29.9.23

Disco riscado

Veja-se como é

um disco riscado:

a iteração exaustiva

um gaguejar apoplético

o síndrome

do cão que corre atrás da cauda

a beleza extinta do silêncio ausente

uma teimosia que desassossega

os acrobatas públicos que se repetem

à exaustão

a matança da criatividade

sem pena a preceito.

O disco riscado

que vai e vem sem sair do sítio

miragem de um patíbulo fingido

e gente em forma de farsa

ou farsas ocupando o lugar de gente

e uma loucura incandescente

tomando conta do chão

subindo pelas paredes

ciciando no rosto desprevenido

colonizando as raízes onde se esteia

o pensamento

– o pensamento:

esgotado por dentro

um enorme vazio vacinado e contínuo

contra os outros.

O disco riscado

em surdina

com-pa-ssa-da-men-te

de três em três segundos

esvaindo a loucura.

Injustiças indocumentadas (193)

Motivo

de força menor.

#2916

A meação 

de duas verdades

faz uma mentira 

completa.

28.9.23

#2915

Sete são os cães

um só o osso

já rabos de palha

contam-se aos milhares.

Bolo mármore

Pólvora húmida

a rabear entre as folhas caducas

(sim, é Outono)

farejando o mijo das divindades

como se houvesse carestia de epifanias.

Se outros Moscovos viessem em barda

os passaportes não precisavam de validade.

Cumpriam-se no luar extático

e as pessoas

em imoderado encantamento

seriam lúdicos aprendentes de idiomas

e, peritas em diplomacia sem ardis,

apanhariam o vento marmoreado

na passerelle sobre o rio habitado.

Não se assustem os gentios:

não é um terramoto

é só o barman

a abanar o shaker.

Injustiças indocumentadas (192)

Disseram-lhe

és um diamante em bruto.

Levou a mal

e cobrou em moeda bruta

(ao tresler que era 

um diamante bruto).

Injustiças indocumentadas (191)

É igual ao litro

mas

não é igual ao quilo.

 

[Apologia da diferença]

#2914

Apadrinhas

o miradouro do tempo

para não caíres 

nas suas más graças.

27.9.23

Furacão

O poente

deixa de soar o dia

abriga um porto esconderijo. 

Tudo é falado em surdina

as paredes travam as palavras

que emudecem 

na fronteira da casa. 

É o tempo preferido dos sortilégios

que assentam coreografias

com o estuque dos vultos arrematados 

a argamassa retirada ao anonimato

preparando de véspera 

a urdidura do dia consecutivo. 

Sucessivamente

num ritual que não veste regras

sem autoria determinada,

até ao momento em que escrevo. 

É o dia que vai contar o futuro

ornamentando a gramática com entorses

assim como os dias madrastos

que compõem um palco a que os pés não subiriam

se soubessem do futuro antes do tempo. 

Deposto o medo

o idioma fica como testemunha. 

O úbere da memória não tem paradeiro certo

os procuradores da angústia foram demitidos

e as preces dos desafortunados foram decantadas

tudo se compondo numa mirifica paisagem

onde se combinam urze e mel

chuva teimosa e fertilidade

os rostos que irradiam leveza

e as montanhas escarpadas 

onde a vida se leva difícil. 

Não se exorcize o olhar estremunhado:

o sangue pulsa nas paredes das veias

arrebata as bandeiras que são uma farsa

e o corpo insubmisso atira-se ao precipício

sabe que o pode domar. 

Dizem-se palavras avulsas 

– o auge da autenticidade

como se fosse preciso mostrar credenciais

como os embaixadores da lucidez. 

Mas não é de lucidez que se cuida;

o vento que assobia o desmedo

desafia a angústia que procurava atestado

os ossos são a matéria que não se transaciona

assumem os esteios que uma identidade afigura

antes que deuses assassinos colonizem o bem,

assim disfarçado, 

e todos nós,

distraidamente 

(ou apenas sitiados pela letargia)

sejamos matéria fungível

um longo bocejo refém do acaso.  

Injustiças indocumentadas (190)

Raspadinha

já que não se raspam

para paradeiro certo.

#2913

No abismo do carrossel,

quando a respiração se avessa

e as dioptrias se exacerbam,

celebramos a vertigem.

Injustiças indocumentadas (189)

Dar a palavra

pode não ser 

o vértice da bondade.

26.9.23

Com as letras todas

E como se ameaça dizer

com as letras todas

ninguém contesta a possibilidade

de as letras todas 

ser um manancial de fortuna

a irradiação do alfabeto

a petição da suprema igualdade

a abnegação de um letrado

que não suprime letras à existência

e ensina

a quem interessado estiver

que usar as letras todas

não contém uma ameaça bélica

antes pelo contrário

encerra a riqueza das palavras

que procuram 

pelo alfabeto inteiro.

#2912

Fala

panteão

sobre a têmpera

de um país.

25.9.23

Arnês

Eu 

não acreditava 

em quimeras.

Desde 

que conto 

os teus aniversários,

converti-me.

