29.11.23

Tradução simultânea

Fugi aos olhos do mundo

por detestar

que os olhos do mundo

estivessem de atalaia

e eu

da mais profunda solidão

dispensasse essa companhia. 

 

Esperei pela visibilidade da manhã

para depor a meu favor

e não quis saber que apeado seria

se fosse esse meu gesto. 

 

Li os editais admiráveis

os que entronizam os reis de nada;

subi 

sem tibieza 

ao tribunal inferior

sem medo dos medos entoados

só com um garfo metido entre as ideias

desarrumando o futuro imperfeito

numa opereta eloquente. 

 

Os arbustos diziam o caminho

sobre as pedras sucumbidas

contra os rostos silhuetas tomados ao acaso

esse, o imaterial bocejo

intemporal

a senha apalavrada dos segredos quitados. 

 

Não digam

contra as probabilidades 

que amanhã é Inverno

não conspirem 

contra os obstetras que parturiam o mundo:

 

não lhes digam

que deram existência a um nado-morto

e que todos

os que por aqui diligenciamos tempo

fingimos o embaraço de tanto ardil. 

 

Sem esta força arremessada contra os algozes

não somos nada

não temos nada

e enfim desaparafusados do siso

assisamos outras comendas

assinantes de uma tença desconhecida

o congeminado sol por batizar. 

 

O sol

a que ninguém

verte o sal das feridas que esconde

o sol mátrio que afirma a gramática

e habita o fundo métrico 

das orquídeas em devir.

28.11.23

Eco-pesadelo

Um dia

a fauna tornou-se rebelião

e só os vegetarianos tiveram salvos-condutos. 

A ovação repartida

disse

que fauna e vegetarianos eram uma coligação

e os últimos só eram solidários

com a fauna. 

 

Ninguém podia falar de genocídio. 

 

Ninguém subiu alto no mastro do protesto

porque já só havia

os aliados da fauna

e esses falavam em uníssono. 

 

Mas depois acordei

e intuí tratar-se de um pesadelo. 

Afinal

fora uma noite

(e não um dia).

Injustiças indocumentadas (243)

Ninguém sabe

a que sabe a vingança

quando é servida quente.

#2979

A tempestade 

corre uma cortina 

uma acrisolada voz 

abate-se contra os inocentes.

27.11.23

Tira-nódoas

Desaparece a custódia dos vultos

a leveza de uma nuvem

dissolveu-a. 

O cimento fraco foi cercado

uma viuvez intensa fareja a farsa

prepara-se para anunciar

que é fraco

o cimento. 

E as pessoas

tão temerárias 

tremem como se estivesse frio

bebem o suor do avesso

como se fosse um antídoto

não sabem de quê. 

Se este pudesse ser um retiro

seríamos procuradores de uma moldura;

mas é uma miragem

à espera de ser fruto maduro

ou à espera

de depressa se tornar bolorento

em forma de colheita tardia. 

Não há nada de útil

num tira-teimas. 

Antes um tira-nódoas

que devolve uma alvura 

apenas farsante.

Noite sem medo

À noite que se adia. 

À pele quente que se entrega nos braços. 

Ao olhar inquieto. 

Às estrofes que se congeminam no silêncio. 

Ao mar que se agita no avesso da memória. 

À lava que se ajuramenta no beijo da memória futura. 

Aos corpos entretecidos na coreografia sem nome. 

À manhã, que levita entre os olhares sem medo. 

#2978

Antes do tempo ausente

a imersão em águas fundas

as latitudes todas 

numa mão fechada.

26.11.23

#2977

Sistematicamente desistente,

essa fora a sua grande vitória.

25.11.23

Injustiças indocumentadas (242)

Já chegou o elefante.

Falta a porcelana.

#2976

A História 

é um impressionismo fatal

o resgate para memória futura

do dever geral de desumanização.

#2975

Não há alternativa

à alternativa,

há alternativa.

24.11.23

Manifesto anti-matrioskas

Há personagens

que parecem paridas

de dentro de matrioskas.

Uma eructa

desmultiplica-se em dois

desdobra-se em quarto

em oito, em dezasseis;

até estarmos 

cercados.

 

Um pesadelo é fruta viva 

ao pé da matrioska parideira.

 

O atraso civilizacional

é que ninguém descobriu a cura

das matrioskas que não param de parir.

 

Abaixo as matrioskas

ocas.

Injustiças indocumentadas (241)

Como se diz

bivalve

no Porto:

#2974

Primeiro

entranha-se

segundo

estranha-se.

