20.10.23

Avalanche

Um pressentimento

sobe a palco

selado para sarar o futuro

cobrindo a cortina de sombras. 

 

Os vultos são recusados

ficam à porta dos sonhos

a sua não é a gramática válida. 

 

Desta vez

eu é que subi a palco

e soube ser a matéria que sou

sob o jugo das luzes que irradiavam. 

 

Por ter sentido

que as luzes sabiam do meu magma

desimpedi as fronteiras ainda hasteadas

só à procura de mim

só à espera que o tempo

seja bom conselheiro.

#2937

Lá choveu,

meteu meteorologicamente conversa,

e ela, alegrando-se, perguntou:

onde?

Injustiças indocumentadas (210)

O senhor secretário de Estado

tomou (tanto) em consideração

que (já) devia estar enjoado.

 

[Entrevista radiofónica ao secretário de Estado do Orçamento]

Injustiças indocumentadas (209)

Fina é a nódoa

que só se deita

na boa fazenda.

#2936

Jogas as palavras

num labirinto arregaçado

na frase que está por vir.

Injustiças indocumentadas (208)

Isto

não é

o Texas

pois não.

19.10.23

Saltar à corda

Um espelho que se despenha

vertical 

no eixo do vazio

cozinhando no fogo embainhado.

No vale tardio 

os camponeses esperam 

pela pendência da velhice

amestrados em segunda grau

a contar os clérigos exilados.

 

Arrestam as suas artes ao pelourinho

preferem uma oferenda às divindades

antes que uma errante vingança

se abata.

E até os que se deitam ao paganismo

não insultam as divindades que não vêm:

ó embaixadores dos tempos

trespassados por mil soldadinhos de fancaria

aprovados nos ulteriores salões de boémia

tragam um excerto de futuro

para os embaixadores do medo

resgatarem a loja onde se desbarata o sossego.

 

As avenidas continuam sobrepovoadas

as almas à ilharga exibem a densidade:

as cidades arrumam-se depois

largas temporadas após se tremem esgotado

nos palacetes que guardam

as ideias barrocamente estultas.

 

Os olhos cruzados invadem-se

com o aparato da deselegância

sentem um burburinho 

a colonizar o sono postergado:

os dedos 

acobertam as páginas desimaginadas

que fogem sem trela por perto

ensaiando a tiracolo nas nobres decências

os homens encanecidos 

que não se escondem nem fingem 

um elixir

no enclave onde se apresentam as fardas.

 

Dão a noite por perdida,

agora que a insónia os enlaçou na alvorada

a destempo.

 

Se soubessem traduzir os incómodos

o dia por diante seria um longo eclipse

as persianas corridas fechando a luz do palco

e as pessoas

cabisbaixas

aprendendo com o porvir.

#2935

Adormeço

no regaço que congraça o sono

à espera da alvorada mecenas.

18.10.23

Levitação

O alvoroço ruge no dédalo da acalmia

desautoriza o medo que nos dizem contínuo

como se um estado permanente de intimidação

estivesse de atalaia

vigilantemente angariando a obediência. 

Lá fora

gatos vadios entretêm-se na coreografia do cio

desobedecem ao humano código de conduta;

obedecem na mesma,

o seu particular código 

de conduta. 

Peritos que mostram as credenciais à lapela

explicam que só todos formatados por regras

não seríamos uma anomia cacofónica

se persistíssemos na ausência de códigos,

empenhados no magma animalesco

reféns da ideia 

de que limítrofes são todos os demais

sem ambição de sermos alguém 

por fora das nossas fronteiras

nós, 

em cada individualidade concêntrica,

a granada desencavilhada no limiar 

do rebentamento

aos nossos pés. 

Muitas e elaboradas são as confabulações

avivadas pelo lastro do tempo

e a fonte da experiência,

provas incontestáveis de sermos 

um peão dentro da colmeia. 

Anestesiados

pelo saber enciclopédico

e pela humilde sujeição aos maestros 

que por isso nos regem

e esmagados 

pelos obscenos desexemplos contrafactuais,

os párias provam com a sua insubmissão

que são miasmas para o coletivo sobreviver:

aceitamos 

os códigos 

e as leis 

e os regulamentos

e todas as proibições 

e mandamentos inescapáveis. 

