2.1.24

Junta autónoma da poesia

Escolhe um cantoneiro

um que esteja de atalaia ao asfalto da poesia

e tu, grato,

danças uma dança caótica

sabendo que é a desordem que rima

com a poesia. 

Antes da estocada final

roubas um marco geodésico

que mede a desprecisão da métrica

como tu medes o tamanho das peúgas

ou a volumetria do suor. 

De ti poderão dizer as coisas piores;

não te apoquentas:

as más profecias

são apalavradas nas tuas costas 

e tu dirás

que as costas não têm ouvidos. 

Quando chegar ao Natal,

não te esqueças 

da “lembrançazinha” 

(ah! o perfume às coisas pequeninas

ou a catedral da tão consagrada

pequenez dos costumes)

para o senhor engenheiro

que tutela

a junta autónoma da poesia.

#3016

A penumbra que fala

arranca à luz 

o silêncio sepulcral.

1.1.24

#3015

Arrancado à carne

o cadáver do ano cadivo

fica 

na alçada do olhar 

um deserto à espera de ser 

instalado.

Do lado da maré

Quero

que em galáxia se torne

o penhor de meus desejos

um miradouro sem paradeiro

onde a paisagem é esculpida por mim

às mãos fugitivas que se desaconselham.

Como se fôssemos todos apátridas

todos

os guarda-luas diligentes

que não perdoam a indigência 

a verdade teimosamente disfarçada de verdade

a utopia hasteada a hino sem bandeira

todo um labirinto sonhado 

enquanto o entardecer proclama 

a noite duradoura.

31.12.23

#3014

Cautela

à cautela;

não se torne 

a sorte

um revés.

#3013

A luz 

entrecruza-se

com os poros

desenha-lhes

as cores amargas.

#3012

Todas essas palavras

aninhadas 

na nuca do pensamento,

à espera de resgate.

30.12.23

#3011

A tabuada dos síndicos

é onde são coladas

e com cuspo

as leis da (sua) moral.

29.12.23

#3010

Perdera do norte

a infância;

talvez

a matriz de um tempo

irrecuperável.

28.12.23

#3009

A mentira

na sua intencionalidade

desenha as fronteiras

da desmemória.

 

[Antevéspera de campanha eleitoral]

27.12.23

Injustiças indocumentadas (275)

Tanta gente

a fazer face.

Deve ser este

um país de escultores.

#3008

A banalidade da verdade

traduz 

a acareação em método.

26.12.23

#3007

Diziam

às estrelas

ser farta a safra

e pediam

que da atalaia.

não se esquecessem.

Injustiças indocumentadas (274)

Dizer

já não tenho idade

é o passaporte

para interromper o envelhecimento.

25.12.23

#3006

As montanhas

é que movem

a fé.

24.12.23

#3005

Damos notícias

e não somos

jornalistas.

Injustiças indocumentadas (273)

Mary,

Christmas.

23.12.23

#3004

Seriam precisas

chaminés mais largas

para receber

anafados pais natais.

Injustiças indocumentadas (272)

O fala-caro

arrota

rebuçados de ouro.

22.12.23

Agarro-me ao mar enquanto não vou de braços à maré

O estribo aperta o corpo ao mastro

e não há mar em convulsão

mas de gigantes ondas perfumado pela ira

a demover a vontade rainha.

O esqueleto sabe de cor as curvas das ondas

sobe pelo mastro até se tornar altivo

o desafio insolente à pureza cínica do mar;

não se tolhe 

a coragem de marinheiros desta cepa

não desistem da manhã

nem em noites de medonhos pesadelos

boicotam o mar desarrumado

e ordenam

com voz sibilina e estrofes amadurecidas

para o mar se reduzir à serenidade mirífica.

Os navios erram na bússola predestinada

orquestram os sulcos com que colorem o mar

sabendo-se

que neles habitam 

as vozes que desistem da angústia

as vozes que não se esgotam na saliva rarefeita.

São os bancos graníticos que sobem 

quando as ondas se desfazem 

num punhado de espuma

quando se descobre que não há orquídeas;

são as vozes desistentes dos embarcadiços

que não escondem os arsenais sem recursos

as vozes

que desenham os parapeitos

que ajudam os corpos a serem preces

enquanto lá fora

sob os auspícios de uma tempestade armadilhada

os corpos precoces são despedaçados, 

pela centelha que se traduz

em dicionário fora de curso,

por estilhaços.

Injustiças indocumentadas (271)

Podia-se falar

de um calor de 

(“eu sei lá”)

mamões.

#3003

Dei fuso à comenda,

que outra ovação

não era esperada.

Injustiças indocumentadas (270)

O cor-de-rosa

enquanto fatalidade.

21.12.23

#3002

A febre da terra

no fogo eremita

a ira à espera 

de combustão.

20.12.23

Adoçar a literatura é um dever dos literatos

A página doze

às dezasseis e vinte e quatro minutos

as suas trezentas e quinze palavras

demoraram dois minutos e quarenta segundos

a ler.

A página treze

às dezasseis horas e quase vinte e sete minutos

as suas cento e oitenta e sete palavras

(é o fim do ensaio 

sobre a mecânica das vias ferroviárias)

demoraram um minuto e cinquenta e oito segundos

a ler.

A página sem rosto

a página sem número

que se ateiam no vazio

à espera de ficarem grávidas

do precipício;

à espera

que a deslocação do vento

tenha tinta suficiente

para escrever a página catorze

e a quinze e a dezasseis

e a dezassete

e assim sucessivamente.

#3001

O ruído a remoer 

fundo, 

no fundo

onde os bastidores 

se deslaçam.

19.12.23

Manhãs

Dei-te o nome da manhã. 

Dei-te a pele em combustão 

para seres a candeia 

que me resgatou da hibernação. 

 

Os vulcões desenhados 

na carne desembaraçada 

desmatavam o medo. 

 

Não queríamos fronteiras. 

 

Deixamos em legado 

o nome da manhã. 

 

Feito com as estrofes 

que depusemos 

a mãos juntas.

Injustiças indocumentadas (269)

Socialista.

Sucia lista.

Só lista na cia.

#3000

Não ficou para trás

o comboio impertérrito

a cavalgar 

nas lombadas prístinas

de estrofes frescamente matinais.

18.12.23

O ouro e o bandido

Um repente

um estatuário sismo

por dentro dos ossos gémeos

sem que haja estandarte por levantar

sem memória que seja para avivar

ou hino para falar:

uma encenação

ou farsa esculpida no barro comum

essa historieta vã

uns olímpicos sebastiões 

doutores em saudades do avesso

empunhando archotes 

que hibernam o presente

e devolvem trevas irremediáveis.

Nadam

para dentro de um tsunami

no logro participado de uma ilusão fátua

e todos os papelinhos estilhaçados

em fila desordenada

fazendo a vez de confettis

armadilhando o chão suado.