfaz-se num mar totalitário
e digo
que não há maior gesto democrático.
Se estamos à mercê da contingência
se só sabemos que do outro lado da página
medra a luz crepuscular
de que serve sermos arquitetos do porvir
se depois acabamos engenheiros
a fazer o levantamento dos destroços
e repor o que do passado puder ser salvo?
Não aprendemos com o futuro
e ficamos à espera da fala do passado.
É essa a nossa tragédia comum.
Um lampejo de vozes exaustas
a pele que se gasta com o reviver
e o sangue em banho-maria
sempre à espera
do próximo apeadeiro.