Confirmando-se

o Homem é lobo de si mesmo

autodidata da autofagia

viciado numa menoridade perpétua

que o torna meão. 

#2934

O rei não vai nu:

não andamos

numa monarquia.

Injustiças indocumentadas (207)

Nem em despojamento monástico

há quem seja pobre

e bem agradecido.

17.10.23

O mar mestiço

O mar mestiço

abraça a miragem. 

Combina a fúria

no mosto da tempestade

emancipa-se 

de todas as vontades. 

Tresleem na penumbra

um ocaso antecipado

e o mar mestiço

terça com seis braços

as espadas pusilânimes. 

 

Um mar destes

é luto de pescadores

e musa de poetas. 

São intransigentes

as injustiças 

que nos regem. 

 

O mar mestiço

não fala de lutos. 

Luta 

como se fantasmas se insinuassem

e pudessem ser um ónus. 

O mar mestiça-se 

para desarmadilhar conspirações. 

Amedronta e extasia

a uma só vez

enquanto caia o dia

com uma tela embaciada. 

 

Como há quem recuse

uma tempestade

como selo de bom tempo?

Injustiças indocumentadas (206)

É vão

o pesar,

terá sido 

em vão.

#2933

A pedra estilhaçada

bordeja na alquimia módica

à medida da tempestade.

16.10.23

Deseleito

Havia um aliás que bombardeava os coliseus

na esperança inveterada de calar os bons.

Não lhe disseram para estar calado

e ele falou até ao próximo eclipse solar

saltando sobre todos os luares

orando as preces que amaldiçoavam

as gerações vindouras.

Talvez porque prometeu

ainda na sua tenra adolescência

que queria ser sacripanta em adulto.

Não sobraram cinzas ao varrer as costuras:

todo o vinho derramado

em páginas retesadas de calendários usados

não serviu para embriaguezes alheias.

O sono apetecia

como ao cão apetece ladrar

e ele

tão sempre de atalaia

vociferava por dentro a ira instalada

antes que a voz magoasse a cidade

e fosse intimado a comparecer

perante os altares enjeitados.

Injustiças indocumentadas (205)

Não é esbanjador,

o pinga amores;

é um harpagão

irrigando austeramente

amor gota a gota.

Injustiças indocumentadas (204)

Quantas

são as vezes

em que é longa

a perna da mentira.

#2932

O carrossel que fruta

no avulso que expira a noite

desmata a manhã timorata.

15.10.23

Injustiças indocumentadas (203)

Fundo de emprego.

Fundo do emprego.

(Renuncio ao Rossio.)

 

[Variações em torno de Al Berto]

#2931

Os favoritos à realidade

encenam farsas avulsas

não temem perder o estatuto.

14.10.23

#2930

Assoreados os sentidos,

a anestesia diligente

que impede o mundo 

de ser farsa.

Injustiças indocumentadas (202)

A estiagem prolongada

desautoriza o manda-chuva.

13.10.23

Embargado

Depois de tanto

adivinhei a madrugada

atado a um fogo posto

sem ter de ser por exílio

ou no caudal do luar furtivo.

Espingardas fátuas

Contam as silhuetas

os nómadas que não dormem

contam o que não sabem

antes que sejam 

párias da consciência. 

Afugentam a pele furtiva

obcecados 

pelo estreito incumprimento das regras. 

Aburguesaram-se

contestam outros

dissidentes

que deixaram de os ter em conta boa. 

Como aburguesar

não merece a atenção do código penal

o pleito é anedótico

um burburinho de primos incompatibilizados

um entretém frívolo 

de que não reza a importância. 

Os párias 

embebidos no nomadismo

não desaprenderam as coisas tribais

por mais que os desavindos os acusem

de se enamorarem pelas coisas triviais. 

 

Se marcassem encontro 

numa ágora inspiradora

conseguiam rematar as dissidências

com as pazes a deixar aberto 

o horizonte da comunhão de meios?

 

Agora

as suas peles têm diferentes tatuagens. 

Embarcaram em comboios diferentes

e usam mapas que são a antítese. 

Dantes

ainda fingiam unidade.