Diluente

Não se cumpre o ocaso 

a não ser 

que digamos aurora boreal, 

e chamemos

a vontade sem adjetivos, 

a pele recíproca que se funde, 

os lugares avulsos à nossa espera. 

Não se cumpre o acaso, 

porque somos 

os arquitetos do ocaso. 

Injustiças indocumentadas (188)

Palavra

de 

desonra.

#2911

A autoestrada desfila

impulsiva,

como os sonhos.

A direito

Da manhã 

que se levanta nos rostos, 

rejeitamos a bruma 

que adia a impaciência. 

 

Fazemos a manhã 

com o aval

dos nossos dedos. 

 

Já não somos apenas 

silhuetas.

Projetos em estiradores 

que se confundem 

com estilhaços. 

 

Somos suseranos 

do que quisermos ser. 

 

À espera 

de um dia qualquer, 

porque não devemos nada 

ao futuro.

24.9.23

#2910

Desalojada a sentinela

a rua ficou deserta

e as vozes ouviam-se

em constantes murmúrios.

23.9.23

Injustiças indocumentadas (187)

Ninguém

jura o juro

que há de estar.

#2909

O tigre no papel:

a demolidora lente

que dilata as rugas inválidas.

22.9.23

Injustiças indocumentadas (186)

Aos amanhãs que cantam

prefiro

as manhãs que encantam. 

Os sabres desmentidos

Violinos como coldre

a matéria funda que se funda

e um beijo equinócio

a tradução que nidifica no nada

braços contra braços e no fim

ganham os indigentes sem passaporte.

 

Mastros que perscrutam o horizonte

derrotam a finitude

os espécimes literatos 

que do mar fazem moradia perene

eles e toda a fauna submersa

quase adormecem perante o eclipse.

 

Não se avisem os entendidos

que soa a ignorância o atrevimento

não é preciso a advertência

que mal seria feito se os demais

privados fossem de um módico circense

que não se mede em braçadas o tédio.

 

Não se encontra procurador para os eruditos

é pena, não há quem queira a embaixada

e os cocktails molotov em surdina

parecem destinados a um museu

que (ó boa nova) os mastins foram presos

e ainda se pode esperar por belos amanhãs.

 

Dispensadas as pitonisas da diplomacia

ao palco sobem personagens diletas

sereias, poetas, mendigos, apátridas das ideias

e as pessoas não escondem o arrebatamento

esperam agora (do substantivo esperança)

que tudo venha caiado com as palavras tónicas.

Injustiças indocumentadas (185)

Quem não tem barbas

não as deita de molho.

Injustiças indocumentadas (184)

Recriação;

ou recreação.

#2908

O rosto visceral fala do medo

como quem o arranca

da faina tumultuosa.

21.9.23

Cem fronteiras

Um natal avulso

contratado à pressa:

os aprendizes

com trauma verificado

protestam compensação.

O que melhor se arranja

é um natal a destempo.

Não há agasalhos

que o outono nem arrimou

e os publicitários ainda estão

a uma enorme légua mental.

Os aprendizes assentam as cicatrizes

prantam por parvulez

candidatos à eterna puerilidade

a serem

gente a menos para corpo a mais.

Uma nova modalidade

de discriminação positiva.

Só falta reverenciar

os didatas da indulgência

e perguntar-lhes

(não vá ser importuno)

por que é devida aos aprendizes

uma compensação

se ainda nem tiveram tempo

para aprender a sofrer o mundo.

Estas alfândegas sem passaporte

ainda vão matar

e antes do tempo

gerações por haver.

#2907

O riso exuberante,

a drenar as entranhas

do mundo mau.

20.9.23

Congruência

Percebes a luz inaugural que desmata o dia. 

O refúgio prometido aloja-se no silêncio

o silêncio por enquanto. 

Ouves 

o bramido das folhas acorrentadas ao vento

o leve ciciar do vento

que desassossega já o porvir próximo. 

Sentes-te como as raízes das árvores 

– não há nada que cause uma razia

e a razão dirá se se compõe em teu tesouro. 

Ao longe

onde o horizonte põe termo ao olhar

levanta-se um leve torpor

como se o mar estivesse vigilante

o viável fundamento que aconselha. 

Os contratempos arrumam-se na fila de espera. 

Sem se darem à visibilidade

pondo os cotovelos em cima da mesa

fruindo a angústia de quem sabe

o que é uma rasteira dada por um contratempo. 

Desvias o olhar

empurras o horizonte 

inventas as tuas próprias impossibilidades. 

Um esboço de luz espreita pelas mãos

deixas o papel deitado no estirador

e adormeces a alma

sufragada pelo sonho que entreteces. 

Às vezes

os domínios que ocupas remoçam

emprestam ao dia um dia inteiro

sem recusar a sublevação dos ossos

apátrida

generoso. 

Se pudesse ser

fazias um poema 

na tela que espera as aguarelas. 

Encurralavas os dentes furtivos da noite

para fingires a solidão

para fugires das multidões. 

Não foges de ti. 

Toma-lo como compensação 

contra os solavancos

o autêntico terramoto

que fragiliza a imensidão do mar 

em que habitas.