A falésia compõe-se,
escondida
no avesso do olhar.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Fugi aos olhos do mundo
por detestar
que os olhos do mundo
estivessem de atalaia
e eu
da mais profunda solidão
dispensasse essa companhia.
Esperei pela visibilidade da manhã
para depor a meu favor
e não quis saber que apeado seria
se fosse esse meu gesto.
Li os editais admiráveis
os que entronizam os reis de nada;
subi
sem tibieza
ao tribunal inferior
sem medo dos medos entoados
só com um garfo metido entre as ideias
desarrumando o futuro imperfeito
numa opereta eloquente.
Os arbustos diziam o caminho
sobre as pedras sucumbidas
contra os rostos silhuetas tomados ao acaso
esse, o imaterial bocejo
intemporal
a senha apalavrada dos segredos quitados.
Não digam
contra as probabilidades
que amanhã é Inverno
não conspirem
contra os obstetras que parturiam o mundo:
não lhes digam
que deram existência a um nado-morto
e que todos
os que por aqui diligenciamos tempo
fingimos o embaraço de tanto ardil.
Sem esta força arremessada contra os algozes
não somos nada
não temos nada
e enfim desaparafusados do siso
assisamos outras comendas
assinantes de uma tença desconhecida
o congeminado sol por batizar.
O sol
a que ninguém
verte o sal das feridas que esconde
o sol mátrio que afirma a gramática
e habita o fundo métrico
das orquídeas em devir.
Um dia
a fauna tornou-se rebelião
e só os vegetarianos tiveram salvos-condutos.
A ovação repartida
disse
que fauna e vegetarianos eram uma coligação
e os últimos só eram solidários
com a fauna.
Ninguém podia falar de genocídio.
Ninguém subiu alto no mastro do protesto
porque já só havia
os aliados da fauna
e esses falavam em uníssono.
Mas depois acordei
e intuí tratar-se de um pesadelo.
Afinal
fora uma noite
(e não um dia).
Desaparece a custódia dos vultos
a leveza de uma nuvem
dissolveu-a.
O cimento fraco foi cercado
uma viuvez intensa fareja a farsa
prepara-se para anunciar
que é fraco
o cimento.
E as pessoas
tão temerárias
tremem como se estivesse frio
bebem o suor do avesso
como se fosse um antídoto
não sabem de quê.
Se este pudesse ser um retiro
seríamos procuradores de uma moldura;
mas é uma miragem
à espera de ser fruto maduro
ou à espera
de depressa se tornar bolorento
em forma de colheita tardia.
Não há nada de útil
num tira-teimas.
Antes um tira-nódoas
que devolve uma alvura
apenas farsante.
À noite que se adia.
À pele quente que se entrega nos braços.
Ao olhar inquieto.
Às estrofes que se congeminam no silêncio.
Ao mar que se agita no avesso da memória.
À lava que se ajuramenta no beijo da memória futura.
Aos corpos entretecidos na coreografia sem nome.
À manhã, que levita entre os olhares sem medo.
A História
é um impressionismo fatal
o resgate para memória futura
do dever geral de desumanização.
Há personagens
que parecem paridas
de dentro de matrioskas.
Uma eructa
desmultiplica-se em dois
desdobra-se em quarto
em oito, em dezasseis;
até estarmos
cercados.
Um pesadelo é fruta viva
ao pé da matrioska parideira.
O atraso civilizacional
é que ninguém descobriu a cura
das matrioskas que não param de parir.
Abaixo as matrioskas
ocas.
Sejamos simpáticos:
não é por ser um escarro
que se destina aos escombros
quem dessas palavras proclama.
A desinfestação
tem de ser por igual
sem discriminações.
Sejamos compreensivos:
a impossibilidade da tolerância
seria uma mácula a abater-se
e precisamos de saber o que é um escarro
(para dele nos apartarmos).
O ferro forjado
curva a carne do tempo
atesta o braço imorredoiro
do mar sólido que não tem maré.
Papagaios famintos repetem estrofes
sereias sem dote aproveitam-se da maré
um meteorologista angustiado jura o medo
a maresia subleva-se contra a manhã timorata.
Distantes cangurus bolçam intoxicações
bombeiros insones passeiam a farda encardida
generais covardes fogem das más companhias
gatos que deixam de ser vadios miam por companhia.
Candidatos à indiferença erram na estação
autodidatas dispensam livros para a ciência
tutores de costumes adiam arsenais corrompidos
cultores amoedados rapam arrogância de bolsos.
Ativistas amestrados perdem-se no labirinto
narizes narram aranhas e espirram alergias
almirantes esposados pela ira posam urros
as boas maneiras ficaram à porta dos estultos.
A infâmia
não nos persegue
não se faz nome nosso
não nos culpa
por uma gramática mendaz.
Tiramos uma carta ao acaso
os dados são atirados para a cratera
movemos a torre para a frente do bispo
sabemos onde está o sortilégio
só não sabemos como o podemos domar.
É a meã condição
o confisco do ser?
É a dependência do vício
em sucessivas voltas olímpicas,
o campanário da decadência?
Arrastamos a página ensombrada
e não resistimos ao seu caudal.
Oxalá houvesse dentro de nós
uma represa
e não fossem vícios
ou infâmias
a colonizar os dias eleitos.
Os degraus
intermináveis.
Esconjuro
quem se rege
pela finitude.
Pressinto
que a escada oferece
outro lanço de degraus
assim que toco
a cumeada.
Somos
o nosso próprio
marco geodésico.
Pensava
que tinha o pensamento
forrado a algemas.
Houvesse
quem desarmadilhasse
o pensamento.
Que de estouvado
tivesse todos os lugares
em vez de ser daninho
e privado de matéria.
Queria
a certa altura
um pensamento
virado do avesso.
As cores
trocadas;
dicionários
só os errantes;
divergências
todas
e mais algumas;
e lugares novos
que o pensamento
precisava
de aprender
a pensar
de novo.
O pensamento
reuniu o espólio
e pensou
que o inventário
tem mais de despensamento.
Afinal
o pensamento
só queria hibernação
uma cadeira puída
onde pudesse ser estilhaço
ou uma parede
que não estivesse por caiar
uma tela
à prova
de preces
como se enviuvasse
e passasse à reforma
mera curiosidade arqueológica
sem chegar a ser
sequer
nota de rodapé.
Não queria ser
a não ser
nostalgia de um conto futuro
lápide pendida sobre os cotovelos
um regaço inteiro
por habitar.