Agora

evitam as mesmas ágoras

e deixam para os outros

o ónus que dividiu uma em duas casas. 

Estão mais longe 

do que estavam dos demais

antes de terem angariado 

a cisão.

#2929

Muito se aguarda

no plantão dos iludidos

sem conceder que é um alçapão

que mora atrás do horizonte.

Injustiças indocumentadas (201)

Entre(m),

aspas.

12.10.23

Até logo

O objeto é abjeto.

 

Ir a Marte não é amar-te.

 

A métrica é assética.

 

A congruência faz lembrar o congro.

 

A tirania é uma espécie de tia.

 

A tirana é a que tudo tira.

 

O artificial não é (nada) especial.

 

O algoz é um capataz.

 

A pureza é uma indelicadeza.

 

O bocejo é matéria do desejo.

 

A aliteração soa a aletria.

 

O robe não é um nome inglês.

 

O contumaz deixou de ser capaz.

 

O périplo é como o pirilampo.

 

O estilhaço não precisa de vidro.

 

A bala precisa de demência.

 

A igreja não tem nada que se veja.

 

O estupor também é doutor.

 

A toalha não coalha.

 

Cada guerra é um lugar sem terra.

 

O amante é um armante.

 

A clepsidra é uma sidra cleptomaníaca.

 

O entulho é parente do esbulho.

 

A maresia amacia.

 

O vaidoso vai doloso.

 

O vate deve variar o verso.

 

A escumalha não sabe da escumadeira.

 

A aia só diz ai-a, ai-a (sem se saber quem é “a”).

 

A sílaba é sibilina.

 

A cordilheira não tem arnês.

 

A chuva dispensou o chapéu.

 

O sono é mais logo.

 

O gato perdeu o sapato.

 

O petiz é tão feliz.

 

Já o velho cavou o cenho.

 

O rouxinol só canta por conta do sol.

 

A sereia é um cabo de sarilhos.

 

O trovador encontra a dor.

 

A erudita gostava de ser da comandita.

 

O estouvado diz estou vago.

 

A atriz mete o dedo no nariz.

 

Há costa de quem não se gosta.

 

E luditas que emigraram para o Luxemburgo.

 

Sinais de fumo, sinais de fumo.

 

E o candeeiro gasto, sem mecha.

 

Fronteiras viradas do avesso.

 

Passaportes que passam os portos.

 

E didascálias, para os utopistas.

Injustiças indocumentadas (200)

Fez do gato sapato 

– mas o gato 

não tem sapato.

#2928

Usara a usura

contra tiranos piores

essa era a melhor costura.

11.10.23

Pleito

Dei de mim amostra ao magma inteiro

uma pletora de rios fundos e de frias águas. 

 

Ontem 

arrastei os ossos contra a maré

desviei os prantos de colisões desnecessárias

e os furtivos ventos alisaram a descompostura

antes que de mim se hipotecasse

um grama de alma. 

 

Os provérbios fogem pela escotilha

juntam-se aos procuradores da decência

aos sacerdotes dos costumes 

(têm de ser bons)

e levitam as mãos ateadas 

deixam-nas suadas a saber do frio da noite

sem ouvir a voz mecânica que assalta os sonhos. 

 

Dizem que há profetas que ocupam um lugar. 

 

Devem ser invisíveis

ou puros fantasmas

o porvir continua a desafiar as probabilidades

arquiteto da sua gramática

insensível às sensibilidades que se entrecruzam

dos luditas que trazem em si

as ansiedades ilícitas. 

 

Os campos atravessam os rios

e somos nós

marinheiros despojados

que arrefecemos o aquecimento patológico. 

Às vezes

damos as mãos por cima das redes

é quando os sobressaltos fazem alpinismo

e nos esquecemos do arnês. 

 

Não importam 

os apocalipses prometidos com solenidade;

os curadores que juram curas a eito;

os mercadores de sonhos que começam pelo telhado,

as vozes surdamente cegas em delírios sintomáticos;

a desbeleza a concurso, a banalização da fealdade;

todos os embaraços à sofreguidão da vida:

em mil páginas de inventário

cobram-se honorários usurários

e já não há doutores das almas que cheguem

na invasão das águas mordazes

que contaminam o dia constante.