23.11.23

Dentadura postiça

Sejamos simpáticos:

não é por ser um escarro

que se destina aos escombros

quem dessas palavras proclama.

A desinfestação

tem de ser por igual

sem discriminações. 

Sejamos compreensivos:

a impossibilidade da tolerância

seria uma mácula a abater-se 

e precisamos de saber o que é um escarro

(para dele nos apartarmos).

#2973

O ferro forjado

curva a carne do tempo

atesta o braço imorredoiro

do mar sólido que não tem maré.

22.11.23

Vadios

Papagaios famintos repetem estrofes

sereias sem dote aproveitam-se da maré

um meteorologista angustiado jura o medo

a maresia subleva-se contra a manhã timorata.

 

Distantes cangurus bolçam intoxicações 

bombeiros insones passeiam a farda encardida

generais covardes fogem das más companhias

gatos que deixam de ser vadios miam por companhia.

 

Candidatos à indiferença erram na estação 

autodidatas dispensam livros para a ciência

tutores de costumes adiam arsenais corrompidos

cultores amoedados rapam arrogância de bolsos.

 

Ativistas amestrados perdem-se no labirinto

narizes narram aranhas e espirram alergias

almirantes esposados pela ira posam urros 

as boas maneiras ficaram à porta dos estultos.

#2972

O entardecer desbotado 

destoa do gargalhar assíduo

reivindica 

o silêncio de um ermo.

21.11.23

Oxidação

A infâmia

não nos persegue

não se faz nome nosso

não nos culpa 

por uma gramática mendaz. 

 

Tiramos uma carta ao acaso

os dados são atirados para a cratera

movemos a torre para a frente do bispo

sabemos onde está o sortilégio

só não sabemos como o podemos domar. 

 

É a meã condição

o confisco do ser?

É a dependência do vício

em sucessivas voltas olímpicas,

o campanário da decadência?

 

Arrastamos a página ensombrada

e não resistimos ao seu caudal. 

Oxalá houvesse dentro de nós

uma represa

e não fossem vícios

ou infâmias

a colonizar os dias eleitos. 

Injustiças indocumentadas (240)

Degrau.

De 

grau.

Graúdo.

Degraus

Os degraus 

intermináveis.

Esconjuro

quem se rege 

pela finitude. 

Pressinto

que a escada oferece 

outro lanço de degraus 

assim que toco 

a cumeada. 

Somos

o nosso próprio 

marco geodésico.

Injustiças indocumentadas (239)

Sou contra o mar de rosas

ia acabar com a maresia.

#2971

Não disse que disse

mas desdisse na mesma

só para cozinhar a dúvida

sobre se disse o que disse.

20.11.23

Gatilho

Pensava

que tinha o pensamento

forrado a algemas. 

 

Houvesse

quem desarmadilhasse

o pensamento. 

 

Que de estouvado

tivesse todos os lugares

em vez de ser daninho 

e privado de matéria. 

 

Queria

a certa altura

um pensamento 

virado do avesso. 

 

As cores 

trocadas;

 

dicionários

só os errantes;

 

divergências

todas 

e mais algumas;

 

e lugares novos

que o pensamento

precisava

de aprender 

a pensar

de novo. 

 

O pensamento

reuniu o espólio

e pensou

que o inventário

tem mais de despensamento. 

 

Afinal

o pensamento

só queria hibernação

uma cadeira puída

onde pudesse ser estilhaço

ou uma parede

que não estivesse por caiar

uma tela 

à prova

de preces

como se enviuvasse

e passasse à reforma

mera curiosidade arqueológica

sem chegar a ser

sequer

nota de rodapé. 

 

Não queria ser

a não ser

nostalgia de um conto futuro

lápide pendida sobre os cotovelos

um regaço inteiro

por habitar.

#2970

Tertuliam,

em filosofias avulsas

contra o arsenal da identidade.

19.11.23

#2969

De Juno

não se esperem

copiosas intempéries.

18.11.23

Injustiças indocumentadas (238)

Falamos:

de crimes

a favor da humanidade.

#2968

Nos bolsos puídos

ateia-se 

a memória escondida 

– a memória 

que é a sua própria pária.

17.11.23

O Ministério Público é contra as bibliotecas

Frequentar bibliotecas

passou a ser

uma atividade arriscada:

ninguém agora pode confessar 

que foi à biblioteca tirar notas.

Viver tempo (por oposição a matar tempo)

O efeito balsâmico

de trespassar a fronteira

e saber

que é uma hora mais cedo

de saber

que fiquei uma hora mais novo.